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4 A TRANSFORMAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DAS CONCEPÇÕES DE

4.1 CURRÍCULO

Um primeiro movimento foi conceituar com clareza o que se entende por currículo, para então, relacionar e analisar as concepções apresentadas pelos licenciandos. A pergunta “o que é currículo?” provoca inúmeras respostas e reflexões sem uma definição única, apesar de sua aparente simplicidade, como afirmam Lopes e Macedo (2011). Num primeiro momento, assumo que o ponto de análise das respostas a pergunta “o que é currículo?” deve considerar o referencial de quem responde. O que pode ser um tanto comprometedor, pois, conforme Lopes e Macedo (2011), desde o século XX, os estudos curriculares têm definido currículo de maneiras muito diversas. Assim as autoras apostam no fato de que “não é possível responder a pergunta apontando para algo que lhe é intrinsecamente característico, mas apenas para acordos sobre os sentidos de tal termo, sempre parciais e localizados historicamente” (p. 19). Neste movimento, vamos sempre criando novos sentidos para o termo.

Entre as abordagens do tema, Goodson (1995) trata do currículo como a “invenção de uma tradição”12

, em que especialistas em currículo, historiadores e sociólogos da educação não podem ignorar, em substância, a história e a construção social do mesmo. O que se pode afirmar, parafraseando o autor, é que o currículo não é “coisa resolvida de uma vez por todas” (p. 23).

Ao estudar a palavra currículo, deparei-me com suas origens históricas e como sua definição foi forjada ao longo do tempo. Iniciando com o latim scurrere (curso ou carro de corrida), traduz-se na escolarização, conforme Goodson (1995), em um curso a ser seguido. Outro aspecto, levantado por Sacristán (2013), alerta para o fato de que esse conceito bifurca-se e assume dois sentidos:

[...] por um lado, refere-se ao percurso ou decorrer da vida profissional e a seus êxitos (ou seja, é aquilo a que denominamos de curriculum vitae, expressão utilizada pela primeira vez por Cícero). Por outro lado, o currículo também tem o sentido de constituir a carreira do estudante e, de maneira mais concreta, os conteúdos deste percurso, sobretudo sua organização, aquilo que o aluno deverá aprender e superar e em que ordem deverá fazê- lo (SACRISTÁN, 2013, p. 16).

Logo, é enfatizado que o currículo recebeu papel decisivo de ordenar os conteúdos (SACRISTÁN, 2013; GOODSON, 1995), ou “o que será ensinado?”, reafirmado por Tanner e Tanner (1975 apud LOPES; MACEDO, 2011, p. 20):

o currículo é definido como as experiências de aprendizagem planejadas e guiadas e os resultados de aprendizagem não desejados formulados através da reconstrução sistemática do conhecimento e da experiência sob os auspícios da escola para o crescimento contínuo e deliberado da competência pessoal e social do aluno.

Lopes e Macedo (2011) trazem a matriz fenomenológica, no sentido de pensar o currículo para além das distinções entre os níveis formal, oculto e vivido, assim entendem currículo como prática de significação, de criação ou de enunciação de sentidos. Qualquer manifestação do currículo, qualquer episódio curricular, é a mesma coisa: a produção de sentidos. Seja escrito, falado, velado, o currículo é um texto que tenta direcionar o “leitor”, mas que o faz apenas parcialmente (LOPES; MACEDO, 2011, p. 42).

O currículo escolar “é um lugar de circulação das narrativas, mas, sobretudo, é um lugar privilegiado dos processos de subjetivação, da socialização dirigida,

118 controlada” (COSTA, 1998, p. 51). Conforme a autora, em grande parte, é a escola que tem sido atribuída a competência para concretizar um projeto de indivíduo para um projeto de sociedade.

Se o currículo é uma prática desenvolvida através de múltiplos processos e na qual se entrecruzam diversos subsistemas ou práticas diferentes, é obvio que, na atividade pedagógica relacionada com o currículo, o professor é um elemento de primeira ordem na concretização desse processo. Ao reconhecer o currículo como algo que configura uma prática, e é por sua vez configurado no processo de seu desenvolvimento, nos vemos obrigados a analisar os agentes ativos no processo. Este é o caso dos professores; o currículo molda os docentes, mas é traduzido na prática por eles mesmos – a influência é recíproca (SACRISTÁN; GÓMEZ, 1998, p. 165).

O currículo pode ser atravessado e entrelaçado por múltiplos outros contextos cotidianos (CARVALHO, 2012, p. 196), em que cabe reconhecer “o lugar das práticas e teorias em currículo” (ALVES; OLIVEIRA, 2012, p. 61), já que para estas autoras, o currículo é criado pelos praticantes da vida cotidiana, tanto nos textos acadêmicos quanto nos discursos oficiais. Lembrando ainda que estes são produzidos pelos “praticantes pensantes dos cotidianos das diferentes redes educativas” (ALVES; OLIVEIRA, 2012, p. 65). Neste contexto “podemos dizer que no curso desta corrida que é o currículo, acabamos por nos tornar o que somos” (MOREIRA; SILVA, 2005, p. 15).

Explicitando melhor a importância do currículo, considero os apontamentos de Moreira e Silva (2005, p. 8) que o definem como sendo:

[...] um artefato social e cultural. Isto significa que ele é colocado na moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua história, de sua produção contextual. O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sócias particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal ele tem uma história vinculada a formas específicas e contingentes de organização de sociedade e da educação.

Conforme os apontamentos de Silva (2001), o que serve de pano de fundo na tentativa de compreensão de qualquer teoria do currículo é saber qual conhecimento deve ser ensinado, ou melhor, o quê deve ser ensinado, e para isso as teorias curriculares recorrem a discussões sobre a natureza humana, a aprendizagem ou o conhecimento, a cultura e a sociedade. E, também afirma que:

[...] uma teoria do currículo começaria por supor que existe, “lá fora”, esperando para ser descoberta, descrita e explicada, uma coisa chamada “currículo”. O currículo seria um objeto que precederia a teoria, a qual só entraria em cena para descobri-lo, descrevê-lo, explicá-lo (SILVA, 2001, p. 11).

As teorias do currículo estão intimamente envolvidas em questões de poder, quando enfatizam como o currículo deve ser. O poder é capaz de ditar uma identidade ou subjetividade ideal, a ser desenvolvida neste contexto. Neste sentido, a questão do poder relaciona-se com a diferenciação das teorias curriculares, podendo ser assim melhor exemplificadas:

As teorias tradicionais pretendem ser apenas isso: “teorias” neutras, científicas, desinteressadas. As teorias críticas e as teorias pós-críticas, em contraste, argumentam que nenhuma teoria é neutra, científica ou desinteressada, mas que está, inevitavelmente, implicada em relações de poder (Id., 2001, p. 16).

Percebi que as “teorias tradicionais acabam por se concentrar em questões técnicas” (SILVA, 2001), sem questionar o quê ensinar, preocupada apenas com a organização, concentrando-se em como fazer o currículo veiculador de ideologias. Em geral, elas consideram a questão “o quê?” respondida e preocupam-se com outra o “como?”. Já as teorias críticas e pós-críticas não se limitam a perguntar “o quê?” e sim “o porquê?”, estando preocupadas com as conexões entre saber, identidade e poder (SILVA, 2001).

Apoiando-se em Silva (2001), os conceitos oriundos de uma teoria direcionam nossa atenção para alguns aspectos que normalmente não veríamos. Deste ponto de vista, eles possuem a capacidade de estruturar e organizar a forma como vemos a realidade, em que a distinção das diferentes teorias curriculares ocorre pela análise dos conceitos empregados e a reação humana frente a eles.

McKernan (2009) apresenta um modelo de investigação baseado no processo, uma concepção de elaboração de currículo que vai contra a visão dos racionalistas técnicos. O currículo é uma experiência educacional contínua: um processo, em vez de um produto, uma tentativa de comunicar os princípios essenciais e as características de uma proposta educacional aberta ao escrutínio crítico e capaz de ser traduzido numa prática. O que lança o professor e os alunos no papel de investigadores com uma visão para melhorar a prática social por meio do currículo.

120 O autor descreve o currículo como uma tarefa atrativa da imaginação humana, como um ideal: “o currículo não é exclusivamente uma questão teórica, mas principalmente uma questão prática, envolvendo ações de seres humanos que farão uma diferença” [...] “ele constitui um desafio para a práxis” (MCKERNAN, 2009, p. 34). Define que “currículo é uma proposta que estabelece um plano educacional” (id., p. 32), currículo é definido pelo autor como proposta, na perspectiva de uma hipótese que convida a uma resposta de pesquisa.

A pesquisa-ação é concebida por este autor como “uma maneira tanto de aprendizagem quanto de conhecimento sobre nossa prática” (p. 143), é uma proposta que desencadeia a autorreflexão, na medida em que “não há desenvolvimento curricular sem desenvolvimento do professor” (id., p. 148).

Concordo com este autor, quando traz a afirmação de que o currículo não se reduz somente ao plano de ensino, ou “currículo como mera lista de tópicos, que talvez tenha levado a visão de currículo como „conteúdo‟ a ser cumprido” (p. 58). A compreensão mais alargada desse conceito possibilita reconhecer a importância de desenvolver um estudo que evidencie as relações entre currículo e livro didático na formação inicial de professores.

A investigação proposta em minha tese vai ao encontro das ideias de McKernan (2009), pois o autor também acredita no currículo como um processo de pesquisa-ação. Por esta via, o autor compreende currículo não como um produto, com “fins-meios”, baseado em resultados, mas sim um processo educacional, proposto antes por Stenhouse em seu Projeto Currículo das Humanidades. Para McKernan (2009, p. 114), “a verdade da educação é que ela está no próprio processo”, é a epistemologia do currículo, em que o professor se assume como pesquisador, um investigador ativo de sua própria prática, transformando suas concepções, no caso desta pesquisa suas concepções de currículo, desde o currículo/documento ao currículo/ação.