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As neuroses, as experiências sexuais infantis e o trauma

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 37-41)

Capítulo 2 – Da infância ao infantil

2.1. As neuroses, as experiências sexuais infantis e o trauma

Após a temporada de estudos com Charcot em Salpêtrière, Freud retorna a Viena e estabelece um consultório. Por meio de sua prática clínica, basicamente composta por atendimentos de pacientes histéricas, Freud, que se dedicava também ao estudo das técnicas de hipnose, passou a questionar alguns aspectos de tal método. Influenciado pelas ideias de Breuer, começa a utilizar a hipnose de modo não sugestivo, menos direto e persuasivo, deixando os pacientes mais livres para falarem. Freud e Breuer perceberam que “cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhava, e quando o paciente havia descrito esse acontecimento com maior número de detalhes possível e traduzido o afeto em palavras” (FREUD, 1895/2006, p. 42).

Assim, foi descoberto um novo método terapêutico de considerável importância prática: o método catártico. Nesse método, o recurso à hipnose tinha como finalidade ajudar o paciente a trazer à luz, por meio da fala, pensamentos e representações que permitissem alcançar o elemento patogênico considerado desencadeador dos sintomas. Esse elemento, em geral um acontecimento carregado de afetos represados, deveria ser relembrado e revivido para que os sintomas histéricos pudessem ser eliminados. O afeto expurgado e revivido no momento em que o paciente fazia seu relato verbal culminava na ab-reação, isto é, a lembrança traumática e o afeto a ela ligado eram trazidos à consciência, provocando uma reação energética e, consequentemente, o desaparecimento dos sintomas.

Freud, a partir do uso de tal método, concluiu que as histéricas sofrem de reminiscências. As lembranças de eventos traumáticos experimentados num passado bastante distante continuam agindo de forma intensa, sem se desgastarem e caírem no esquecimento ao longo dos anos. As pacientes, porém, nem suspeitavam de que essas experiências traumáticas possuíam valor determinante nos fenômenos histéricos. A conexão entre ambos consiste no fato de que “o trauma psíquico - ou, mais precisamente, a lembrança do trauma - age como um corpo estranho que, muito depois da sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em ação” (Ibid., loc. cit.).

À primeira vista, parece estranho pensar que algo vivenciado há tanto tempo permaneça atuando de modo tão intenso. Freud, porém, explica que o evento traumático, algo vindo de fora, tem uma representação mnêmica patológica muito nítida e intensa afetivamente, pois, no momento de sua ocorrência, não foi possível a ab-reação. Chama a atenção também outra especificidade dessas lembranças relativas ao trauma: elas “estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes quando em estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma bastante sumária” (FREUD, 1895/2006, p. 45). Segundo Freud, a não ab-reação seria também responsável por essa particularidade das lembranças traumáticas. Tais representações patogênicas só poderiam ser acessadas nos estados anormais de consciência, ou seja, quando se está sob hipnose, pois não fazem parte da memória normal do paciente.

Conforme foi estudando o mecanismo dos fenômenos histéricos, Freud passou a se questionar acerca da etiologia da histeria. Apesar de rejeitar a ideia de Breuer relativa ao fato de os estados hipnóides5 serem a condição fundamental da histeria, apoiou-se nela para dar início à teoria da divisão psiquismo e também para conceber que a causa dos sintomas histéricos não seria orgânica, afastando-se da etiologia hereditária proposta por Charcot. Freud formula, então, uma teoria da histeria adquirida.

Os primórdios dessa teoria estão no texto As neuropsicoses de defesa (1894) e também nos

Estudos sobre a histeria (1895). No primeiro, Freud propõe o mecanismo de conversão para explicar a origem da histeria: a fim de tentar defender-se de uma vivência, sentimento ou pensamento extremamente penosos, o ego do paciente faz uso de mecanismos que desvinculam a lembrança aflitiva de seu afeto correspondente. Resta assim uma energia livre que precisa de “outro destino”, o qual, no caso da histeria, seria uma conversão somática. Nos Estudos sobre a histeria (1895), por sua vez, fica evidente que “fatos externos determinam a patologia da histeria numa medida muito maior do que se sabe e reconhece” (Ibid., p. 39). As pesquisas freudianas feitas à época revelam, “para a maioria dos sintomas histéricos, causas desencadeadoras que só podem ser descritas como traumas psíquicos” (Ibid., p. 41). Os traumas dessa natureza são quaisquer experiências que provoquem afetos aflitivos e tenham como conteúdo, afirma o autor, aspectos relacionados à vida sexual dos pacientes. Com essa afirmação, Freud, que já vinha distanciando-se de Breuer, constituiu sua maior divergência com ele e lançou as bases para formular sua teoria acerca da etiologia sexual das perturbações psíquicas.

5 De acordo com Laplanche e Pontalis (1982/1998), trata-se de estados em que as ideias aparecem no psiquismo de

modo muito intenso e desvinculadas do restante da vida mental, tendo como efeito a formação de grupos de associações separados. Tais grupos, compostos por representações psíquicas carregadas de afetos e separadas de qualquer elaboração associativa, não se conectam ao conjunto dos conteúdos de consciência, mas são capazes de se ligar a outros em estado análogo. Assim, forma-se uma clivagem na vida mental.

A partir de 1896, não há mais nos escritos freudianos menção à hipnose e ao método catártico. Freud os abandonara e passara a confiar no curso das associações livres dos pacientes, aspecto imprescindível para a construção do método psicanalítico. Seu interesse acerca da causação da histeria e sua recusa em se render aos argumentos de cunho hereditário deram início à problemática psicanalítica propriamente dita. O estabelecimento da “regra de ouro” da psicanálise, a associação livre, como forma de investigar os processos mentais inconscientes formalizou a metodologia psicanalítica enquanto realizada no campo da fala e baseada na palavra e na escuta.

Foi justamente a partir da escuta das reminiscências de pacientes histéricas e do interesse sobre a etiologia das neuroses que a questão da infância, e também do infantil, começa a aparecer na psicanálise. Ao insistir para que suas pacientes falassem livremente sobre suas lembranças e regredissem ainda mais nelas, Freud descobre que certas vivências corriqueiras possuíam ligação com outras cenas mais primitivas. Isso fez com que ele supusesse a existência de cenas cada vez mais primárias responsáveis pelo desencadeamento da neurose, as quais seriam sempre infantis e compostas por conteúdos sexuais. Assim sendo, foram as pesquisas sobre a causação das patologias psíquicas que levaram Freud a dar lugar à infância na psicanálise e a concluir que o “desenvolvimento de uma das duas neuroses, histeria ou obsessões, (...) não provém da hereditariedade, mas de uma característica especial do evento sexual na tenra infância” (FREUD, 1896/2006, p. 155).

Ao escutar seus pacientes e percorrer o passado de cada um, Freud constatou que havia um elemento comum. Em todos os casos estava presente a ação de um agente que deve ser considerado como a causa específica das neuroses, tanto da histeria quanto da neurose obsessiva. Esse agente é uma lembrança inconsciente de “uma experiência precoce de relações sexuais com excitação real dos órgãos genitais, resultante de abuso sexual cometido por outra pessoa; e o período em que ocorre esse evento fatal é a infância” (Ibid., p. 151). Uma experiência sexual vivida de forma real e passiva, antes que a criança tenha atingido a maturidade sexual, é considerada, então, a etiologia específica das neuroses.

Essas experiências sexuais traumáticas, por não fazerem parte da memória dos pacientes, só podem ser acessadas via trabalho analítico. É preciso vencer uma forte resistência para despertar neles o vestígio psíquico de eventos sexuais precoces e, dessa forma, lograr que passem a falar de tais vivências infantis. Ao reproduzi-las, os pacientes padecem as mais violentas sensações, sentem vergonha, horror e, consequentemente, tentam negar o ocorrido. “Esse tipo de acontecimento fortalece nossa impressão de que os pacientes devem realmente ter vivenciado aquilo que, sob compulsão da análise, reproduzem como cenas de sua infância” (Ibid., p. 201). Não haveria para Freud dúvidas quanto à autenticidade das cenas infantis relembradas.

Por ter ocorrido num momento anterior ao desenvolvimento da vida sexual, a criança não pode compreender o acontecimento em termos sexuais, mas, mesmo assim, sua ocorrência fica marcada no psiquismo. Tal marca é despertada somente na puberdade, quando uma vivência inócua pode desencadear um elo associativo com a experiência primitiva que foi recalcada. Aí então, a lembrança da cena traumática ressurge com toda sua carga sexual e gera desprazer, o qual se expressa por meio dos sintomas que substituem a cena retirada da consciência. Por causa das transformações relativas à puberdade, o efeito psíquico da lembrança traumática apresenta um poder que esteve totalmente ausente quando da ocorrência do próprio evento.

Freud, nos anos de 1890, mostrava que eram necessários ao menos dois acontecimentos para caracterizar o trauma. O primeiro deles refere-se à cena de sedução propriamente dita que ocorre na infância e, o segundo, a uma outra cena, aparentemente anódina, ocorrida na puberdade, ou depois dela, que evoca a primeira por meio de algum traço associativo. A lembrança da primeira cena provoca um afluxo intenso de excitações que excede as defesas do ego, desencadeando o sintoma neurótico. Do ponto de vista econômico, é a posteriori, portanto, que o valor traumático é atribuído à primeira cena. É apenas como lembrança que a cena de sedução, revivida agora em termos sexuais, torna-se patogênica.

As experiências sexuais infantis são, assim, requisito fundamental das neuroses e da formação dos sintomas histéricos ou obsessivos. Mas elas só exercem efeito traumático quando despertadas na puberdade sob a forma de lembranças inconscientes. “Desse modo obtemos uma indicação de que é necessário um certo estado infantil das funções psíquicas, assim como do sistema sexual, para que uma experiência sexual ocorrida durante esse período produza, mais tarde, sob a forma de lembrança, um efeito patogênico” (FREUD, 1896/2006, p. 208, itálico do autor). Freud não se aventura, porém, a precisar qual a natureza do “infantilismo psíquico” e tampouco quais seriam seus “limites cronológicos”, mas afirma que as funções sexuais estariam em um estágio infantil de desenvolvimento.

Por meio de todas essas constatações, Freud dá consistência à chamada “teoria da sedução”. De acordo com essa teoria, a lembrança de uma experiência sexual, vivida de modo passivo e ocorrida antes da puberdade, seria a causa das psiconeuroses. Tal experiência, como vimos, consiste na sedução empreendida por um adulto, e seu caráter traumático, advindo a posteriori, reside no fato de uma criança, um ser puro e ainda não sexualizado, sofrer abuso por parte de um adulto sexualizado. A “teoria da sedução” vai de encontro, portanto, à visão da época a respeito da infância cândida e assexuada.

Além disso, nesse período da obra freudiana, verifica-se que a infância e o “estado infantil das funções psíquicas” estão relacionados à ideia de imaturidade. Aquilo vinculado ao infantil é correspondente a uma etapa do desenvolvimento biológico do indivíduo caracterizada pela

prematuridade e pela incompletude especialmente da sexualidade. Nesse sentido, fica evidente também outra ideia vigente à época: a de que a idade adulta seria o ápice do desenvolvimento, uma etapa da vida em que todas as faculdades mentais, sexuais e morais estariam completamente formadas.

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 37-41)