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4. Definição dos termos chave

4.2. Papéis atribuídos à Electra roriziana

4.2.2. Papéis sociais

O facto de a figura mitológica de Electra ter atravessado os séculos e ter chegado até nós, por si só já faz daquela uma referência cultural do ocidente, logo um ser social, que nos tem acompanhado, como se tratasse de uma figura imortal. Esta mulher faz-se presente e continuamente nos dá provas da sua existência. Ao que parece, veio para ficar.

Como refere Olga Roriz, a “atualidade dos conflitos geracionais, religiosos, políticos, amorosos, são todos muito semelhantes ao que se passa hoje.”307, o que nos remete para o

lado atual desta figura, que parece deixar de ser mitológica, para ser real. A coreógrafa dá existência a esta mulher ao dotá-la de características e sentimentos humanos: “é uma mulher privada, cheia de angústias e inseguranças.”308

Por outro lado, não podemos esquecer o “lado feminista” desta Electra, fazendo dela um ente político com capacidade interventiva, que contrasta com um lado mais mundano e próprio do género feminino, como são os vários objetos que usa e o seu gura-roupa. Electra é uma mulher que usa saltos altos e vestido, que coloca extensões no cabelo, que se arranja, como se fosse a uma festa, ou como se arranjasse para sair de casa, para ir passear no jardim, já que Roriz vê “esta mulher no exterior. Eu vejo sempre esta mulher no jardim.”309

Este seu hábito de estar no jardim sentada na cadeira seria talvez uma forma mais confortável, contudo, solitária, de esperar talvez pelo irmão e nesse lugar preparava o seu plano de vingança e magicava uma forma de “manipular o irmão, manipular as pessoas, o tempo, manipular a vida.” 310 São todas estas características e todos estes aspetos que

conferem a Electra uma existência social. Falamos de uma figura mitológica, mas poderíamos muito bem estar a falar de uma mulher de hoje, do agora, com as suas dúvidas e incertezas em relação ao seu futuro, que planeia a sua vida e o seu destino.

A Electra, de Olga Roriz, desmistificou ou trouxe à luz do nosso tempo uma nova Electra, muito própria. Parece que munida das mais eficazes técnicas do palimpsesto, Roriz faz surgir esta mulher das cinzas, qual Fénix renascida. A coreógrafa dá vida a esta mulher

306 Cf. Ibidem, p. 116. 307 Cf. Ibidem, p. 111. 308 Cf. Ibidem, p. 112. 309 Cf. Ibidem, p. 116. 310 Cf. Ibidem, p. 115.

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porque lhe pareceu que tinha no seu ADN um lado “feminista”, era “forte”, possuindo “um lado muito moderno, muito contemporâneo.”311 Continua Olga Roriz:

Não me pareceu um personagem de uma mulher muito longínqua, uma coisa que quase não tocamos, uma época que não tem nada a ver com a nossa. Estranhamente, ela é muito actual, nós somos seres humanos e não evoluímos assim tanto, o que evoluiu foi a tecnologia!312

Mónica Guerreiro define deste modo o papel social muito particular da Electra roriziana, que utiliza uma faca não como um instrumento tradicional de cozinha, mas como uma arma potencial:

Mas a singularidade da criação de Roriz está patente em outros sinais: principalmente, no carácter fragmentário da composição, feita de cenas cujo desenlace nos é vedado, sequências descontinuadas e quadros aparentemente desconexos, retalhos de vivências insistentemente interrompidos, que não deixam de si mais do que um indício, um rasto. Um resto que pode conter a familiaridade do que se reconhece ou o potencial perigo de uma faca afiada aos pés de uma filha severa. Como a luz e o som de talheres precipitados, esta Electra resplandece e fere ao mesmo tempo.313

É este lado humano, com todas as suas qualidades e defeitos, que Olga Roriz espelha nesta sua criação. É aliás, um dos objetos mais mundanos, uma cadeira, o elemento fulcral em toda a trama. É nesta cadeira, na “Electra Chaise”, que a protagonista “espera”. É inclusivamente a “espera” o leitmotiv que desencadeia o despertar da ação. De facto, a cadeira neste espetáculo imprime tanto o papel social passivo do género feminino, objeto ligado à espera no seio do lar, em espaços como a cozinha ou a sala (neste caso, o jardim), logo, simbolicamente à passividade e ao aprisionamento, como ao papel social da mulher aguerrida, já que ameaça com esse objeto, qual arma de arremesso, o público presente durante largos momentos. Isto mostra que, quando quer, a mulher não é um ser frágil, podendo munir-se dos objetos ligados à vida doméstica para demonstrar a sua força. Ou seja, trata-se de uma afirmação do género feminino. Confidencia-nos a criadora:

A minha primeira proposta foi exatamente a espera, uma mulher que espera, uma mulher que tem memórias, uma mulher que é muito sensível e feminina por um lado e ao mesmo tempo muito bélica. É uma mulher privada, cheia de angústias e inseguranças com todas as coisas que estavam à sua volta: passado, presente e a reflexão do futuro, faziam dela uma personagem muito rica, cheia de curvas e contracurvas, e que a mim me dava imensa matéria para fazer o solo. Mas se me pergunta o que é que a minha Electra tem como ponto de partida, é a espera. É a espera que desencadeia tudo o resto. Na minha peça, ela começa à espera, continua à espera e acaba à espera. Ela não sai daquela espera. (…) Ela acaba quase como começou, depois de mais de uma hora, ela continua à espera. O lamento, a luta, é algo contínuo. No final ela não está reconciliada, ela faz pura e simplesmente uma viagem pelo seu interior com tudo o que se passa à sua volta. (…) Neste início tinha de tentar chamar pela minha mãe, como um lamento, é só tentativa, porque não dizia nada, era mãe para a frente e (a palavra mãe ao contrário, eam), mãe para trás. Uma

311 Cf. Ibidem, p. 113. 312 Ibidem.

313 Cf. Mónica Guerreiro, “Figuras Mitológicas do Feminino em Olga Roriz. Isolda (1990-2009) e Electra (2010)”, in Ana Paula Pinto, João Amadeu Silva, Maria José Lopes e Miguel Gonçalves (org.), Mitos e Heróis. A Expressão do Imaginário, p. 596.

82 coisa que queria sair, como se chamasse a mãe, mas que estava preso cá dentro, não conseguia sair cá para fora.

Já no final, há uma espécie de volte face, era como se fosse eu, Olga, a deambular pelo palco à procura de Electra, que de repente entrava dentro de mim, e ficava muito dramática. Esse momento de fugir do personagem, e de entrar no personagem, brincar um pouco co a história que é tão dramática e cortar um pouco isso. (…) E depois acabava sentada no fundo, lá estava eu à espera, com os sapatinhos, à espera.314

A mulher forte e não passiva, que sai à rua ou parece ir sair pela forma como se veste e calça, não se confinando à cozinha, que podemos associar aos talheres, imprime a esta Electra o papel social de uma mulher emancipada e não de uma mulher submissa ao recesso do lar e ao matrimónio, como era apanágio de tradição grega e que persistiu em muitas culturas ocidentais, como sucedeu em Portugal até ao Estado Novo, cujo lema era Pátria – Deus – Família.

Que tipo de mulher será esta então? Terá Electra na coreografia o papel de filha? Será ela esposa? Terá um papel de irmã? Ou será simplesmente mulher? A bem dizer, quase que poderíamos afirmar que a Electra roriziana desempenha apenas o papel de mulher. No entanto, os espetadores mais atentos poderão encontrar nesta Electra a possibilidade de esta desempenhar outros papéis. Como poderemos verificar na entrevista que a coreógrafa gentilmente nos cedeu e que aqui incluímos no anexo A deste nosso trabalho dissertativo. Confrontemos então Electra com os papéis acima referenciados: será ela filha dedicada e subserviente? Esta resposta é-nos dada logo no início do espetáculo, quando a bailarina chama pela mãe. Este chamamento é mais um lamento, quase impercetível, como nos confidencia Roriz:

Eu queria dizer algumas coisas nesta peça, mas depois pensei, já tudo foi dito sobre este assunto, já foi dito, cantado, representado, escrito. Então pensei, que neste início tinha de tentar chamar pela minha mãe, como um lamento, é só tentativa, porque não dizia nada, era mãe para a frente e mãe para trás (a palavra mãe ao contrário é eam).315

O facto de a palavra “mãe” estar depois ao contrário poderá simbolizar a inversão de papéis atribuídos tradicionalmente e idealmente à mãe: protetora. Talvez por Clitemnestra ser uma ameaça para a vida de Electra e de aquela lhe ter assassinado o pai refletir-se-á linguisticamente na inversão das letras da palavra “mãe”.

Vejamos agora se há indícios de esposa nesta personagem: embora a interpretação de um espetáculo com estas caraterísticas possa ter um grande número de interpretações, tantas como o número de espetadores, não há na coreografia nenhuma alusão ou referência que nos possa levar a aferir desta qualidade.

Estaremos então perante uma Electra irmã? Durante todo o espetáculo o que vemos é uma mulher à espera e em desespero. Embora o público mais esclarecido conheça a história do mito, ou seja, sabe que ela espera pelo irmão para vingar a morte do pai, há quem não

314 Cf. Olga Roriz, Entrevista gentilmente cedida a Rui Pires, Anexo A, p. 112-113. 315 Cf. Ibidem, p. 112.

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saiba deste pormenor, logo, durante toda a ação, fica sem poder responder se esta mulher é irmã. Olga Roriz só no desenlace da trama volta a tomar da palavra lamentosa, pois se começou a chamar pela mãe, a coreografia termina com Electra a gritar pelo nome de Orestes. Ou seja, só no final do espetáculo o público (com conhecimentos culturais) percebe que esta Electra desempenha também o papel social de irmã, uma irmã desesperada à espera do irmão salvador.

Resta-nos confrontar Electra com o papel de mulher, que em nosso entender está presente durante toda a ação dramática e que se sobrepõe a qualquer outro rol, incluindo o de filha e o de irmã. Estamos perante uma mulher forte, inteligente, sensível, doce, mas também amargurada, mas nunca submissa. Roriz diz-nos que a sua Electra é “atual” e “intemporal”, mas também é uma mulher “cheia de angústias e inseguranças”, o que não a impede de ter um “lado feminista” e “forte”. Ela é também “moderna e contemporânea”, podemos até dizer que é vaidosa e se preocupa com a sua imagem, pois usa extensões no cabelo, calça sapatos de salto alto e usa um vestido a contornar o corpo, como se fosse uma mulher fatal, segura de si mesma, como se procurasse agradar a alguém, pondo em evidência todo o seu lado sensual, como se se produzisse para receber o irmão, pois não podemos esquecer a possibilidade de ela gostar de Orestes, não como irmão, mas como homem, como avança Olga Roriz: “O Orestes para mim era duplo, era amante e irmão, havia muita sedução, mais do que irmandade.”316 Ou seja, esta Electra é não apenas uma irmã desesperada à

espera de um irmão salvador mas também, ou se calhar, sobretudo, uma irmã incestuosa, donde a duplicidade da interpretação do desespero da sua espera: é a vingança ou o amor que ela espera em Orestes?

Não podemos também deixar de referir que esta Electra confronta o público, enfrentando-o de frente com os seios a descoberto. Que dizer desta ação? Será um momento de vulnerabilidade? Será uma imagem de força e enfrentamento do público? Ou estamos perante uma cena de sedução? A coreógrafa diz-nos que a “exposição do corpo, quando vejo o vídeo, sinto que é uma exposição frágil, mas para mim é força. (…) É uma imagem forte, mas eu sinto-me frágil.”317

Em suma, todos estes aspetos conferem a Electra uma existência social, antropomorficando uma figura mitológica numa mulher, com as suas dúvidas e incertezas em relação ao seu futuro, mas que também demonstra força, resistência e planeia a sua vida e futuro.