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2 A PRÁTICA DE ENSINO E AS RELAÇÕES COM O CURRÍCULO, O LIVRO

2.2 A ESPIRAL REFLEXIVA DESENCADEADA PELO PLANEJAMENTO E

2.2.1 As Marcas e Amarras do Currículo: a Expressão Inicial

As análises das narrativas desenvolvidas (em um contexto no qual todos eram investigadores ativos) na produção de espirais reflexivas permitiu depreender as concepções de currículo.

Inicialmente, trago a análise da primeira aula, pois as narrativas constituíram-se como o lugar de expor e questionar pela escrita as certezas e incertezas decorrentes, refletindo e recapitulando os acontecimentos em diferentes momentos.

Foi proposto o desafio da escrita - as narrativas, explicando aos licenciandos os objetivos, ouvindo e elucidando suas dúvidas sobre como seria este processo. Por meio de exemplos expliquei que cada um seria autor de suas narrativas a seu modo, e, que faria o seu esforço de escrita e reflexão.

Também sabia que escrever não é tarefa fácil, que a cada aula teria que ir retomando a proposta, reexplicando, fazendo leituras das narrativas, para que os licenciandos sentissem mais segurança em suas próprias narrativas. Outrossim, tive cuidado para não expor seus escritos ao público, nem submetê-los a críticas excessivas.

Mesmo após todas as explicações, percebi na escrita de cada um, jeitos próprios de fazer narrativas. Quase metade da turma (25 licenciandos: L1, L3, L4, L5, L7, L8, L11, L14, L18, L21, L22, L24, L26, L27, L28, L31, L32, L37, L38, L41, L42, L43, L44, L47, L52, L53), nesta primeira narrativa, constituiu o que chamo de narrativas de descrição da primeira aula: anotações de cada passo e da lista dos momentos da aula. Saliento que seus escritos eram individualizados, típicos de cada um, sem qualquer cópia do texto de um pelo outro.

Acredito que a forma utilizada na escrita da narrativa, mesmo com ausência inicial de reflexão, de crítica, de pergunta, mas pode ser que estes licenciandos estejam tentando narrar e delimitar o que vivenciaram, mesmo que de modo descritivo. Seria uma perda de capacidade crítica ou atrofia da autorreflexão (GIROUX, 2007), ou trata-se de algo inusitado para eles e elas, já que nunca fizeram isto antes? A fim de orientá-los nas proposições destas escritas nas aulas seguintes

foram intensificadas leituras e oportunizados tempos mais longos para a reflexão oral e a escrita.

A formação para a reflexão implica em atitudes reflexivas relativamente ao ensino (MARCELO, 1995). Esta postura reflexiva foi assumida como constitutiva do papel de professora pesquisadora. Ainda, conforme Marcelo (1995), embasado no referencial de estudo realizado em 1930 por John Dewey, a primeira atitude para um ensino reflexivo é a mentalidade aberta:

[...] escutar e respeitar diferentes perspectivas, prestar atenção às alternativas disponíveis, indagar as possibilidades de erro, examinar as razões do que se passa na sala de aula, procurar várias respostas para a mesma pergunta, refletir de forma a melhorar o que já existe (MARCELO, 1995, p. 62).

Também acredito que ao longo da escrita da tese, foi possível perceber o quanto os licenciandos assumem a sua capacidade de reflexão crítica, principalmente nas escritas narrativas. Para contextualizar a primeira aula, retomo aqui um excerto da minha narrativa:

[...] “a turma é grande temos inicialmente na lista de chamada 65 alunos. As aulas acontecem em um auditório, no prédio da extensão do Campus. O prédio era um antigo Seminário, esta sala (auditório) possui um altar e relembra uma igreja antiga. A turma é barulhenta pelo fato de ter muitos alunos e a acústica não ser muito boa, temos que falar bem alto, ou usar o microfone. Antes de iniciarmos a aula, o professor regente foi logo organizando os licenciandos, chamando os que estavam fora da sala para que fossem entrando e se organizando. E assim também foi organizando o espaço, como se trata de um auditório, existem muitas cadeiras, e não existem carteiras, só a do professor, o que existe é uma cadeira de desenho, ou seja, cadeira com tabuinha. Parece que tudo o ambiente não condiz com um ambiente acadêmico. Já fomos logo estabelecendo algumas combinações com os licenciandos, para que evitem atrasos e já vão se organizando assim que chegam à sala, para que logo possamos iniciar a aula. Nesta primeira aula, percebi muitos olhares cansados, por se tratar de aula noturna. Os licenciandos se apresentaram e puderam contar brevemente um pouco de si, de onde vem, o que fazem, motivos de escolha do curso. O professor regente num primeiro momento se apresentou trazendo a sua história de formação, trazendo o entendimento do “porquê” e “como” se tornou professor de prática de ensino. Sua ligação com o curso. Também trouxe referenciais, e fez ligações deste componente curricular de prática de ensino com o ser professor” (Narrativa do diário de bordo, Professora Pesquisadora, 24 de abril de 2013).

Partindo da contextualização do cenário e dos acontecimentos desta primeira aula, destaco alguns excertos das narrativas expressas nos diários de bordo dos licenciandos em que alguns deles apontaram as angústias em relação a este componente curricular:

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“na primeira aula recebemos um choque de realidade” (narrativa do diário de bordo, L11, 24 de abril de 2013).

“início do semestre, uma nova disciplina, um novo professor, não só um, 2 professores! Bateu uma tensão! Porém com o passar da aula a ansiedade se foi” (narrativa do diário de bordo, L20, 24 de abril de 2013).

Ainda alguns registraram o seu compromisso com o componente curricular que se iniciava:

“esta disciplina será de suma importância a nós futuros docentes” (narrativa do diário de bordo, L10, 24 de abril de 2013).

“na aula de hoje aprendi e refleti que é preciso estudar de verdade, para assim seguir minha carreira, que é ser professora” (narrativa do diário de bordo, L40, 24 de abril de 2013).

“no começo eu fiquei meio perdido, pois para mim é tudo meio estranho, mas agora no final das explicações já não parece tão difícil” (narrativa do diário de bordo, L6, 24 de abril de 2013).

Também L17 apontou em sua reflexão:

“eu refleti e vi que essa disciplina vai ser muito boa para aprender muitas coisas novas que ainda não sei” (narrativa do diário de bordo, L17, 24 de abril de 2013).

L34 em sua primeira narrativa trouxe questões:

“será que estamos preparados para atuar como professores em sala de aula? O que estamos fazendo para melhorar? Quais são nossos medos, dúvidas e anseios?” (narrativa do diário de bordo, L34, 24 de abril de 2013).

Em suas narrativas alguns licenciandos demonstraram o quanto estavam ansiosos, angustiados e assustados com este componente curricular, acredito que foram muitos acontecimentos, para a primeira aula. Retomo o trecho abaixo de minha narrativa, em que trago percepções acerca dos licenciandos e suas reações frente ao questionário que responderam na primeira aula:

[...] “quando apresentamos o questionário aos licenciandos começaram a ficar mais apreensivos ainda, parece que queriam responder, mas tiveram que muito pensar, ler e reler as questões e alguns diziam: „como vou saber sobre planejamento, sobre material didático, sobre currículo, nunca entrei em uma sala de aula!‟ Neste momento incentivamos a todos com o fato de que estavam em um curso de formação de professores e que se ainda não tinham pensado sobre estas questões que já estava na hora de começar a pensar. Ao olhar para a estrutura do curso, percebi que esta turma de licenciandos, já havia cursado componentes de didática e currículo, e como então não saberiam responder? Passei a olhar novamente para o questionário, que me fez perceber que talvez as questões exigissem que pensassem e refletissem sobre estas temáticas, o que talvez não tiveram a oportunidade de fazer até o momento com relação a estes temas” (Narrativa do diário de bordo, Professora Pesquisadora, 24 de abril de 2013).

Percebo o quanto foi impactante para alguns a pergunta “o que é currículo?”, desenvolvida nas escritas narrativas da primeira aula, ao mesmo tempo em que foi extremamente importante esta provocação. Ainda mais, reconhecê-la, num processo de investigação-ação, como um “problema prático”:

“dando início ao conteúdo, a professora começou a falar sobre o currículo, ué? Currículo para mim é aquele documento que é feito para entregar nas empresas, lojas, quando se quer um emprego, nele está a formação profissional e os dados pessoais” (narrativa do diário de bordo, L20, 24 de abril de 2013).

“Na aula uma pergunta feita pelo professor exigiu muita reflexão de minha parte, mas acho que ainda não consegui atingir um ponto mais crítico em relação à concepção de currículo no ensino. Estou entusiasmada para prosseguir no estudo desta disciplina. Sei que ela me ajudará muito no caminho para formação do professor” (narrativa do diário de bordo, L46, 24 de abril de 2013).

Conforme Schön (1992, p. 85), “um professor reflexivo tem a tarefa de encorajar e reconhecer, e mesmo dar valor à confusão de seus alunos”; e foi este papel de professora pesquisadora reflexiva que assumi. Este papel, perante toda a apreensão gerada pela turma de licenciandos, precisava ser problematizado com mais leituras de artigos e livros sobre o tema, diálogos, escritas narrativas nos diários de bordo, leituras dos diários de bordo deles, bem como dos nossos. Essa foi a possibilidade de motivá-los no processo de escrita e reflexão, esclarecendo suas dúvidas e incertezas perante a proposta de prática de ensino apresentada e vivenciada. Além do mais desta maneira eles foram desafiados a atuar como investigadores-ativos críticos.

A investigação-ação é uma forma singular de investigação social, e conforme McKernan (2009) “tenta sustentar o julgamento e o raciocínio prático de profissionais em situações concretas” (p. 143). Pode ser definida como uma investigação colaborativa e coletiva, autorreflexiva, conduzida pelos participantes.

56 O currículo na teoria de McKernan (2009) pode ser concebido com um pouco de gosto e julgamento, testando o poder da criatividade, da pesquisa e da avaliação, evocando nossos melhores poderes de imaginação. L37, em sua narrativa, resgatou sua concepção de currículo reescrevendo e colocando a questão:

“minha primeira visão do que era currículo foi meio em um contexto geral, após uma melhor explanação sobre o tema, passei a ter este conceito. De fato nunca tinha feito-me a pergunta o que é currículo?” (narrativa do diário de bordo, L37, 24 de abril de 2013).

Assim também L49 retoma o conceito e busca uma reflexão:

“fiquei um pouco transtornado por não saber especificamente o que era currículo, me parecia ser algo comum, mas nunca parei para pensar nisso, acho que essa dificuldade, se deve pelo pouco contato que eu tive com leitura da área. Fiquei instigado em saber do que se trata, e em casa fiz uma breve pesquisa sobre currículo... fiquei transtornado. Como pibidiano, já devia saber há muito tempo de que se trata, pois é algo comum no contexto escolar. Mas enfim nunca é tarde para se aprender, melhor tarde do que nunca” (narrativa do diário de bordo, L49, 24 de abril de 2013).

McKernan (2009, p. 29), afirma que “as interpretações do currículo e da imaginação educacional são sempre a ideia de um pensador individual” e salienta que temos de pensar o currículo por meio do discurso e de conversa. Neste sentido trago L50 que relata sua insegurança ao escrever uma definição de currículo:

“Perguntei-me o que é currículo? Sem muito conhecimento prévio sobre o assunto procurei uma definição de currículo para aquele momento” (narrativa do diário de bordo,

L50, 24 de abril de 2013).

O licenciando cria e expressa seu conceito de currículo por meio da imaginação. Para McKernan (2009, p. 43), “a imaginação é um dos objetivos mais importantes da educação, ainda que seja raramente discutido de uma forma significativa”. O conceito imaginário se forja à medida que L50, assim como os demais licenciandos da turma dialogam com a teoria, com a prática, com seus pares, com os professores.

A proposta de fazer as narrativas em diário de bordo foi vista por L29 em sua primeira escrita como:

“vamos fazer uma espécie de escrita como faço no PIBID, através de diário de bordo. Alguns colegas ficaram apavorados com essa proposta, diferente de mim, que já relato minhas ações da bolsa há quase um ano. Mais uma vez percebo o quão importante é esta formação que construo diariamente como bolsista PIBID, e o quanto acrescenta na minha vida acadêmica” (narrativa do diário de bordo, L29, 24 de abril de 2013).

Aqui cabe uma pergunta, o licenciando vai se constituir professor, através da bolsa Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), ou através do curso de licenciatura? Caso a primeira opção estivesse correta, os licenciandos não pibidianos teriam uma formação diferenciada. Parte de minha reflexão sobre o PIBID está no trecho abaixo da narrativa de aula:

“pelo fato de uma parte da turma fazer parte do PIBID, e de que o professor titular é da coordenação deste programa, este fez ligações e explicou para os demais licenciandos (que não são do programa), a importância deste programa na formação inicial de professores, sendo uma política de estado, contribuindo para que logo seja propiciado a todos que se formam na licenciatura a iniciação a docência. Como professora, fiquei pensando que no tempo de minha graduação (2005 e 2008), não existia este programa. Que talvez teria feito uma grande diferença na minha formação e de todas a turma da época. Como fiz magistério nível médio, já durante o magistério, fiz estágio remunerado de monitoria em uma escola particular. Após concluir o magistério, fui trabalhar como professora em uma escola de educação especial, o que para mim foi um grande desafio. Depois quando iniciei o curso, trabalhava também como monitora e professora numa escola particular. O que me fez chegar ao curso de licenciatura com experiências e conhecimentos da docência. Me sentia muitas vezes perante a maioria da turma, como um “peixe fora d‟água”, pois a maioria nunca tinha entrado em uma escola, não fez magistério nível médio, e não tinha esse acompanhamento e apoio que o PIBID tem. Parecia que conseguia encarar as coisas com mais seriedade, assumindo este lugar da docência, ao fazer o curso de licenciatura, tinha sede de leituras, de refletir, de dialogar, encarava as disciplinas de prática de ensino e os relatórios como um grande compromisso, que estava contribuindo para minha constituição docente. Ainda existia em meu grupo de colegas aquelas que nunca entregavam o trabalho na data, ou seja, a falta de compromisso e de responsabilidade. Assim, fico pensando o quanto pode ser importante que este programa seja institucionalizado nos cursos de licenciatura” (Narrativa do diário de bordo, Professora Pesquisadora, 24 de abril de 2013).

Na licenciatura se formam professores. O PIBID é um programa do governo federal que vem contribuir para a iniciação a docência, que poderia ser oportunizado a todos nos cursos de licenciatura. É importante entender que na formação inicial são oportunizadas reflexões sobre a prática, imprescindíveis para o processo de constituição docente. Conforme Gómez (1995) assuma-se a prática e o pensamento prático e reflexão na ação, em modelo de formação de professores como artistas reflexivos. Assim acredito que a formação inicial pode ocorrer pela investigação-ação crítica e pela reflexão. No próximo capítulo evidenciei as relações constituídas entre os licenciandos, os professores formadores e os professores de educação básica,

58 com o livro didático, no contexto da prática de ensino e da formação inicial de professores, bem como suas influências na constituição do conceito de currículo, através de movimentos de reflexão crítica.

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Ver site: www.anped.org.br .

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O texto deste parágrafo foi adaptado do Plano de Ensino, construído e (re)elaborado pelo professor titular e a professora pesquisadora e autora da tese. O Plano de Ensino com o cronograma de aulas que estabelecemos em sua versão final, teve adaptações de algumas aulas durante o desenvolvimento deste componente curricular.

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3 RECOLOCANDO O LIVRO DIDÁTICO NO CURRÍCULO E NA FORMAÇÃO DA