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O “percurso gerativo” da Semiótica

2. A METODOLOGIA SEMIÓTICA E SUA APLICAÇÃO

2.1 O “percurso gerativo” da Semiótica

Segundo Hénault (2006), a obra Semântica estrutural (GREIMAS, 1973) propõe uma primeira síntese da teoria Semiótica, desenvolvida pelo mestre lituano Algirdas Julien Greimas. Considerado o trabalho que deu início ao empreendimento greimasiano na construção de uma teoria geral da significação, nele há inúmeras referências ao estudo de Hjelmslev. Pertencente ao Círculo Lingüístico de Copenhague, este autor concebe a função semiótica enquanto relação entre um plano de conteúdo e um plano de expressão (ambos portando uma forma e uma substância lingüísticas) e estabelece idéias sobre o modo de análise objetiva, de acordo com o seu livro Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Greimas privilegiou o estudo do plano de conteúdo, para o qual descreveu, a partir das idéias iniciais de Semântica estrutural, uma teoria adequada – orientando a manifestação discursiva em níveis – para a descrição da significação. Hénault (2006, p. 129) apresenta a importância do livro em questão:

O sucesso inicial de Semântica estrutural se deve a seus exemplos de análises sêmicas, que abriam amplas perspectivas, de um lado para uma renovação dos estudos literários (permitindo objetivar os matizes ou eliminar a ambigüidade das polissemias) e, de outro, para as pesquisas sistemáticas em lexicologia (com todas as aplicações que se buscavam naquela época em história, no ensino de línguas ou nas primeiras análises de textos publicitários).

Greimas, ao propor um modelo semântico de descrição, precisa a organização sêmica dos lexemas a partir da taxionomia do termo “assento” (GREIMAS, 1973, p. 51). Dentro desse campo lexical, baseando-se no estudo do lingüista B. Pottier, Greimas apresenta os traços distintivos (unidades mínimas de conteúdo) de acordo com a funcionalidade dos objetos pertencentes a esse campo. Adaptando os exemplos citados em Semântica estrutural, para os termos “banco”, “cadeira” e “pufe”, pode-se observar que são objetos semelhantes (do mesmo campo semântico), porque são feitos para sentar, mas ao mesmo tempo são distintos, porque cada um comporta um sema específico ou a falta de algum: o primeiro não tem braços, a cadeira tem braços e encosto e o pufe não tem encosto nem braços. Esse é um dos exemplos que explicam como o plano de conteúdo pode ser articulado em unidades mínimas de sentido.

Para além do lexema, no entanto, Greimas chamou a atenção para o estudo de uma teoria geral da significação, a respeito da qual desenvolveu um método próprio e adequado para discutir o processo de geração do sentido do texto. Isso se deve em função de o mestre genebrino, Ferdinand de Saussure, ter constituído um método científico para a lingüística na primeira metade do século XX, em que procurou averiguar a língua na qualidade de sistema (estrutura) até o nível da frase apenas. Saussure mencionou em seu Curso de Lingüística geral (SAUSURRE, 2002, p. 23-25) que era necessária a construção de uma teoria geral do signo, a qual denominou semiologia. Disse que “[...] o problema lingüístico é, antes de tudo, semiológico, e todos os nossos desenvolvimentos emprestam significação a este fato importante” (ibid., p. 25). Isso quer dizer que era necessário desenvolver uma teoria da linguagem que ultrapassasse o nível da palavra, capaz de analisar o texto como um todo de sentido, por meio de uma gramática do discurso.

Partindo, assim, das idéias de Ferdinand de Saussure, para quem a língua é feita de oposições, Greimas observou muito bem que, à luz do pensamento estruturalista, o processo de significação (no âmbito da percepção) é construído por meio de continuidades e descontinuidades. Para ele, a única maneira de focalizar o problema da significação, na época, consistia em afirmar a existência de descontinuidades no plano da percepção e dos espaços diferenciais, noções essas que norteam a significação, por isso, não era necessário preocupar-se com a natureza das diferenças percebidas (GREIMAS, 1973, p. 27).

Os termos continuidade e descontinuidade, que davam ensejo a uma forma de análise relacional do sentido, e, portanto, não substancialista, são conceitos que não representavam novidade, uma vez que já provinham dos fundamentos da matemática. A linha reta, uma das noções desse campo, a qual possui um aspecto de apreensão contínuo, nada mais é, por

exemplo, que a junção de infinitos traços descontínuos. A partir do conceito de estrutura, nota-se o quanto a percepção de diferenças pode explicar e compor uma organização coerente do sentido. Nesses termos, admite-se que a estrutura é um sistema de relações entre, no mínimo, dois termos-objeto articulados. Para Greimas, “[...] perceber diferenças quer dizer captar ao menos dois termos-objetos como simultaneamente presentes” e também “[....] captar a relação entre os termos, ligá-los de um ou de outro modo” (GREIMAS, 1973, p. 28). Para que haja estrutura (sistema) é necessário, portanto, a presença de dois termos e a sua relação, seja pela identidade, seja pela diferença de sentido. Isso implica que um só termo- objeto não pode comportar significação e que, por isso mesmo, a significação pressupõe a existência da relação entre termos (ibid., p. 28). Dessa maneira, a natureza dessa junção deve ser formada por identidades e diferenças, de modo que:

1. Para que dois termos-objetos possam ser captados juntos, é preciso que tenham algo em comum (é o problema da semelhança e, em suas extensões, o da identidade).

2. Para que dois termos-objetos possam ser distinguidos, é preciso que sejam diferentes, qualquer que seja a forma (é o problema da diferença e da não-identidade) (ibid., p.29).

Os conceitos de continuidade e descontinuidade são apresentados na teoria Semiótica em uma dupla natureza, do tipo conjuntiva e disjuntiva. Em um exemplo proveniente da fonologia, a noção de continuidade e de descontinuidade é facilmente assimilável se se imaginar a relação de uma vogal com uma consoante. Enquanto o fonema /a/ apresenta um aspecto contínuo, fluído – uma vez que a corrente de ar passa com menos bloqueio possível pelo aparelho fonador –, um fonema como o /t/ possui um aspecto descontínuo, pontual, porque a corrente de ar é bloqueada rapidamente no contato da língua com a parte de trás dos dentes. Em suma, isso é o que caracteriza os fonemas oclusivos, plosivos, como /p/, /t/, /k/ e /b/, /d/, /g/. Nesse exemplo, há mais diferenças que semelhanças: a vogal é sonora, a corrente de ar é contínua, tem natureza prosódica e silábica; enquanto a consoante é surda, com bloqueio momentâneo da corrente de ar, de natureza segmental e não-silábica. Nesse caso, a natureza da relação é mais disjuntiva. Noutra comparação, entre /t/ e /d/, por exemplo, há mais semelhanças (relações conjuntivas) que diferenças. O único traço que distingue os dois fonemas é a sonoridade, presente em /d/ e ausente em /t/.

No que diz respeito a um exemplo relativo ao domínio da cultura, um ocidental que não fala mandarim, ao ouvir um chinês conversando, apenas nota o quanto essa fala articulada, tonal, não passa de uma linha contínua de sons incompreensíveis. Depois de um

inerentes ao seu sistema, passa a captar, onde apenas existiam ruídos incompreensíveis, o seu significado; isso ocorre em virtude de perceber as descontinuidades – por isso mesmo, as articulações sistemáticas – que dão sentido àquele idioma. Um esquimó vê uma descontinuidade de brancos na neve – esse povo tem vocábulos para vários tons de branco – onde um brasileiro, ao viajar para o pólo norte, apenas captaria um tom de branco contínuo, ao vislumbrar uma montanha de neve. Isto se aplica à geografia de um país tropical, onde não existe neve. Nesses exemplos, observam-se, portanto, formas diferentes – por meio de categorizações diversas – de conceber a estrutura lingüística. Greimas (1973, p. 36) compara o cromatismo do universo cultural inglês com o galês. Onde no inglês há uma gradação de quatro cores, que vai do verde, passa pelo azul, pelo cinza e termina no marrom, a cultura do País de Gales aponta somente três cores: o gwyrdd, o glas e o llwyd. O primeiro equivale aproximadamente à faixa de espectro do verde, o glas recobre uma pequena faixa dos tons do verde mais escuro até as tonalidades do cinza e o último seria um meio termo entre cinza e marrom. Conclui o mestre lituano que

Estas articulações sêmicas diferentes – que caracterizam, é claro, não somente o espectro das cores, mas um grande número de eixos semânticos – são apenas categorizações diferentes do mundo, que definem, em sua especificidade, culturas e civilizações (GREIMAS, 1973, p. 37).

A partir do estudo apurado das noções operatórias de continuidade e descontinuidade, oposição, contraste e semelhança, conjunção e disjunção, Greimas elaborou um modelo de estrutura elementar de significação. Essa estrutura de relação binária, noção que foi retomada em Sobre o sentido (GREIMAS, 1975), serviu de base para o lingüista lituano elaborar um modelo de descrição da significação, composto por uma gramática fundamental, uma gramática narrativa e uma gramática discursiva. O modelo teórico proposto, de previsibilidade sêmio-narrativa e discursiva, composto, respectivamente, por três níveis independentes – um imanente, um aparente e um nível de manifestação – foi denominado “percurso gerativo de sentido”.

Como observado na discussão sobre os conceitos operatórios de base e os níveis a ele relacionados, a Semiótica procura mostrar, em linhas gerais, que a linguagem não é apenas um sistema de signos – como previa Saussure – mas também um sistema de significações. Nesse contexto, teve muita importância o estudo da gramática narrativa. Para a sua formulação teórica, Greimas recebeu influência do estudo de Vladimir Propp, em Morfologia do conto maravilhoso, estudo em que observa a ocorrência de regularidades num universo de narrativas específico, em que propõe 31 funções invariáveis para o gênero “conto maravilhoso”. A partir

dessas funções, Greimas notou que o universo semântico dos contos era característica de uma relação entre dois grupos de oposição, de acordo com as categorias semânticas fundamentais do tipo “ordem vs. interdição” e “obediência vs. desobediência” (HÉNAULT, 2006, p. 132). A partir disso, Greimas reduziu as funções a uma macrounidade, a “prova”, que englobava de forma paradigmática três provas específicas: a qualificação, a principal e a glorificante (ibid., p. 133). Esses desdobramentos da ação tem a ver com três funções da narrativa:

a) o percurso de qualificação do sujeito chamado prova qualificante, na qual freqüentemente se vê o herói conquistar a espada ou o cavalo mágicos que lhe permitirão encarar a prova principal;

b) a ação decisiva, a chamada prova principal, na qual o herói realiza o mandato recebido;

c) a prova glorificante, na qual ele recebe uma aprovação (ibid., p. 136).

Segundo Hénault (2006), esse esquema canônico de três provas representava para Greimas um esquema ideológico, “[...] a memorização pela linguagem do sentido da vida, uma espécie de saber global sobre os encadeamentos de ações que fazem sentido na vida de um grupo ou de um indivíduo” (p. 141 – grifo da autora). Posteriormente, Greimas adotou um esquema em que adapta para o modelo de descrição do nível narrativo três fases, a manipulação, a ação (aquisição de competência e o seu desempenho) e a sanção, em que procurava demonstrar que não eram meras funções das narrativas que predominavam, mas representações de mudanças de estado. Em prefácio do livro de Courtés (1979), diz Greimas que “[...] se a [função de Propp] ‘partida do herói’ aparece como uma ‘função’ correspondendo a uma forma de actividade, a ‘falta’, longe de representar um fazer, designa antes um estado e não pode ser considerada como uma função” (p. 9)

A nova compreensão das funções proppianas, na qualidade de esquemas de ação e de estados, mais à frente, originou a concepção clássica da gramática narrativa. O seu modelo antropomórfico resume-se, segundo Barros (2002, p. 28), a duas concepções:

Transformações de estados e de situações, operada pelo fazer de um sujeito que age no mundo em busca de valores investidos nos objetos; sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contrato entre um destinador e um destinatário (comunicação e conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos-valor).

A estrutura narrativa opera entre – e se articula com – o nível fundamental e o discursivo. Ela organiza antropomorficamente as articulações mais abstratas do primeiro nível, dando o fundamento da busca do sujeito. É também a base para o nível de manifestação (o

discursiva), para, em seguida, receber o investimento de temas e figuras (na semântica discursiva). Abaixo, discutir-se-á, portanto, como o nível fundamental – ou das estruturas elementares – é antropomorfizado no nível narrativo e como a narratividade ganha consistência – rumo às estruturas de superfície – no nível discursivo.