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Moçambique é um dos países cujo magistério é composto por uma maioria masculina. Dados de 201429 demonstram dos 143.558 professores só 37,7 % são professoras. Dessa forma, neste trabalho, uso gênero masculino para me referir tanto a professores como a professoras. A maior percentagem de homens como professores deve-se ao fato de que, desde os mais remotos tempos, as mulheres detêm o controle da produção e dos meios de subsistência, sendo responsáveis pelos cuidados da família. Suas obrigações, de um modo geral, não lhes permitem frequentar a escola, mesmo com a obrigatoriedade de conclusão do Ensino Básico. Ainda mais difícil é prosseguir nos estudos até chegar ao Curso de Magistério.

Não tenho como intenção, nesta tese, menosprezar as importantes lutas que procuram garantir o direito das mulheres à educação, à cidadania e à ampliação de sua participação social no âmbito da sociedade moçambicana. Em Moçambique, a “questão feminina” é uma questão de Estado. O Ministério do Gênero, Criança e Acção Social, busca, por meio da Direção

29 Direção Nacional de Planificação e Cooperação/Ministério de Educação. Estatística de Educação: Levantamento escolar, 2014. Maputo, julho de 2014.

Nacional do Gênero, desenvolver ações que visam trazer à superfície e colocar no centro das atenções as necessidades das mulheres moçambicanas, bem como suas valiosas contribuições em diferentes áreas da sociedade.

A maioria masculina na profissão docente se justifica pelo fato deste grupo de sujeitos ter se beneficiado da formação acadêmica e de oportunidades de trabalho ao longo do tempo em detrimento das mulheres, que se viam (quando jovens) obrigadas a ficar em casa para cuidar de atividades domésticas.

Em Moçambique, assim como a maior parte dos países africanos, a mulher desempenha papel de mãe, passando grande parte do seu tempo entre os cuidados e a manutenção do lar e a educação dos filhos. Nesse aspecto, o papel da mulher é fundamental no que se refere a um processo educativo centrado na perpetuação dos valores ancestrais, na manutenção da cultura e dos hábitos e costumes locais e na preservação da língua nativa: a maioria das mulheres, principalmente, nas zonas rurais, não fala português, pelo contrário, a vida cotidiana se organiza e se estrutura por meio da língua local.

Embora o governo moçambicano tenha apostado na emancipação da mulher como uma das suas prioridades depois da independência nacional, até os dias de hoje tal pretensão constitui uma utopia a perseguir, pois ainda se encontra arraigado, em alguns círculos da sociedade, a ideia de que a mulher deve estar envolvida apenas com atividades domésticas, apesar de, nos últimos anos, Moçambique ter tido uma primeira ministra (Luisa Dias Diogo) e uma presidente de Assembleia da República (Verônica Nataniel Macamo Ndlhovo) e diferentes ministérios liderados por mulheres.

A província de Nampula, minha terra natal e onde tenho desenvolvido as minhas pesquisas nos últimos anos, é atravessado por uma linha férrea - o chamado Corredor de Desenvolvimento do Norte (CDN)30 - que liga Moçambique ao pequeno Estado do Malawi. Todos os dias, o trem passa sobre os mesmos trilhos, mas não é a mesma viagem. Mesmo que esteja na mesma composição, dois vagões não fazem a mesma viagem – nos mesmos trilhos se fazem diferentes viagens.

30 Neste corredor, será desenvolvido um projeto largamente contestado pela sociedade civil que envolve os governos de Moçambique, do Brasil e do Japão, o chamado PROSAVANA.

Essa imagem aplica-se também às práticas dos professores e de profissionais de outras áreas. Nunca temos uma ação repetida, mesmo que pensemos estar a repetir, estamos realizando outra atividade, em um permanente processo de (re)criação.

Neste trabalho, busco essas viagens nos trilhos que estão sendo feitas pelos professores da disciplina de Ofícios. Procuro trazer, nesses trilhos, as viagens que também acabaram se tornando minhas, a partir de memórias e de narrativas dos praticantes, uma vez ter percebido que cada um desses praticantes tem uma história por contar. Tendo emprestadas as palavras de Ferraço, Perez e Oliveira (2008, p. 21), “são essas histórias, permeadas nas práticas pedagógicas cotidianas constituindo memórias coletivas submersas do magistério, que nos alertam para a necessidade de ouvir as vozes da escola para problematizá-las e dialogar com elas” (grifo meu).

Ouvir e viver as vozes submersas me permitiu ter outra forma de ver as práticas ordinárias do sujeito (professor/aluno), visto que, desde os tempos que lá se foram, as pesquisas que são realizadas sobre os viajantes dos trilhos das escolas se manifestam em traduções – e, como aponta Ferraço (2008), toda a tradução comporta riscos de erro.

Na pesquisa das práticas dos professores da disciplina de Ofícios no Ensino Básico, não me interessa ser mais um tradutor, mas sim experienciar com esses sujeitos da escola os diferentes processos da sua atividade, de modo a produzir do que coletar dados e intercambiar as nossas histórias.

Estou ciente de que os caminhos adotados para produzir dados nas pesquisas com o cotidiano implicam não só aceitar a ideia segundo a qual os praticantes do cotidiano escolar “mais do que objetos de análises, são, de fato, ‘também’, sujeitos protagonistas e autores das pesquisas” (FERRAÇO, 2008, p. 27), mas também, estar, ao mesmo tempo, a procurar me compreender como praticante do processo educativo. Dessa forma, este trabalho confunde-se com o meu percurso de vida, embora o trabalho não siga perspectiva autobiográfica.

Considerando o processo educativo como um processo que busca o desenvolvimento da pessoa humana na esfera intelectual, moral e física e sua inserção na sociedade, ele ocorre em um processo de troca de experiências. Essas experiências são fios que compõem diversas redes que são costuradas e recosturadas ao longo do tempo.

Entendo que buscar essas experiências junto aos professores foi também reconstruí- las e, a partir delas, refletir as possibilidades de formação continuada, nas diversas redes de convivência profissional. Como dizem Perez e Azevedo (2008, p. 42),

Reconstruir a experiência coletiva no cotidiano da escola implica, entre outras coisas, desvelar as tessituras das redes de saberes que dão sentido às nossas ações cotidianas, compartilhando-as coletivamente, por meio de um processo de investigação que tem como ponto de partida e como ponto de chegada a reinvenção da escola como um espaço apto a acolher o passado e a criar o futuro.

O exercício de múltiplas formas de narrar os fazerespráticas dos professores, me permitiu ressignificar as suas práticas e encontrar alguns caminhos para a sua formação continuada que podem, potencialmente, aprimorar não apenas as práticas nos diferentes

espaçostempos, mas também a qualidade de aprendizagem dos alunos. Assim, para

compreender o cotidiano nos diferentes espaçostempos, foi preciso, pedindo permissão à Nilda Alves,

Buscar entender, de maneira diferente do aprendido, as atividades do cotidiano escolar ou do cotidiano comum, exige que esteja disposto a ver além daquilo que outros já viram e muito mais: que seja capaz de mergulhar inteiramente em uma determinada realidade buscando referências de sons, sendo capaz de engolir sentindo a variedade de gostos, caminhar tocando coisas e pessoas e me deixando tocar por elas, cheirando os odores que a realidade coloca a cada ponto do caminho diário. (ALVES, 2001, p. 17).

Quando me propus discutir as práticas curriculares dos professores da disciplina de Ofícios do Ensino Básico em Moçambique, me desafiei a ver o que os outros não conseguiram ver ou que não querem ver, mesmo que tenham feito estudos relacionados ou semelhantes, como diz Certeau, através de “mil maneiras de caça não autorizadas”, a partir da decodificação das astúcias, captando as diferentes maneiras de usar os meios de ensinoaprendizagem, ouvindo com outro ouvir os sons dos professores, vendo com outro olhar as mímicas e as gestualidades dos praticantes. Foi assim que, com os professores, com os mestres da comunidade e com os alunos, produzimos outros sentidos dos fazerespráticas por meio de um movimento de ressignificação de práticas e de transformação da própria formação.

1.2.AS NARRATIVAS, IMAGENS, CONVERSAS E ENTREVERSAS COMO