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As modalidades de acesso a livros de leitura

Com maior freqüência, o único indício do uso do livro é o próprio livro. Disso decorre também sua imperiosa sedução.

Roger Chartier

A opção por trabalhar com três modalidades de acesso a livros de leitura, 1, 2 e 3, deveu-se mais a motivos históricos e contextuais do que à determinação pessoal.

Partindo da hipótese de que, no processo de interação professor/aluno, a participação efetiva dos alunos na escolha de obras e textos literários é fundamental, surpreendi-me quando percebi que os alunos, em 1998, nas 5ªs séries A e B, não sabiam como efetuar

escolhas, não possuíam autonomia cultural para escolher livremente livros de leitura. Tendo diagnosticado que a maioria dos alunos lia obras indicadas pelo professor, decidi

reverter o processo.

Então, em um primeiro momento, propus aos alunos que apresentassem em sala o

livro que gostariam de ler. Muitos não o fizeram, outros voltaram com livros indicados na quarta série e outros, angustiados, apareceram com pilhas de livros debaixo do braço.

A partir deste resultado, solicitei às salas A e B que sugerissem uma alternativa para o problema. Os alunos decidiram, em sua maioria, que seria mais “prático se a professora desse uma lista”, e a partir dessa lista, eles escolhessem uma obra. Entretanto, alguns deles discordaram, afirmando que provavelmente os livros seriam “chatos” e eles escolheriam independentemente de qualquer lista.

Ao expressarem as suas expectativas, alguns alunos confirmam o diagnóstico do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS, apresentado no seu Guia de Leitura (1989,

p.1). Há uma lacuna entre as expectativas e inclinações dos estudantes e os critérios de seleção de textos literários pelos professores. Esta lacuna foi considerada como um dos

fatores da rejeição das leituras propostas na escola, prejudicando a contribuição desta à educação do jovem leitor.

Assim, apresentei uma lista com alguns títulos que não constaram das opções dos alunos. A partir de uma breve explanação sobre o assunto das obras, deixei claro que a lista era composta por obras sugeridas e não impostas. Desta forma, os alunos que desejassem ler outras obras que não aquelas elencadas poderiam procurar em casa, na

casa de amigos e familiares, na Biblioteca Municipal ou na da escola uma obra interessante. Esta seria o seu objeto de leitura.

Os resultados das escolhas comprovaram que nenhum aluno, mesmo entre aqueles mais exaltados, conseguiu libertar-se da lista. Quando o livro escolhido não constava da lista, ele já havia sido indicado por mim em outros anos para primos, irmãos ou amigos

dos alunos, ou ainda o livro tinha sido lido pelos alunos das 5ªs séries A e B, na terceira ou quarta série, por indicação de outra professora.

Os alunos, sem o dizer explicitamente, expressavam seu desconcerto diante da liberdade. Preferiam não se arriscar, adotavam livros que amigos, primos, irmãos,

tinham lido. Devido a este desconcerto, alguns alunos disseram que não “era assim” que eu deveria proceder. Eu é quem deveria escolher um único título, pois do contrário como elaboraria tantas provas diferentes e, ainda, como todos saberiam a respeito do mesmo livro? Além disso, eles “perderiam muito tempo” procurando livros. Esses

alunos revelaram um conceito prévio, um preconceito, criado pela escola e pelo ensino de literatura: apenas se lê para a prova, e aquilo que se lê é previamente determinado.

adquirir, ler a obra e fazer a prova. A escola produz uniformização: todos lêem e conhecem as mesmas obras no mesmo momento, independentemente dos diversos

estágios de desenvolvimento, que geram diferentes interesses e necessidades.

Ao negociarem suas opções, os alunos tornaram o espaço da sala em um espaço

de negociações conflituais. Nele, seres humanos estavam interagindo em diferentes níveis de aprendizagem. Cada opção revelava o estágio de leitura e competência do aluno. Após essas negociações conflituais, como são todas as práticas de leitura, segundo Sarita Maria Affonso Moysés (1996, p.222), eu e os alunos decidimos que,

para atender a todos, deveríamos operar com as modalidades 1, 2 e 3 de leitura. Dissertar sobre este acordo é tratar do primeiro momento de diálogo instaurado em sala de aula e principalmente da primeira tomada de decisão conjunta. Ficou claro para os alunos que todos deveriam ser ouvidos, e na medida do possível seus anseios seriam atendidos, porque foram expressos por meio da interação social. Houve, então, a criação

de uma situação em que os esquemas foram forçados a combinarem-se para construir novas estratégias, com as quais se superasse a “dificuldade” (problema). Segundo Lauro de Oliveira Lima (1998, p.211), esta é a ação que propicia o desenvolvimento da inteligência, pois opera com os seus dois vetores: a reconstrução do real (atividade

presentativa), e a modificação do real (atividade procedural). Na atividade de reconstruir o real, quando os alunos expuseram suas opiniões e aceitaram operar com as três modalidades de leitura, as estratégias reestruturaram-se e houve uma acomodação, segundo um mecanismo de equilibração majorante.

Eu pretendia que os alunos percebessem que compreender o real é importante desde que se perceba que ele pode ser modificado. Para tanto, é necessário que se

capacidade de modificar o real, de reconstruir a realidade. De acordo com Lauro de O. Lima (1998, p.212), para que haja aumento do nível vivencial, uma vez que não há

solução regressiva – contracultural –, a solução dos problemas do ser humano está na capacidade de resolvê-los pela inteligência. Pode-se concluir, então, que as

experiências vivenciais em sala de aula são fundamentais. A literatura, enquanto propiciadora dessas experiências, por meio da leitura, é insubstituível, pois desenvolve a inteligência ao promover a interação obra-autor-leitor.

Ao operar com as três modalidades propostas, objetivei ainda revelar aos alunos

uma postura que desejava fugir tanto da “imposição de leitura” quanto da aceitação do “ler o que quiser e quando quiser”. A primeira, segundo Maria do Rosário Magnani (1989, p.42-3), reforça o “des-gosto” do aluno pela leitura e pela literatura. Esta acaba por parecer “misteriosa”, gerada pela repetição e automatização de modelos. E a segunda diz respeito à “ditadura” do prazer, entendido muitas vezes como situação de

repouso e ócio, numa atitude de rebeldia aos “grilhões da sociedade capitalista”. Enfim, eu pretendia que a literatura, inserida em uma situação de aprendizagem, fosse prazerosa devido a um trabalho de criação no qual se busca a significação e do qual se sai acrescido, emancipado, porque se defronta com outras visões.

A partir da postura dos alunos, pude concluir que a questão não se restringia apenas à de dependência cultural; diagnostiquei a presença de outro fator: a do “autor- herói”, do qual trata Raquel L. Leite Barbosa (1994), aquele que fica sendo tido como exemplo de “boa leitura”.

Ao elegerem autores que, embora não constassem na lista de sugestões, tinham sido lidos por outros alunos em anos anteriores, por indicação minha, ou de outras

significados de valor. Para aqueles alunos, eu acolheria muito bem as suas escolhas, pois de certa forma eu, ou outra professora, já havia valorizado aqueles autores,

atribuindo-lhes significados. O problema, então, não era só o da dependência, mas também o do anseio de aceitação do aluno refletido na sua eleição de obras. Os autores

eleitos foram transformados em “arquétipo da excelência”, segundo Raquel L. Leite Barbosa (1994, p.192); uma vez que eram valorizados por professoras, conseguiram o que aqueles alunos acreditavam não poder. O autor é, então, o “herói” porque se lhe atribuem dons capazes de solucionar problemas ou realizar coisas irrealizáveis por

homens comuns. Nesse caso, ele possuía competência não só para realizar a performance de criar uma narrativa, mas também para ser aceito por professoras. Assim, enquanto eu procurava cativá-los, os alunos faziam o mesmo em relação a mim e não percebiam que eu buscava sobretudo o diálogo.

Pode-se concluir, então, que a leitura, conforme atesta Raquel L. Leite Barbosa

(1994), é uma questão lingüística, pedagógica e social ao mesmo tempo, pois se constrói em um contexto sociohistórico. Para conhecer o educando é preciso conhecer a sua “história de leitura”; desta forma pode-se ver sentido nas suas escolhas enquanto determinadas histórica e ideologicamente.

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