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Certeau (2013, p.170), nos alerta que:

Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. A errância multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação de lugar – uma experiência é verdade, esfarelada em deportações inumeráveis e ínfimas (deslocamentos e caminhadas), compensada pelas relações e cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano, e posta sob o signo do que deveria ser, em fim, o lugar, mas é apenas um nome, a Cidade.

Como defendem muitos dos meus pares interessados e que fazem estudos com o cotidiano, fazer pesquisas nesta base teórica/metodológica significa não estar amarrado a um

lugar, mas é estar à procura desse lugar que, possivelmente, não poderá encontrar. Significa

também pular a cerca! Partilho com eles essa percepção dos estudos com o cotidiano. O paradigma dominante da pesquisa, baseada fundamentalmente em princípios positivistas, nos ensinou uma lógica do que é ciência e como se pode buscar o conhecimento para ser científico. Qualquer outra que não seja aquela, até certo ponto, é considerada como sendo não ciência e, portanto, permanecendo marginalizada.

A opção metodológica baseada nos pressupostos dos estudos do/com o cotidiano se justifica por perceber que a busca das experiências dos professores e constituí-las como formas outras para a sua formação continuada pode significar pular a cerca do que foi constituído. Luce Giard (2013, p. 09), ao fazer a apresentação do livro A invenção do cotidiano: artes de fazer, escreve:

Michel de Certeau é um destes espíritos anticonformistas e perspicazes. No cenário intelectual, é personagem especial, inconformado com os cânones de uma disciplina rígida, e cuja irradiação intelectual segue caminhos estranhos à lógica das instituições, quer estas se achem ligadas à universidade, à igreja ou ao Estado. [...], é também temido por sua crítica exigente e lúcida da epistemologia que governa em silêncio e profissão de historiador. É censurado por relativizar a noção de verdade, de suspeitar da objetividade das instituições do saber, por sublinhar o peso das dependências e das conveniências hierárquicas e, enfim, por colocar em dúvida modelos recebidos que fazem a fama da escola francesa de história (grifo meu).

É esse inconformismo ao instituído que move as pesquisas do/com o cotidiano. Inconformismo não apenas com a forma de produção de conhecimentos, mas também com a forma como os fenômenos educacionais são discutidos e apresentados aos professores e aos alunos. Esse modo vem guiando o nosso posicionamento diante de muitos fenômenos sociais.

Boaventura de Sousa Santos (2010) afirma que vigorou durante muito tempo um “pensamento abissal” (pp.31-32) e com ele uma visão “metonímica” do mundo (SANTOS, 2006). É um tipo de pensamento que valoriza apenas uma única linha de pensar, sendo o diferente considerado como um não pensar.

Pesquisar as práticas cotidianas dos professores do Ensino Básico em Moçambique implica mergulhar na vida cotidiana dos professores - pegar a lama dos lavradores. Só assim, quando for a lavar a sujidade da lama, terei percebido (é dessa forma que os garimpeiros dos diferentes locais de Moçambique encontram o metal precioso, ouro, para a sua sobrevivência) quão valiosas são as suas minuciosas sujidades, táticas e astúcias, para a formação de uma geração mais consciente e mais comprometida com o desenvolvimento do país.

O pegar a lama dos lavradores implica despir-se de todos os preconceitos, de todos os vícios e não considerar aqueles como objetos de pesquisa, mas sim como sujeitos que estão impactados no processo todo, isto é, considerá-los como sendo “um participante da pesquisa e não um informante” (ESTEBAN, 2003, p. 136). No meu entender, o informante não se compromete com a pesquisa, a sua função se limita apenas em fornecer a informação, mas o participante, esse sim, se identifica com o que está em pauta na pesquisa.

Nos estudos com o cotidiano, é preciso manter um diálogo comprometido com os praticantes. Importa despertar nos participantes uma perspectiva dialógica de modo a produzir um clima de confiança mútua entre todos os intervenientes da pesquisa. Freire (2014, p.110) afirma que “não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens”.

Assim considero a narrativa como fundamental para exprimir de forma espontânea os

fazerespráticas dos professores – as suas experiências. Apoio-me em Clandinin e Connely

(2015) para afirmar que a pesquisa narrativa “é uma forma de compreender a experiência” (p. 51). Se considerarmos a narrativa como uma forma oral ou escrita de contar histórias, sejam elas reais ou imaginárias, podemo-las considerar como sendo também uma modalidade discursiva. As narrativas são elementos que trazem um grande significado pessoal e que articulam o presente, passado e futuro através da (re)memorização, tentando trazer não apenas como o fenômeno foi, mas sim uma vida (re)memorada por alguém que já viveu.

Trabalhar com narrativas implica trabalhar com o conceito “participação”. Participar não significa apenas estar dentro de um determinado contexto. Participar é ter voz em um

determinado grupo: não basta que o indivíduo esteja presente, é preciso que seja ouvido e que suas ideias tenham um espaço no meio das outras ideias.

O processo de participação implica uma incessante negociação entre as partes. As sessões de conversas e entreversas possibilitam que o individuo tenha essa possibilidade de participação. Contrariamente à entrevista, as conversas permitem criar uma relação entre as partes envolvidas, por isso que, em uma entrevista, Eduardo Coutinho, perguntado sobre o que diferia a entrevista da conversa, respondeu:

Entrevistas e depoimentos são coisas para a História. São coisas que se fazem com especialistas. E eu trabalho com pessoas comuns. A pessoa conta um fato histórico. [...]. As conversas são conversas porque falo com pessoas anônimas – ninguém é anônimo, mas enfim... – relativamente comuns, ordinárias no sentido antigo do termo. Têm pouco a perder e por isso são interessadas (FROCHTENGARTEN, 2009, p.128).

São, com essas pessoas comuns e ordinárias no sentido certeuniano dos termos, que estabeleci contatos e recolhi fragmentos das suas ideias, percepções sobre as suas práticas e sobre suas experiências curriculares. São professores, alunos, técnicos de educação e mestres da comunidade que, em situações difíceis, quer em termos de condições de trabalho, assim como na valorização da sua profissão, estão dando o seu máximo para levar avante o processo de ensino e aprendizagem. Foram conversas mantidas em seu ambiente de trabalho, algumas em grupo e outras individualmente. Uma, assim como outra, designo, neste trabalho, de

entreversas, que são uma modalidade de conversa que é feita a partir de uma palavra geradora

e que se efetua sem que necessáriamente tenha uma prévia marcação dos encontros.

Nas entreversas, são colocados em pauta os pontos de vista entre os participantes evitando o processo de apagamento. Nesse tipo de conversas, existe apenas um elemento gerador e as pessoas vão expondo as suas ideias com a intervenção dos demais. O ouvido e os olhos devem estar apurados para abstrair os pontos de vista dos demais. As entreversas me ajudaram a falar com os professores, alunos e mestres da comunidade e a estabelecer um processo dialógico não restritivo.

Foi notório, durante o processo de produção dos dados, a participação dos envolvidos - cada um trazendo as suas contribuições, quer nos encontros com os professores da disciplina de Ofícios, com os alunos, quer na interação com os mestres das comunidades.

Os encontros com os professores de Ofícios se constituram em espaçostempos onde discutíamos, livremente, as nossas práticas e as nossas experiências. As Oficinas Pedagógicas

foram outros espaçostempo de encontro com diferentes saberesfazeres, das comunidades, dos alunos e dos professores. É essa forma de trazer os outros modos de produção de conhecimento para este estudo que chamo de entreversas – cada um traz a sua versão de forma livre e espontânea para o grupo, estando cada membro do grupo livre para se apropriar ou não da experiência do outro.

Assim, as narrativas dos professores e dos alunos foram importantes para manter um encontro com o outro, um nadar na piscina do praticante, o sentir a vida do professor e um resgatar do saber dos praticantes.

As narrativas são importantes nos estudos do cotidiano escolar não só por que elas nos ajudam a organizar saberes/conhecimentos: esses conhecimentos não são menos importantes que os considerados científicos por aqueles do Norte (SANTOS, 2010). Süssekind (2015) nos ajuda a pensar o que acontece nas escolas todo o dia, quando os professores e estudantes negociam e criam currículos. Com as narrativas, foi possível encontrar indícios de compreensão do cotidiano das escolas. Nadar na lagoa dos e com os praticantes, a partir das diversas formas da narrativa (oral, escrita ou por imagem), me possibilitaram entrar na luta pela melhoria das práticas pedagógicas dos professores e também das minhas práticas.

Uma narrativa é essencialmente oral e, como disse anteriormente, o pensamento dominante nos ensinou que a oralidade não é ciência. Aliás, Mia Couto (2011) escrevia em seu texto sobre “quebrar armadilhas” que uma das armadilhas que no meu entender tinha que ser desarmadilhado era pensar que a sabedoria tinha residência exclusiva no universo da escrita, olhando dessa forma a oralidade como sinal de minoridade. Mia Couto ainda continua a sua alocução nos alertando que:

A mais importante linha divisória em Moçambique não é tanto a fronteira que separa analfabetos e alfabetizados, mas a fronteira entre a lógica da escrita e a lógica da oralidade. A absoluta maioria dos mais de 20 milhões de moçambicanos vive e funciona num tipo de racionalidade que tem pouco a ver com o universo urbano. Mas, em Moçambique, como no resto do mundo, a lógica da escrita instalou-se com absoluta hegemonia (COUTO, 2011, p. 102).

A importância da escrita, relativamente à oralidade, subjaz, porque sempre fomos ensinados que se leem livros, ou textos escritos, mas como o próprio Mia Couto diz também se lê “emoções nos rostos”, diversos sinais que nos aparecem no nosso cotidiano. Fazer um estudo recorrendo, predominantemente, a narrativas e a conversas com os professores me permite

desconstruir essa lógica de separação entre a escrita e a oralidade, entendendo que a oralidade alimenta a escrita num processo de permanente cumplicidade.

O trabalho com narrativas (orais, escritas, imagens, etc.) justifica o embasamento deste estudo na pesquisa narrativa. Quando a palavra não dá conta de dizer tudo que precisar falar, a imagem constituirá o meu grande aliado.

As conversas, sejam elas em forma de rodas ou não, vão acontecendo ao longo do trabalho. A partir de uma perspectiva de pesquisacom (PÉREZ, 2015), a conversa precisa ser entendida como um meio de formação, onde se trocam experiências, se discutem diferentes pontos de vista, onde os integrantes desabafam sobre suas atividades, suas práticas ou suas experiências e suas angústias laborais. É dessa forma que Moura e Lima (2014) entendem a roda de conversa como uma forma de produzir informações onde o pesquisador se insere como sujeito de pesquisa pela participação na conversa e, ao mesmo tempo, mergulha no âmago dos praticantes. Essa forma de pesquisa constitui um importante instrumento de partilha de experiências e desenvolvimento de reflexões sobre práticas educativas dos sujeitos num processo de interação entre os participantes.

O participar numa pesquisa com o cotidiano não se resume num simples fato de estar presente. Para isso, Brandão (1984) amplia os nossos horizontes ao afirmar que participar deve ser entendido como uma forma de criar com o poder de presença o direito de intervenção daqueles a quem a lógica do arbítrio destina lugares à margem da lógica e da cultura na sociedade.

A forma como apresento as falas das conversas/narrativas - articulando os diferentes intervenientes, sejam professores, membros da comunidade com algum ofício, alunos e técnicos do INDE - obedecem ao princípio de redes. Esse princípio se evidencia ao longo do texto não apenas por constituir uma tese feita de forma aberta e tecida por múltiplas mãos, mas também, embora organizada em capítulos, a estrutura textual impregna esse princípio, pois as partes constituintes se relacionam e dialogam entre si na tessitura do texto à medida que a realidade da escrita vai fluindo vou apresentando os meus amigos de pesquisa, sem me interessar o lugar que ele ocupa quer na Zona de Influência Pedagógica ou num outro contexto da educação moçambicana. Como se poderá depreender, estão envolvidos nesta pesquisa quatro grupos de elementos educativos (professores, alunos e técnicos ou que foram técnicos da educação) e, mais tarde, entram em cena os mestres da comunidade, na realização das oficinas pedagógicas.

Para trazer essas experiências e momentos de troca de experiências entre professores, foram organizados dois encontros entre os professores das ZIPs abrangidas que visavam não apenas lhes explicar os propósitos da pesquisa, sobretudo, de forma espontânea se pronunciar das suas atividades e narrarem suas experiências. Além desses encontros, foi organizado um seminário na EPC de Muecate-sede envolvendo professores da ZIP, com propósito de discutir as práticas na disciplina de ofícios. Esses encontros alargados foram seguidos e/ou intercalados com conversas individuais com professores do 3º ciclo do ensino básico de quatro escolas que lecionam ou tenham lecionado a disciplina de Ofícios. Essas conversas abrangeram também dois (ex)técnicos do Instituto Nacional de Educação (INDE) que estiveram envolvido na concepção do currículo do Ensino Básico que entrou em vigor em 2004, além de um ex coordenador de um projeto de formação continuada de professores – CRESCER. Posteriormente, foram organizadas duas Oficinas Pedagógicas em duas escolas.

Embora o plano inicial contemplasse três locais para as oficinas, elas só aconteceram em dois. Aliás, é bom recordar que o cotidiano é um lugar de imprevistos. Não foram apenas os professores, os alunos e os mestres das comunidades a participarem das Oficinas Pedagógicas. Na EPC da Barragem, por exemplo, uma funcionaria administrativa participou na Oficina de forma espontânea, o que revela, de certa forma, a abrangência - assim como a potência que tem as atividades manuais na sociedade.

As oficinas pedagógicas foram produzidas/realizadas tendo como fundamento os

círculos de cultura de Paulo Freire, e são consideradas, nesta tese, a partir de três perspectivas

distintas: (i) Oficinas como metodologia de formação continuada de professores; (ii) Oficinas como metodologia de pesquisa e, (iii) Oficinas como uma ação pedagógica.

Embora o círculo de cultura fosse usado no âmbito da alfabetização de adultos, entendo que, como ferramenta politicoepistemológica, pode ser útil também em outros contextos como a formação continuada de professores, assim como nas ações que visam uma maior interação entre a escola e os membros da comunidade - na pesquisa, trazendo à escola os mestres de diferentes ofícios para partilharem os seus saberes com os alunos e com os professores. As palavras e as frases geradoras podem ser usadas pelos alunos e pelos professores para aprofundar na disciplina de Ofícios - não apenas a utilidades das diferentes atividades ali desenvolvidas, mas também podem servir para aprofundar a leitura e escrita na dimensão antropológica.