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O Homem dos Lobos (1918[1914])

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 58-62)

Capítulo 2 – Da infância ao infantil

2.5. O pequeno Hans (1909) e O Homem dos Lobos (1918[1914])

2.5.2. O Homem dos Lobos (1918[1914])

Em 1918, Freud debruçou-se sobre o debate acerca da fantasia primária e da construção do infantil na análise. Com a publicação do historial clínico daquele que ficou conhecido como o caso do Homem dos Lobos (1918[1914]), o autor conseguiu mostrar o caráter atemporal e o papel determinante na formação dos sintomas neuróticos daquilo que ele chama de “fator infantil”. Como veremos na breve retomada do caso, trata-se de um infantil que, além de determinar até mesmo o que se constrói em análise, equivale àquilo que é traumático e permaneceu no inconsciente gerando suas formações.

Antes de apresentar o caso, é válido notar que Freud o intitula História de uma neurose

infantil. Esse nome remete justamente ao fato de a descrição apresentada ser a “de uma neurose infantil que foi analisada não enquanto realmente existia, mas somente quinze anos depois de haver terminado” (FREUD, 1918[1914]/2006, p. 20) e cujos efeitos fizeram-se sentir ao longo de toda a vida do paciente. O título, como fica evidente em uma nota de rodapé7 inserida por Freud, é também uma resposta às objeções de Jung e Adler acerca da etiologia infantil e sexual dos sintomas neuróticos.

Quanto ao relato do caso, Freud comunica que se trata de um jovem que teve sua saúde abalada aos dezoito anos e que, ao iniciar o tratamento psicanalítico anos mais tarde, encontrava-se incapacitado e dependente de outras pessoas. O autor também comenta que os primeiros anos de vida do paciente haviam sido bastante conturbados em função de um grave distúrbio neurótico: uma histeria de angústia que se transformou em uma neurose obsessiva.

7 “Este caso clínico foi escrito logo após a conclusão do tratamento, no inverno de 1914-15. Nessa época eu estava

ainda sob a impressão recente das reinterpretações distorcidas que C. G. Jung e Alfred Adler se empenhavam para dar às descobertas da psicanálise” (FREUD, 1918[1914]/2006, p. 19).

Freud isola, assim, dois tempos da neurose infantil. O primeiro deles corresponde à mudança de temperamento ocorrida no menino quando tinha três anos. Ele, subitamente, tornou-se agressivo, irritável e passou a ter atitudes perversas com pequenos animais. O segundo tempo, por sua vez, está associado ao surgimento da angústia e da fobia de lobos quando o menino contava com quatro anos de idade. Nesse época, desenvolveu também sintomas obsessivos de cunho religioso que perduraram até os dez anos.

No que se refere ao primeiro tempo postulado, Freud explica que o menino havia sofrido tentativas de sedução por parte da irmã. Mesmo que essa não o agradasse enquanto objeto sexual, induziu o despertar de intensa excitação, a qual se manifestava na forma de masturbação e nas tentativas de seduzir a babá. Essa, por sua vez, o repreendia enfaticamente e recusava suas investidas. Segundo Freud, isso teria sido a causa da súbita mudança de comportamento do menino e da regressão em sua vida sexual, a qual tomara um caráter sádico-anal. Tal regressão foi também acompanhada por um deslocamento da escolha de objeto da babá para o pai. Entretanto, a tendência ativa que demonstrava em relação a ela transformou-se em passiva, o que explica as tentativas do menino de “forçar castigos e espancamentos por parte do pai, e dessa forma obter a satisfação sexual masoquista que desejava. Os seus ataques e gritos eram, portanto, simples tentativas de sedução” (FREUD, 1918[1914]/2006, p. 39).

Em determinado momento da análise, o paciente recorda-se de algo que promove uma virada no tratamento e nas construções de freudianas acerca do caso. A lembrança foi a de um sonho, o qual, segundo Freud, tornou possível dividir a neurose infantil do paciente nos dois tempos já mencionados. Trata-se de um sonho que ocorreu poucos dias antes de o paciente completar quatro anos: a janela de seu quarto abre-se de repente e, através dela, vê seis ou sete lobos brancos sentados numa árvore, os quais o olhavam fixamente e iriam comê-lo. A partir de então têm início as crises de angústia, a fobia e os sintomas obsessivos do menino.

Freud ficou especialmente interessado por duas observações feitas pelo paciente a respeito do sonho: a imobilidade dos lobos e a atenção com que todos o olhavam. Com base em sua experiência na interpretação de sonhos, Freud afirma que as partes do conteúdo do sonho enfatizadas pelo paciente estariam deformadas provavelmente para seu oposto e conduziriam ao conteúdo de uma outra cena: “(...) determinada parte do material latente do sonho reivindica, na memória do sonhador, possuir a qualidade de realidade, isto é, que o sonho relaciona-se com uma ocorrência que realmente teve lugar e não foi simplesmente imaginada” (Ibid., p. 45). Seria uma cena já esquecida à época do sonho e ocorrida muito prematuramente.

Movido por essa hipótese, Freud pergunta ao paciente se ele teria visto algo em movimento. Essa pergunta gera a lembrança de uma cena ainda mais precoce, a cena primária, na qual o menino teria visto, com um ano e meio de idade, uma relação sexual entre seus pais. Assim, de acordo com

Freud, o lobo que dava medo ao menino era o próprio pai e o sonho causou-lhe angústia, pois representava seu desejo de copular com o pai. A atitude passiva em relação ao pai, que remetia a uma identificação com a mãe, ficou recalcada e foi substituída pela fobia de lobos.

A ativação da cena primária no sonho levou-o, então, de volta à organização genital. Descobriu a vagina e o significado biológico de masculino e feminino. Compreendia agora que ativo era o mesmo que masculino, ao passo que passivo era o mesmo que feminino. Seu objetivo sexual passivo deve ter sido, então, transformado em feminino, expressando-se como ‘ser copulado pelo pai’ (...) Esse objetivo feminino, no entanto, sujeitou-se à repressão e foi obrigado a deixar-se substituir pelo medo do lobo (FREUD, 1918[1914]/2006, p. 57).

Ao introduzir a hipótese de que o sonho remeteria a uma outra cena infantil, Freud toma cuidado para não voltar à ideia de que uma experiência factual estaria na origem das neuroses. Assim, ele desenvolve uma discussão acerca da realidade ou não da cena primária, ressaltando a possibilidade de que nem sempre se trata de cenas verdadeiras, mas que essas podem ser fantasias do paciente já adulto. A concepção freudiana, então, é a de que as cenas primitivas da infância não são reproduções de lembrança de algo ocorrido, são sim produtos de construções feitas em análise8. As lembranças anteriormente inconscientes são muitas vezes

distorções da verdade, intercaladas de elementos imaginários, tal como as assim chamadas lembranças encobridoras (...) cenas, como as do paciente no presente caso, que datam de um período tão prematuro e exibem um conteúdo semelhante, e que apresentam depois um significado extraordinário para o histórico do caso, não são, via de regra, reproduzidas como lembranças, mas têm que ser (...) construídas (Ibid., p. 61-62).

Na última parte do texto, Freud afirma que é possível estudar a criança por intermédio do adulto. Entretanto, não é a história cronológica da neurose na infância que se extrai dos relatos do paciente, como esclarece Prates (2006, p.257-258), “mas os tempo da construção da fantasia, que inclui o infantil como o lugar do que resta (...)”. Salienta-se que “o que está em discussão, portanto, é a significação do fator infantil” (Ibid., p. 65). Dessa forma, o caso do Homem dos Lobos (1918[1914]), além de ratificar o caráter determinante das mais remotas experiências da vida na etiologia da neurose, mostra com clareza que o que se apresenta numa análise, seja qual for a idade do analisando, é o infantil que o constitui.

Assim, Freud, ao falar da infância, atribuía-lhe um sentido diferente daquele comumente conhecido e socialmente compartilhado. Estabeleceu uma descontinuidade entre infância e infantil,

marcando uma especificidade conceitual da psicanálise. As construções teóricas de Freud, baseadas nos dizeres de pacientes adultos, evidenciam que o infantil não é uma experiência de criança. Assim, ao conceber “um infantil atuante em todas as idades, Freud fazia ruir as esperanças de que a maturidade poderia extinguir os aspectos infantis do psiquismo, e de que o desenvolvimento conduziria o homem e a civilização ao progresso e à perfeição” (MARIANTE, 2008, p. 92).

Por fim, a passagem da sedução à fantasia, além de culminar no estabelecimento do infantil, deu lugar à elaboração da realidade psíquica baseada no inconsciente e no desejo. Isso implica a descoberta do que Lacan, posteriormente, chamou de sujeito do inconsciente, noção que será desenvolvida no capítulo seguinte.

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 58-62)