• Nenhum resultado encontrado

3.3 A CONSTRUÇÃO DAS IMAGENS SOBRE A MONTAÑA

3.3.2 As representações sobre os povos

As imagens que Pedro Cieza de León elaborou sobre os indígenas das montañas suge- rem a projeção da maior parte dos traços característicos dos antis, segundo os povos do alti- plano. Ele conhecia bem esses elementos, visto que dedicou um tomo inteiro de sua obra para descrever o período pré-hispânico. Seu interesse em aprender o quéchua, bem como seu diá- logo constante com os antigos membros da nobreza de Cuzco nos tempos em que for cronista de la Gasca, criaram oportunidades para que investigasse as informações que precisava para, dentro de suas limitações, compreender os códigos culturais utilizados por aquela sociedade. A partir disso, sua leitura sobre os antis ou os "povos da montaña" aparece monolítica, com pouquíssimos gradientes.

No livro Guerra de las Salinas, onde constam os seus relatos sobre as entradas de 1538,um dos primeiros contatos com os habitantes da montaña é apresentado durante a narra- tiva da "Jornada de Ambaya", quando os espanhóis hallaron algunos indios flecheros (...) é salieron á ellos é los flecharon á algunos de ellos, é por no tener yerba no murió ninguno.254 O arco e flecha constitui o armamento preferencial dos habitantes da montaña, apesar do alar- de feito pelas armas de fogo trazidas pelos conquistadores, o armamento indígena tinha a van- tagem de uma recarga mais rápida. Quando as pontas das flechas eram embebidas em veneno, prática não utilizada por esses índios que atacaram os homens de Pedro de Candía, o estrago provocado por elas poderia se tornar letal. Em toda a América existem relatos a respeito dessa prática.

Em uma passagem da "Jornada dos Chunchos", ocorre um confronto no qual se verifi- ca o recurso das flechas envenenadas:

119 los bárbaros vieron contra sí venir á los españoles, comenzaron con los arcos de les lanzar muchas flechas, haciendo grande estruendo é diciendo que á todos los habian de matar. Los españoles con las rodelas para protegerse de las flechas, pero eran tantas é tan espesas que hirieron á algunos de ellos é mataron á uno que habia por nombre Hernando Gallego, que no duró de la herida más que dia é medio con la vida, porque, según pareció, la punta de aquella flecha debia de es- tar untada con yerba pestífera.255

O cronista fornece mais detalhes sobre o modo como esses indígenas lutavam, ao mesmo tempo em que revela o juízo que faz desses indivíduos, em outro trecho sobre a entra- da de Pedro de Candía:

Los indios que entre aquellas montañas vivían, que no son muchos, á la fama de la venida de los españoles se juntaban, y estando un dia adobando el camino y echando rama en unas ciénagas, los bárbaros vinieron á la retaguardia é comen- zaron de flechar á los que en ella venían, é, á la grita que tenían, algunos españo- les con las ballestas é arcabuces mataron á algunos de ellos; é traían estos rústi- cos bárbaros en sus manos arcos, flechas, é unas rodelas de muy recio cuero de danta, con que se defendían de los golpes de las espadas.256

O ataque realizado pelas costas, favorecido pela vegetação cerrada e pelo melhor co- nhecimento do terreno e dos caminhos, pode ser entendido como a utilização de uma estraté- gia inteligente por parte dos naturais da terra, a fim de livrar-se de um grupo invasor muito numeroso. Justamente o fato de serem grupos pequenos lhes permite um deslocamento mais ágil, veloz e discreto, o extremo oposto do que acontecia com as expedições espanholas. Além do retorno do arco e flecha, os indígenas aparecem agora dotados de escudo feitos com couro de anta, constituindo outro dos equipamentos utilizados por eles para fazer a guerra.

Cieza de León classifica esses equipamentos como rústicos bárbaros. Essa classifica- ção é muito estimulada pela comparação que faz com os povos do altiplano, cujo modelo de civilização é muito mais próximo do que ele considera como o adequado. As armas dos indí- genas da montaña são vistas como primitivas e pouco eficazes, desde que não estejam com as

255 Id., Ibid., p.363. 256 Id., Ibid., p.342.

120 setas envenenadas, ao passo que por meio dos seus arcabuzes e balestras, eles conseguem debelá-los sem grande dificuldade. Em face ao que, segundo seu pensamento, constitui uma superioridade técnica e tecnológica dos castelhanos, o recurso que resta aos naturais da terra é a emboscada e os golpes traiçoeiros.

Havia outras artimanhas, elaboradas com o propósito de dificultar o reabastecimento dos espanhóis. Durante a passagem dos homens de Peranzures, na "Jornada dos Chunchos", os indígenas teriam recorrido ao seguinte expediente:

creyendo que hallarían algún poblado donde pudiese venir todo el real, para que, sustentándose en él, pudiesen pasar adelante á la noticia tan grande que tenían; mas no hallaron lo que pensaban ni tropezaron si no fué algunos yucales corta- dos, é las raíces ó yucas arrancadas y escondidas porque los indios, como tenían noticia de la venida de los españoles, habíanse ausentado é arrancado de aquella yuca, como decimos.257

Possivelmente cientes do grande trabalho enfrentado pelos expedicionários para ali- mentar um grupo tão numeroso, os indígenas retiram do caminho as raízes que poderiam con- tribuir para amenizar sua fome. O estratagema funciona e os espanhóis caem em desespero devido a privação de comida, acordando em retornar pelo caminho que vieram. Esse trecho demonstra, mais uma vez, que a grande vantagem dos índios da montaña consistia no melhor conhecimento do território em que viviam, com o qual estavam acostumados a lidar, sabendo usá-lo em seu favor quando se fazia necessário conter o avanço de invasores.

Acerca da cultura material daqueles povos, o relato de Cieza de León é mais pobre, talvez por conta de sua compreensão de que esta seria rudimentar. Há porém um trecho do qual poderemos tirar proveito. Em uma das refregas ocorridas na "Jornada de Ambaya", um natural da terra é capturado pelos expedicionários, sendo interrogado sobre a possibilidade de encontrar alimentos nos arredores, para dar de comer ao real faminto. Cieza de León reproduz o que teria sido a resposta:

nosotros no tenemos otra cosa que una pequeña casa cobijada con las ramas de estos árboles, é más armas que son estos arcos é flechas que veis, y el manjar que comemos es raíces de yuca que sembramos, é con ellas nos sustentamos é vivimos

257 Id., Ibid. p.375

121 contentos, y pensábamos que estábamos seguros de veros ante nuestros ojos; é por estos árboles hay monos é galos que con estas flechas matamos, é algunas- dantas, é vosotros no paséis adelante porque vais perdidos.258

A voz do indígena finalmente aparece, tornando essa uma passagem singular. Seu rela- to é frustrante para as expectativas dos espanhóis, tanto no que concerne o encontro de ali- mentos, quando a descoberta de províncias grandiosas. Não há sinal de agricultura intensiva, como aquela verificada no altiplano, isso torna improvável que consigam encontrar comida para tanta gente. A morada dos indígenas é simples, contrastando, aos olhos dos espanhóis, com as construções monumentais que esperavam encontrar.

De um modo geral, os povos que viviam na montaña só aparecem nas linhas escritas por Cieza de León em momentos de enfrentamento com as hostes castelhanas. Esses encon- tros costumam ser breves, com rápidas vitórias para o lado dos europeus. A ação dos nativos raramente tem por objetivo o confronto aberto, preferindo a adoção de estratégias e armadi- lhas a fim de atrasar ou ferir o maior número de invasores que for possível. Desse modo, é como se esses indígenas fossem um vulto, uma sombra que hora ou outra volta para tornar mais agudo o suplício enfrentado pelos expedicionários. Pouco se avança sobre a compreen- são da organização desses povos em Cieza de León.