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1.1 A AMAZÔNIA QUINHENTISTA NA HISTORIOGRAFIA

1.1.4 As narrativas como objeto de pesquisa

Na última década, alguns pesquisadores adotaram uma perspectiva de análise diferente das que vimos até o momento. Essa orientação é a que mais se aproxima das nossas intenções com o desenvolvimento dessa dissertação. Os relatos em si passam a ser vistos como objeto investigações e não mais como mera fonte de informações, destinada a outros interesses. Es-

71 FAUSTO, Os Índios antes do Brasil. Rio de Janeiro, p.42-43.

72Vide por exemplo: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: Os motivos edênicos no descobrimento

40 ses trabalhos são provenientes, principalmente, de cursos de pós-graduação e de projetos de pesquisa, vinculados tanto à seara dos historiadores, quanto à dos estudos literários. Importa a esses pesquisadores investigar tipologias dos documentos, estratégias narrativas, diálogos intertextuais, referências à tradição clássica e medieval, dentre outras questões. Tais procedi- mentos são de grande importância para esclarecer a intencionalidade do documento e a cons- trução de seu discurso interno, informações que irão servir inclusive para uma melhor utiliza- ção dos mesmos por aqueles que se valem deles como fontes.

Elsa Otilia Heufemann-Barría defendeu em 2000 a tese intitulada Raíces Medievales de las Crónicas Coloniales Españolas.73 A autora estudou as relaciones escritas por Gaspar de Carvajal e Francisco Vásquez, com a pretensão de demonstrar a presença do maravilhoso nos motivos literários e episódios por eles registrados. Mais do que isso, sustenta que os nar- radores foram responsáveis por uma ficcionalización de la realidad amazônica, utilizando la tradición medieval española.74 Heufemann-Barría detalhou essa “tradição” a partir da análise de alguns traços da literatura castelhana, salientando que naquele período a mescla de elemen- tos reais e fictícios era uma prática recorrente. A partir disso, estuda a disseminação dessa literatura no Novo Mundo, no que diz respeito a sua circulação e leitura.

O século XVI é avaliado como uma época em que ocorreu grande popularização da leitura, particularmente devido à difusão do invento de Gutemberg. O hábito corrente de leitu- ra em voz alta é visto como um fator que amplia, sobremaneira, o alcance daquelas histórias. Na Espanha e no Novo mundo, as novelas de cavalaria teriam constituído um gênero bastante apreciado, pois de acordo com a documentação explorada durante a sua pesquisa, seriam estes os livros mais solicitados pelos livreiros da América hispânica. Mesmo que os conquistadores da expedição de Orellana não tivessem lido a literatura clássica, certamente eram conhecedo- res dos detalhes da lenda das Amazonas, tendo em vista a popularidade desses romances. Se- gundo Heuffemann-Barría:

Probablemente después de lecturas como éstas, los conquistadores se sintieron estimulados a seguir el rastro de las amazonas, que se sumó a la influencia reci- bida de la tradición occidental del mito griego y al poder que esta leyenda ejercía en el imaginario de cada uno.75

73 HEUFEMANN-BARRÍA, Elsa Otília. Raíces medievales de las crónicas coloniales españolas: las Relaciones

del río Amazonas. Tese de Doutorado em Letras apresentada na Universidade de São Paulo. 2000.

74 Idem, p.18. 75 Id, p.167.

41 Oriunda dos estudos literários, essa pesquisadora está mais interessada em discutir o texto do que o processo histórico, como não é de se estranhar. O esforço em estudar as matri- zes culturais dos narradores é interessante, porém suas conclusões permanecem restritas ao universo cultural ibérico, como deixa claro desde o título de sua tese. Não pretendemos negar a influência das tradições gregas ou medievais, contudo, como já demonstrou Sérgio Buarque, elas não são as únicas. É preciso um esforço para entender o diálogo com os indígenas, bus- cando identificar quais traços de sua própria cultura foram assimilados pelos conquistadores, para só assim esboçar as raízes intelectuais dessas narrativas.

Em 2006, a historiadora Juliana de Castro Pedro apresentou a dissertação Embates pe- la Memória: Narrativas de Descoberta nos Escritos Coloniais na Amazônia Ibérica.76 Embo- ra o recorte temporal de seu trabalho compreenda preferencialmente os escritos do século XVII, a autora analisa os relatos quinhentistas no primeiro capítulo e contribui com algumas reflexões teóricas para o trato com esse tipo de documento. Castro Pedro sustenta que as nar- rativas de conquista estiveram sempre caracterizadas pela presença de três elementos descriti- vos: a geografia do território descoberto, os povos que o habitavam e os episódios que marca- ram seu descobrimento. A historiadora propõe ainda um quarto elemento, constituindo verda- deiramente o argumento central de seu trabalho, a ideia de que os relatos seriam responsáveis por estabelecer uma “memória do descobrimento”, a ser utilizada como legitimadora dos pro- jetos castelhanos ou lusitanos para a região.

Ao tratar das expedições de Alonso de Mercadillo, Francisco de Orellana e Pedro de Ursúa/Lope de Aguirre, Juliana de Castro Pedro se mostra interessada no processo de difusão dessas experiências, em sua capacidade de despertar a atenção das Coroas ibéricas, e mesmo de outros reinos, sobre a região. A Amazônia se torna famosa não apenas pelas eventuais ri- quezas camufladas pelas copas de suas árvores, mas também pela posição estratégica que seu grande rio passa a assumir. Os relatos funcionariam, de acordo com sua avaliação, como tes- temunhos de um “primeiro descobrimento”, uma legitimação dos direitos hispânicos sobre aquelas terras, tão próximas de seus domínios no Peru.

Entre 2005 e 2009, foi desenvolvido na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNI- SINOS), um projeto sob o título Cartografias da Floresta: As crônicas coloniais e o espaço amazônico, coordenado pela historiadora Maria Cristina Bohn Martins. A pesquisa teve por objetivo analisar um conjunto de narrativas relativas à Amazônia, produzidas entre os séculos XVI e XVIII, com vistas a compreender a inserção do espaço amazônico e de suas popula-

76 Cf. PEDRO, Embates pela Memória.

42 ções no universo cognitivo europeu, (...) analisar o conjunto das representações elaboradas neste corpus e avaliar possíveis práticas de intertextualidade.77

A classificação proposta por Walter Mignolo, que analisaremos a seguir, funciona co- mo um aporte teórico para os trabalhos escritos a partir do projeto de Maria Cristina Bohn Martins78. No tratamento conferido às relaciones do século XVI, a autora busca compreender como a escolha deste tipo discursivo é capaz de incidir sobre seu conteúdo. Carvajal, por exemplo, teria escrito nesse formato, com vistas a levar até o rei uma defesa contra as acusa- ções de traidor que pesavam sobre seu capitão. Além disso, a autora considera que as narrati- vas eram capazes de realimentar o interesse dos espanhóis pela floresta, pois a repercussão da viagem de Orellana estaria entre os fatores que estimularam a organização posterior da Jorna- da de Omágua e Dorado.

O tratamento das cartas e relaciones enquanto objetos de pesquisa, e não unicamente enquanto fontes, pode render vários proveitos, inclusive para o próprio conhecimento da Amazônia do século XVI. Esses documentos, conforme exposto ao longo desse item, já pas- saram pelos olhos, penas, canetas e teclados de inúmeros pesquisadores desde o século XIX, contudo, ainda que algumas questões pareçam completamente consolidadas, não é possível considerar que sua leitura esteja perto de atingir um consenso, ainda que momentâneo. As considerações mais conhecidas no campo da metodologia da história sempre apontam a ne- cessidade de conhecer as fontes, para melhor criticá-las e interrogá-las, de modo que, uma vez que as narrativas não são informações dadas, mas construídas em torno de um processo histó- rico, importa, cada vez mais, conhecê-las em seu processo de elaboração, circulação e absor- ção.