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As mulheres no percurso académico e profissional

4. Definição dos termos chave

1.2. As mulheres no percurso académico e profissional

Instalada em Lisboa, Olga Roriz começa as aulas de ballet na Escola de Bailado de Margarida de Abreu. Logo aí Olga destaca-se das restantes crianças que também ali davam os primeiros passos na dança. Mais uma vez, uma professora (não um professor) torna-se numa figura de relevo no seu percurso académico: também Margarida Abreu chama a sua mãe à escola e aconselha-a a matricular a filha no Centro de Estudos de Bailado, que funcionava no Teatro Nacional São Carlos, estávamos em 1964139. Então, outras duas mulheres tiveram um

papel decisivo na sua formação: Luna Andermatt e Vera Varela Cid. Com estas professoras, a coreógrafa chega também a fazer aulas particulares extra escola para melhor se preparar como bailarina. É no Teatro São Carlos que Olga Roriz tem contacto com os grandes nomes universais da música, opera e dança. Entre aulas, coreografias e participações em bailados, a pequena bailarina vive fascinada com este mundo do fantástico que passa pelo palco do São Carlos. Vê Martha Graham, um ícone fundamental da dança mundial. Vê e ouve a diva espanhola Montserrat Caballe. É aliás, com esta mulher que Olga Roriz tem uma história muito caricata e que a marcaria para o resto da sua vida:

Lembro-me de ver a Martha Graham, a Montserrat Caballe, lembro-me de assistir a Tristão e Isolda e dizer: - mas esta mulher está a morrer à uma hora! Mas como é que esta mulher pode estar uma hora a morrer! Mas adorava aquilo tudo, achava aquilo maravilhoso! Lembro-me de estar no camarote presidencial, a espreitar com a ponta do nariz de fora, porque não chegava ao balcão, e pensar: - mas ela nunca mais morre?!- Adormecia e ali ficava. Achava aquilo tudo tão espantoso, tão desastroso, tão fora, como é possível! Mas vi coisas muito boas, acho que nessa época o Teatro São Carlos era maravilhoso.140

Eram assim passados os dias de Olga Roriz, uma azáfama constante dentro daquele mundo que era o Teatro São Carlos. E não eram só os espetáculos e as grandes vedetas que fascinavam a pequena bailarina, era todo o invólucro: os cenários, os figurinos, as roupas, todo aquele lado teatral que acabaria por influenciar anos mais tarde o seu trabalho. Diz Olga Roriz:

Voltando à Montserrat Caballe, lembro-me de a ver cantar a Casta Diva, aquele monstro com uma voz de passarinho, e de repente, vira-se para o lado e dá um arroto! E eu pensar: - meu Deus que monstruosidade! – Não sabia que elas tinham de tirar o ar, e isso ficou-me na memória e acabei por usar isso numa das minhas coreografias. Fiquei a tremer, fui horrorizada para casa, fiquei num misto de horrorizada e faxinada! E depois sempre que ouvia essa música lembrava-me dessa cena. Esta história e outras foram muito importantes, influenciaram-me e formaram-me. Passava a vida rodeada de artistas, era uma miúda e passava a vida no colo dos artistas. As pessoas tinham os autógrafos dos grandes artistas da ápoca e eu passava a vida no colo deles!141

Mais tarde, a escola muda de direcção: Anna Ivanova, professora inglesa, assume a direção do centro e torna-se a sua grande mestra até à adolescência. A professora tinha fama de ser exigente e rígida e foi responsável pela formação de muitos bailarinos em Portugal.

139 Cf. Ibidem, 13-14.

140 Cf. Olga Roriz, Entrevista gentilmente cedida a Rui Pires, Anexo B, p. 119. 141 Cf. Ibidem, p. 120.

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Foi, aliás, esta professora a responsável por Olga Roriz frequentar um workshop numas férias de verão com o bailarino e mimo nova-iorquino Adam Darius, que, numa das suas aulas, lançou o repto às formandas para criarem e dançarem ao som da música, improvisando uma coreografia. Desse repto destacou-se a improvisação de Olga Roriz, e foi-lhe pedido que repetisse a coreografia para os seus colegas observarem142.

Em 1972, Olga presta provas para a Escola de Dança do Conservatório, e novos nomes passam a fazer parte da sua vida profissional: Júlia Cross, professora inglesa, e a sua assistente, Ana Pereira Caldas; Pista Monteiro, responsável pela parte de anatomia; Graça Bessa na notação; Anna Mascolo e Elisa Worm, que fazem agora parte do quotidiano de Olga Roriz143.

Outra mulher a cruzar o caminho da bailarina foi Elisa Ferreira, protagonista da primeira coreografia de Olga Roriz, e que confirma em definitivo a veia criadora de Roriz:

Também Olga Roriz considera que era uma mulher quem estava em causa: a Elisa Ferreira ficou conotada com as minhas peças depois de ter feito Lágrima. E, para mim e para muita gente, Lágrima é a Elisa Ferreira, é a imagem daquela rapariga. A força da peça também vinha da personalidade dela. A bailarina, hoje professora, recorda principalmente a intensidade: ainda hoje fico impressionada pela violência da peça. Tinha momentos fantásticos, era tecnicamente complexa e alguns movimentos eram mesmo perigosos. Nunca fiz um bailado tão bem ensaiado. Estava tudo marcado ao milímetro, com uma precisão matemática, mas era tão selvagem que parecia feito no momento. A estreia foi um êxito louco, o público ficou entre o chocado e o explosivo. (…) Aquilo trazia algo emocionalmente muito forte, muito inovador, usava uma música interessante, as pessoas eram mais pessoas, não eram objectos meio abstractos… A relação homem-mulher como uma coisa problemática de ter iniciado milhares de coreografias, mas aquilo era diferente. E marcou muita coisa.144

Lágrima (1983) estreia no grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian e foi um

êxito a todos os níveis, cimentando a ligação da coreógrafa com Elisa Ferreira, ao mesmo tempo que Olga Roriz começa ali a cunhar a sua marca pessoal na dança portuguesa:

Com Lágrima, a Olga empreende uma ruptura decisiva na orientação estilística da dança portuguesa. (…) Ela levou para o palco um pouco do que é a realidade da relação entre homem e mulher. (…) A Olga torna-se uma figura extremamente importante da dança em Portugal. (…) Aos jornais, que indagavam sobre o arrojo da peça (que impunha o decadentismo da artista alemã ao habitual decoro do público da Gulbenkian), a coreógrafa respondia: a canção baseia-se na agressividade, na energia, no histerismo, a que se aliam harmonias que me dizem muito. (…) Na coreografia quis exprimir a violência, a ternura, muito do que envolve o relacionamento amoroso. Pelo espaço da memória daquela mulher passam três homens: um homem terno, um violento e um intelectual. São três homens que podiam ter passado pela vida de qualquer mulher.145

Mas Lágrima, para lá de grande revelação, quer de Olga Roriz como coreógrafa, quer de Elisa Ferreira como bailarina, destaca-se ainda pela escolha musical muito pouco provável numa companhia de reportório como era o Ballet Gulbenkian - Nina Hagen, cantora alemã situada entre o punk e o rock e que acaba também por marcar esse espetáculo:

142 Cf. Mónica Guerreiro, Olga Roriz, p. 10. 143 Cf. Ibidem, p. 18.

144 Cf. Ibidem, p. 27. 145 Cf. Ibidem.

40 Não era só o movimento – carregado de uma violência física – que constituía uma afronta face ao lirismo vigente. Não era só a música, entre nós tão atípica quanto podia ser – que levou alguma crítica a referir-se-lhe ironicamente: heresia no templo Gulbenkian! Niana Hagen, a punk-rocker que tinha “traído” o bel canto, investindo a tratada voz de cantora lírica nas subversões que bem entendeu. (…) É verdade que a música era muito agressiva. (…) Porque dava à mulher uma importância sem precedentes no universo hierarquizado e convencionado que se vivia na dança – e na Fundação. Não raras vezes Roriz, ao recordar as dificuldades com que se deparou para conseguir vingar, evoca o Ballet Gulbenkian daqueles anos comparando-o a um androceu.146

Lágrima ainda hoje é considerada um marco da dança portuguesa, pelo lado inovador

e transgressor que trouxe ao panorama da dança nacional.