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Em busca de instrumentos

No documento A leitura dialógica e a formação do leitor (páginas 100-114)

CAPÍTULO II – OPTANDO POR SAÍDAS

3. Em busca de instrumentos

Mas leitura, quer do mundo, quer de livros, só se aprende e se vivencia de forma plena

coletivamente, em troca contínua de experiências

com os outros: é nesse intercâmbio de leituras que se refinam, reajustam e redimensionam hipóteses de significado, ampliando constantemente a nossa compreensão dos outros, do mundo e de nós mesmos.

Marisa Lajolo

Para catalogação do repertório enciclopédico de leituras dos alunos de obras narrativas, produzi com a colaboração dos alunos um “passaporte do leitor”. Para tanto,

utilizei-me de observações de Richard Bamberger (1995, p.28-30) sobre a criação deste instrumento nas escolas austríacas, com base numa experiência efetuada no laboratório de leitura da Associação de Pesquisa Científica de Chicago. Embora a obra em questão

tenha como título Como incentivar o hábito de leitura, expressão questionada nesta dissertação, pois apresenta a leitura como um hábito, sua contribuição para a

compreensão da relação leitor/obra/recepção é inegável. Além disso, de acordo com Laura Sandroni (1995, p.6), a discussão em torno da pertinência da expressão não tem sentido quando se compreende os objetivos propostos nas técnicas de incentivo à leitura apresentadas na obra. Esses objetivos são: aperfeiçoamento da formação do professor e

facilidade de acesso ao livro em sala de aula para que, a partir da criança e do jovem, se forme o leitor crítico, consciente dos seus direitos e deveres.

A escolha pelo “passaporte do leitor” foi motivada pela necessidade da criação de um instrumento que auxiliasse, tanto a mim quanto ao aluno, no acompanhamento, na observação e apreensão, entre 1998 e 2000, da construção da história de leitura de cada um. Ainda que o aluno percebesse que a produção escrita neste passaporte é um

intercâmbio válido de experiências culturais e de reflexões significativas, pois mobiliza o acervo de conhecimentos herdados que o aluno possui, ao mesmo tempo em que lhe

permite efetuar um constante relacionamento entre o horizonte anterior e o conquistado no presente. O passaporte é o representante da voz do aluno no universo da sala de aula.

Sua produção textual está relacionada à compreensão da participação individual em decisões mais amplas, ao desenvolvimento dos sentidos, emoções e raciocínio na escuta da sua própria voz. Assim, o “passaporte do leitor” proporciona ao aluno, ao lhe conferir “voz”, ser co-investigador crítico no diálogo pedagógico.

As narrativas eleitas para comporem o passaporte foram tratadas como elemento importante para o autoconhecimento de cada indivíduo em sua história de leitura, visando à elevação de sua auto-estima pessoal e sociocultural. A partir desta concepção, consideram-se, nesta dissertação, as vozes, representadas nos passaportes, dos envolvidos diretamente no processo pedagógico – eu e os alunos – o repertório central

de informação para a análise. A oralidade, na coleta de depoimentos, foi tratada como texto autobiográfico, ajudando a descobrir e valorizar os papéis social e político de cada pessoa no contexto da sala de aula.

Semelhante ao passaporte original, o “passaporte do leitor” metaforicamente

registra as “viagens” efetuadas no campo da narrativa pelos alunos. Reproduz-se abaixo o “passaporte”, comentando-o em seguida, campo a campo, de modo a explicitar os termos empregados e a singularidade do que se pretende coletar e analisar na recepção de obras em cada tópico.

O primeiro campo, a capa, assemelha-se à do passaporte original na centralização da expressão República Federativa do Brasil. Entretanto, difere por particularizar o

disso, especifica que tipo de “passaporte” é este: o do leitor. E, enquanto tal, é válido na área de Literatura, na aula de Literatura. Mais especificamente, é criação e

documentação do contexto da sala de aula e de um contexto sociohistórico mais amplo. O ano, no rodapé, refere-se ao início da confecção do passaporte:

COLÉGIO “SANTA MARIA” ANGLO/XERETA – ASSIS Educação Infantil - Ensino Fundamental - Ensino Médio – Vestibulares

SOCIEDADE PIONEIRA DE ENSINO S/C LTDA

REPÚBLICA FEDERATIVA

DO BRASIL

PASSAPORTE DO LEITOR

ÁREA DE LITERATURA - PROFª ELIANE – 1998

Figura 3 – Primeiro campo do “passaporte do leitor”: capa

No segundo campo, contracapa, observa-se a busca da fidelidade ao original com as expressões explicativas e apelativas nos idiomas: português, francês e inglês. Este

campo agrada ao aluno, pois exige sua assinatura, o que o valoriza, pois sem ela, o “documento” é inválido. Muitos alunos chegaram a “treinar” a assinatura, ou a criá-la,

pois não possuíam uma quando iniciaram a confecção do “passaporte”. Abaixo da assinatura segue o número do RG ou da matrícula na escola. A expressão Roga-se às

em caso de necessidade, foi comentada com humor pelos alunos. Eles alegavam que se

alguém se perdesse pelo “reino dos livros” iria precisar realmente de ajuda. Os alunos

ainda não conheciam o livro História sem fim, de Michael Ende, da viagem ao encontro de si mesmo que Bastian realiza por Fantasia e ainda não sabiam, como Ulisses e

Homero, que toda “viagem” é uma “odisséia”, assim como esta que se apresenta nesta dissertação.

Figura 4 – Segundo campo do “passaporte do leitor”: contracapa

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O exemplo acima e os subseqüentes que ilustrarão o “passaporte do leitor” foram retirados do “passaporte” elaborado pelo aluno Matheus B., de 11 anos, pertencente à 5ª série A, em 1998.

No terceiro campo, permanece a semelhança com o original, nos idiomas em que está escrito cada item referente aos dados pessoais. No caso, em primeiro plano, o nome

do aluno; em segundo, o lugar e a data do nascimento, seguidos do sexo; em terceiro, a filiação, com o nome dos pais. Este item chamou a minha atenção, pois alguns alunos

não sabiam o nome completo de seus pais. Tiveram que deixá-los em branco, procurar a secretaria da escola com o objetivo de obterem a informação desejada. No quarto plano, há três divisões: a primeira destinada à repartição expedidora, a segunda, à data de validade e a terceira, à data da expedição. No item Repartição expedidora, aparecem o

carimbo e a assinatura da diretora. A data de validade será preenchida no final da 8ª série. Esta marcará o encerramento deste processo de catalogação de “viagens”. A data de expedição está diretamente relacionada ao dia, mês e ano em que se deu início à catalogação de “viagens”.

Figura 5 – Terceiro campo do “passaporte do leitor”: dados pessoais, repartição expedidora, data de expedição

O quarto campo apresenta o espaço para a foto do aluno e para o nome e o cargo do funcionário que concedeu o “passaporte”. A partir de sugestões dos alunos, assinei

neste espaço todos os passaportes dos mesmos. Também percebe-se a utilização dos mesmos idiomas no item Nome e cargo do funcionário que o concedeu.

Figura 6 – Quarto campo do “passaporte do leitor”: foto 3x4, nome e cargo do funcionário que o concedeu

O quinto campo divide-se em dois planos: o do texto e o da classificação das leituras, ambos baseados no relato de Richard Bamberger (1995, p.29), quando ele expõe a “Introdução” escrita para as crianças no “passaporte” elaborado no laboratório

de leitura da Associação de Pesquisa Científica de Chicago. Entretanto, só se utilizam nesta versão três parágrafos adaptados de um total de nove no original, dada a

a descoberta de seus interesses pessoais de leitura e a mim, documentação para reflexão sobre a recepção de obras tanto eleitas quanto propostas. No original mencionado por

Bamberger, o interesse era outro: o de trabalhar com a velocidade de leitura e motivar as crianças a lerem, auto-avaliando seu tempo de leitura. Naquele contexto histórico de

1998, muitos alunos também possuíam problemas relacionados à competência lingüística na leitura. Contudo, quando o diálogo em sala de aula fez-se possível, eles próprios apontavam suas dificuldades, que posteriormente foram verificadas e, progressivamente, a longo prazo, sanadas. Essas dificuldades não se limitavam apenas à

velocidade de leitura. Na leitura espontânea feita oralmente, em sala, de pequenas histórias, poemas, contos, lendas etc., alguns alunos, apesar de motivados, não conseguiam se manter na mesma linha, liam outras palavras que não as impressas, precisavam manter réguas abaixo da linha que estava sendo visualizada e seguir adiante na leitura com uma marcação do texto, apresentavam dificuldades em manter o ritmo ou

a entonação que a pontuação pela sua presença estipula. Alguns não conseguiam ler de forma compreensiva até o final do período e uma minoria não controlava a velocidade de leitura de forma a torná-la inteligível para quem a ouve. A incompreensão era provocada pela velocidade excessiva. O tédio, para quem ouve a leitura, era provocado

pela soletração e pela retomada parcial de palavras ou fragmentos de palavras. Ainda na leitura silenciosa, alguns mexiam os lábios, sibilavam, soletravam discretamente, não conseguiam se concentrar ou mesmo terminar no ritmo da maioria. O primeiro plano, o do texto, com função apelativa da linguagem, exerce o papel de um convite a uma

O segundo plano, o da classificação, é muito importante não só pela motivação que inspira no leitor, mas também pela voz que lhe confere. Esse plano possibilita-lhe

instrumentos para registrar abaixo das indicações bibliográficas a sua impressão sobre a obra. Ao apresentá-lo aos alunos, procurei explicitar que qualquer leitor pode ou não

gostar de uma obra e que por isso não será penalizado ou impedido de prosseguir em outras leituras, ou de abandonar a primeira e optar por outra. Após análise pelos alunos da classificação apresentada, eles foram questionados sobre uma possível alteração na relação entre os números e as classificações. Os alunos alegaram que estavam

invertidos: “o menor número correspondia à melhor classificação e o maior à pior”. Segundo eles, era “diferente da escola”. Justamente por diferir, apresentar o inverso do que ocorre no contexto escolar, nas notas atribuídas por professores nas avaliações, eles decidiram por manter a relação. Não estariam os alunos desejando com isso um afastamento das “atitudes de alguns professores” que se preocupam somente em

O PASSAPORTE DO LEITOR

Quando desejamos viajar para outro país, precisamos de um passaporte. Da mesma forma, o passaporte do leitor nos ajudará a ir para outra Terra - ou melhor, para muitas outras terras. Essas terras pertencem a um mundo muito grande: o mundo dos leitores.

Quando uma pessoa sabe ler bem, não existem fronteiras para ela. Ela pode viajar não apenas para outros países, mas também no passado, no futuro, no mundo da tecnologia, na natureza, no espaço cósmico. Descobre também o caminho para a porção mais íntima da alma humana, passando a conhecer melhor a si mesma e aos outros.

Um bom leitor não somente encontra maior prazer nos livros, mas também pode pensar e aprender melhor. Isso é fácil de entender: as pessoas que lêem palavra por palavra, devagarinho, não compreendem a história nem as idéias. Com a prática, podemos aprender a ler de uma só vez cada grupo de palavras que não podem ser separadas, a ler depressa sem nos apressarmos e a compreender melhor o que lemos. Por essa razão, nosso passaporte é um instrumento que nos ensina a ler mais depressa e melhor e nos ajuda a progredir pouco a pouco. Para poder ver por si mesmo o quanto aprendeu durante o ano escolar e descobrir seus interesses pessoais de leitura, você registrará cada livro seguido de uma classificação sobre o quanto gostou dele:

( 1 ) muito; ( 2 ) é bom; ( 3 ) serve; ( 4 ) não muito; ( 5 ) nada.

Figura 7 – Quinto campo do “passaporte do leitor”: justificativa e critério de classificação

O sexto campo representa outro critério de classificação: quanto ao tipo de leitura realizada, ou seja, de modalidade de acesso ao livro de ficção. Para tanto, foram estabelecidos os seguintes códigos: (?) para leitura proposta pela professora; (?) para leitura opcional; (0) para leitura opcional entre as obras de um autor ou de vários autores indicados pela professora.

Vamos classificar também quanto ao tipo de leitura realizada: ( ? ) = proposta pela professora;

( ? ) = opcional;

( 0 ) = opcional entre as obras de autor(es) indicado(s) pela professora.

Os símbolos presentes no sexto campo foram escolhidos pelos alunos pelo fato de serem geometricamente simples, podendo qualquer pessoa desenhá-los, mas, como os

números, exigem seriedade e raciocínio na sua utilização. No plano do desenvolvimento mental das operações abstratas, a criação desses símbolos representa um pacto

democrático, portanto, com deliberações comuns e responsáveis. E representa ainda liberdade, enquanto participação ativa na elaboração de regras comuns para o grupo.

Assim, como resultado criou-se um documento, com registros feitos no decorrer de três anos, que refletia a história de leitura dos alunos e dos valores construídos e

admitidos nesse contexto sociohistórico.

A respeito das formas de acesso às obras e dos critérios que utilizavam em suas escolhas, os alunos foram entrevistados em sala de aula e em questões dissertativas. Essas respostas foram transcritas por mim em uma espécie de relatório de observação das reações em sala de aula. A partir destes questionamentos, concluí que, tanto na

modalidade 1, quanto na modalidade 3, os alunos elegeram uma narrativa que lhes agradou pelo título, pela capa, pela sinopse no final do livro, pela espessura, ou seja, pelo número de páginas, pelo autor já conhecido pelo aluno, pela indicação em revistas, em jornais, em sites de livrarias ou por alguém no meio escolar ou familiar. Logo, havia

entre os alunos, atuando nas suas escolhas, os três níveis – sensorial, emocional e racional – de que trata Maria Helena Martins (1994). Entretanto, alguns estavam presos somente ao sensorial, pois suas escolhas eram motivadas somente pelos aspectos visuais e táteis. Assim, como eu pretendia trabalhar com a leitura de forma democrática,

objetivando levar os alunos ao nível mais profundo, o racional, que envolve a reflexão sobre o texto ou sobre os recursos do autor, ou ainda, sobre os elementos contextuais

aquisição de competências mais profundas de leitura por meio da conscientização crítica da literatura como expressão artística e sociocultural.

Na modalidade 1, os alunos tiveram acesso à obra proposta por meio do acervo disponibilizado na biblioteca da escola ou do município, em sua própria casa ou na de

familiares e amigos. Quando necessário, adquiriram a obra por meio de livrarias de Assis ou da região, ou pela Internet.

Na modalidade 2, procurei assegurar oferta variada de obras tanto contemporâneas quanto não contemporâneas e leitura de obras cativantes que estabelecessem dialogia

com as obras eleitas pelos alunos. Ainda, procurei apresentar obras com boa aceitação por outros alunos da própria escola, em anos anteriores ou no próprio ano de 1998, com alta literariedade, com sucesso editorial, voltadas para o público juvenil, pertencentes a coleções com pretensões inovadoras, com autores consagrados por diferentes razões, com temas do agrado dos alunos. Foram propostas ainda obras cuja autoria era ignorada

pelos alunos, tais como as de Monteiro Lobato, Lígia Bojunga, Ana Maria Machado, Júlio Verne, Mark Twain, Oscar Wilde etc.

Na modalidade 3, procurei valorizar a autoria e confrontar por meio dos subseqüentes debates: temas constantes, estilo, uso criativo da linguagem

plurissignificativa, enfim o projeto estético.

O meu objetivo, ao proporcionar aos alunos a possibilidade de efetuar escolhas, tanto na modalidade 1, quanto na 3, foi o de procurar, em primeiro lugar, assegurar um equilíbrio entre o “querer” e o “dever”. Em segundo lugar, acompanhar essas escolhas e

analisar se ocorriam de forma autônoma. Em terceiro, descobrir quais são os interesses de leitura dos alunos de 5ª à 7ª série do Ensino Fundamental no período sociohistórico

No sétimo e último campo, mencionam-se a série e o ano referente às catalogações bibliográficas, por sua vez, seguidas de um número entre parênteses que

marca o quanto a obra agradou ao titular do passaporte e que tipo de leitura foi essa. Como exemplo de catalogação, obtém-se o seguinte resultado:

Figura 9 – Sétimo campo do “passaporte do leitor”: catalogação

É importante ressaltar que o passaporte é o mesmo para todos os anos, o que motiva o aluno a ser responsável em um processo de construção e manutenção

constantes deste material. Quando necessário, acrescentavam-se páginas ao “passaporte”, neste último campo. A catalogação ocorre por quatro anos e se encerra na 8ª série, ao término do período letivo.

Os alunos e a professora puderam perceber, nos quatro anos de construção do “passaporte”, que a democracia é uma conquista gradual e deve ser praticada até que

haja a superação de um comportamento egocêntrico. Se a princípio alguns alunos recusavam-se a construir seus “passaportes”, ou seja, a exporem suas opiniões, enfim suas “vozes”, como no passaporte apresentado como exemplo, cuja catalogação tem início em outubro, esta atitude foi-se modificando. Logo, a democracia não é um

produto final, mas uma tentativa constante de conciliação, estando também, em constante reequilibração. Seus mecanismos básicos imprescindíveis são a deliberação

anteriormente. De acordo com Piaget (1973, p.38), todo ser humano tem o direito de ser colocado, durante a sua formação, em um meio escolar de tal ordem que lhe seja

possível chegar ao ponto de elaboração, até à conclusão, dos instrumentos indispensáveis de adaptação, que são as operações da lógica.

Assim, quando os alunos puderam interagir democraticamente, participar da produção, conservação e divulgação das idéias, houve finalmente a cooperação, que, de acordo com Yves de La Taille (1992, p.20), é um método, pois possibilita chegar-se a verdades.

TRÊS ANOS DE CATALOGAÇÃO

No documento A leitura dialógica e a formação do leitor (páginas 100-114)

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