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4. Definição dos termos chave

3.1. Solo

Electra, de Olga Roriz, marca o regresso da bailarina e coreógrafa aos palcos como

intérprete, dando resposta a uma vontade pessoal, a uma “necessidade interior”, a algo intimo: “senti que estava na altura de voltar a esta viagem interior”, diz em entrevista gentilmente concedida233. Esta criação a solo de Roriz é em tudo diferente no que toca ao

processo criativo e do trabalho em grupo. Afirma a coreógrafa: “Nos solos sou eu a interpretar e a coreografar, é muito de mim para mim. Sai-me do corpo, há um diálogo entre o meu corpo e a minha cabeça.”234 É admirável esta capacidade de Roriz, que aos 56 anos

opta por voltar a criar e a interpretar um trabalho a solo. É sabido que o percurso de uma bailarina é curto, feito de trabalho árduo, e só uma ínfima parte consegue alcançar a posição e o estatuto de Roriz, como nos diz Mónica Guerreiro:

O percurso criativo de Olga Roriz, que teve início em 1978, com a estreia da sua primeira coreografia, reveste-se de uma singularidade assinalável, dado o alargado espectro da sua acção artística. A sua intervenção é multíplice e os seus talentos diversos: primeiramente e sempre como bailarina e coreógrafa, mas também, e de modo mais discreto, como pintora, realizadora, fotógrafa, desenhadora de luz, cenógrafa, dramaturgista, figurinista, encenadora.235

E mais adiante prossegue a ensaísta:

(…) Nas criações dançadas por Roriz redescobre-se a sua linguagem coreográfica: intérprete grandiosa, contrapões à impressionante entrega física uma energia dramática plena de densidade emocional, que sugere toda a espécie e maturidade da bailarina exímia que Roriz ainda é.236

Em relação a Electra, afirma a coreógrafa:

(…) houve pessoas do público que ficaram completamente fascinadas, e houve outras que não entenderam nada, só tiveram uma seca de uma hora, (…) e não perceberam onde é que estava Electra, não chegaram lá ou eu não cheguei a eles. Não houve meio- termo, ou adoraram ou detestaram.237

Esta discrepância de opiniões pode ser entendida, diz-nos Olga Roriz, se atendermos às características de um espetáculo de dança:

233 Cf. Ibidem.

234 Cf. Ibidem.

235 Cf. Mónica Guerreiro, “Figuras Mitológicas do Feminino em Olga Roriz. Isolda (1990-2009) e Electra (2010) ”, 2012, p. 586.

236 Cf. Ibidem, 593. 237 Cf. Ibidem.

64 O trabalho de criação coreográfica, que entre aspas, é muito mais “abstracto”, onde as palavras não existem, existem pelos gestos, pelos atos e pelas ações, pelo estado emocional dos sentimentos, onde o não verbalizar te abre um leque de possibilidades que não tem nada a ver com verbalização.238

Esta é uma das características do trabalho da coreógrafa, o seu cunho pessoal, como refere Mónica Guerreiro:

Trata-se – e será esse também um dos traços característicos do movimento de Olga Roriz – de evocações que, não deixando de satisfazer algum apelo narrativo, repudiam a estrutura sequencial ou a habitual composição de personagens, inventando uma malha cénica de alusões e significações que informa uma inequívoca leitura autoral. Nas suas representações, a coreógrafa elege um motivo, uma linha de actuação, uma qualidade ou um sentimento, que lhe servirá de condutor para um trabalho de composição de movimento, onde se decantará a nobreza de carácter ou a vileza, a contradição ou a coerência, a anagnórise ou a experiência agónica.239

Esta marca Olga Roriz ficará para sempre ligada à dança em Portugal, mesmo que bebendo o néctar criativo nos temas clássicos. A marca da contemporaneidade está lá, sempre, em primeiro plano, evidencia Mónica Guerreiro:

Mas são criações que não podem deixar de ser problematizadas, na pós-modernidade que vivemos, na perspectiva da sua pertinência face a um mundo crescentemente fragmentado e que dificilmente se espelha em referências unificadoras. Sabemos, contudo, como é abundante o conjunto de leituras contemporâneas com referência às narrativas míticas, um caudal que continua a emergir com a força e influência das grandes ideias – mesmo assim fazendo com que alguém se indague: o que podem ainda fazer estas figuras já tão trabalhadas?240

O facto de Olga Roriz ter optado por um solo e não por um espetáculo com um elenco maior de bailarinos faz com que o público concentre toda a sua atenção em Electra. Num solo, não há lugar à ambiguidade de quem assume o relevo: ela é obviamente a protagonista e tem uma autonomia absoluta, que dispensa qualquer parceiro(a) em palco. Os seus movimentos e as curtas palavras que profere no início do espetáculo – “Mãe!” e “Eam!” -, num tom de lamento quase impercetível concentram toda a intensidade nesta personagem. Isto poderá significar a solidão em que ela se encontra, abandonada que foi por aquela figura que uma filha a priori julga ser a sua primeira protetora e por isso tem muito peso num solo que a palavra “Mãe” proferida pela bailarina surja depois invertida: também o papel que Clitemnestra deveria ter como mãe foi invertido ao matar o pai de Electra e ao deixar à sua sorte a filha.

Roriz optou também por se expor fisicamente de um modo profundo ao ter optado pelo solo. No entanto, refere:

o que mais me custa é essa exposição, e é o que me dá mais prazer. (…) É uma disparidade completa, são dois pontos que se tocam. É o momento de deitar cá para

238 Cf. Ibidem.

239 Cf. Mónica Guerreiro, Figuras Mitológicas do Feminino em Olga Roriz. Isolda (1990-2009) e Electra

(2010), p. 588.

65 fora, sem estar escondido, a partilha e depois o que advém dessa partilha, seja para o bem, seja para o mal.241

No espetáculo Electra a entrega da coreógrafa é surpreendente em cena. A criadora mostra-nos facilmente uma forte carga dramática em termos emocionais, que conjugada com a força do seu corpo de bailarina experiente, permite atingir o intimo dos espectadores. Confessa Olga Roriz:

Há uma cena muito interessante, em que estou de costas, aquilo que sinto é uma coisa e a imagem que passa para o público é outra. Temos por um lado, a exposição, como uma Amazona, do tronco, que é muito masculino, forte, bélico, a força daquelas costas, do poder muscular como um homem. Depois, por outro lado, em que, para fazer aquilo, tenho de estar contraída e contorcer as costas como se tivesse espasmos dolorosos ou uma dor de alma.242

Este jogo de enganos, em que a coreógrafa sai sempre a ganhar, conduz o espetador para o seu enredo dramático, dando e tirando, onde uma coisa que se mostra esconde outra, onde uma imagem com um significado aparente pode ter outro completamente oposto, como enuncia a coreógrafa a propósito de um solo em que ela desnuda os seus peitos, algo que tem todo um impacto num solo pela razão evidente de ser a única bailarina em palco:

Eu expunha-me mesmo, esta Electra expunha-se, expunha os seios. (…) A exposição do corpo, quando vejo o vídeo, sinto que é uma exposição frágil, mas para mim é uma força. Exactamente ao contrário da cena onde exponho as minhas costas. É uma imagem forte, mas eu sinto-me frágil. Isso é interessante, os opostos, e para mim que sou mulher, só de sentir o ar que passava pelo meu peito, ali, no palco, com centenas de pessoas a ver, é uma força enorme, e poder ao mesmo tempo ser agressivo, desconfortável, o peito de uma mulher, por o público desconfortável! Claro que no início não me sentia completamente à vontade, mas era uma coisa que eu queria tanto, e fazia todo o sentido, aquela mulher não tinha problemas nenhuns, se era preciso mostrar o peito, aqui estou eu, e aquele peito era um peito maior do que ser só um peito.243

Sabemos que nas artes, particularmente nas artes de palco ou nas artes da representação, nem sempre, ou na maioria das vezes, o que parece ser é. É este espicaçar entre intérprete e espetador que nos faz sentir as famosas “borboletas no estômago” e que nos aprisiona e apaixona ao ver uma obra de Olga Roriz, detentora de uma capacidade criadora única.