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3 O GARANTISMO COMO RESPOSTA

3.5 As objeções ao pensamento de Luigi Ferrajoli

Mesmo sendo uma teoria calcada em princípios essencialmente democráticos, o que pode ser percebido pela clara intenção de Ferrajoli de não deixar qualquer ponto obscuro quando de sua exposição, alguns teóricos têm apresentado uma série de questionamentos em relação a essa concepção de direitos fundamentais e motivado um intenso debate doutrinário.

Um desses autores é Guastini, que inicia seus questionamentos focando na afirmação feita por Ferrajoli de que, a todo direito subjetivo corresponde uma obrigação, sem deixar claro, contudo, em que efetivamente corresponde essa obrigação. Essa situação permite, segundo Guastini, apenas uma interpretação: a de que um enunciado que atribua um direito a um indivíduo ―es traducible, sin perdida de significado, en un enunciado diferente que imponga uma obrigación (a outro)” (GUASTINI, 2001, p. 57).

Reconhece ele que Ferrajoli explica seu ponto de vista por meio de duas teses: a primeira afirma que a obrigação está implícita no próprio Direito; a segunda, que, caso não exista essa relação com a norma, apresentar-se-á uma lacuna técnica, já que haverá a ausência de uma norma a garantir a eficácia da outra, o que a ele, Guastini, parece contraditório, já que, se a primeira afirmação de Ferrajoli propõe que a todo direito subjetivo corresponde logicamente uma obrigação, a segunda nega essa tese, abrigando espaço para sustentar que, se não há obrigação, não existe direito (GUASTINI, 2001, p. 58).

Outro questionamento apresentado por esse autor está relacionado à afirmação de que a universalidade é uma característica que define os direitos fundamentais, de modo que um direito será fundamental se for previsto para ―todos‖. Aqui Guastini aponta uma dificuldade para a exata compreensão do conceito de Ferrajoli, já que falar em universalidade não se mostra suficiente para distinguir um direito de um privilégio, na medida em que algo pode ser atribuído a uma classe inteira de pessoas e adquirir, assim, universalidade. Tanto é assim, recorda ele, que as três classes de pessoas apontadas por Ferrajoli (pessoa, cidadão e pessoas com capacidade jurídica) têm amplitudes (universalidades) diferentes; não há clareza sobre o critério para escolha dessas categorias. Lembra, por fim, que sempre haverá necessidade de uma norma que indique os critérios para definição de cada uma das classes (ou cada uma das universalidades).

O terceiro e último questionamento trata da indisponibilidade dos direitos fundamentais, que também é apontada como uma das suas características definidoras, não explicitamente colocada, mas que decorreria – segundo Ferrajoli – da sua universalidade, já que os direitos alienáveis são virtualmente não universais e exclusivos.

Guastini vê dificuldades em compreender dessa forma a indisponibilidade e toma como exemplo o direito de liberdade, que pode ser suprimido por ordem judicial, o que não o descaracteriza como direito. Além do mais, contesta a ideia de que a indisponibilidade decorre logicamente da universalidade, já que esta última ―atiende a la titularidad del derecho, mientras que la indisponibilidad lo hace a su ejercicio” (GUASTINI, 2001, p. 62).

Outro autor que também apresenta alguns questionamentos que merecem destaque é Vitale. Seu ensaio Teoría General del derecho o fundación de una república óptima? Cinco dudas sobre la teoría de los derechos fundamentales de Luigi Ferrajoli se inicia questionamento a chamada ―neutralidade ideológica‖ da definição de direitos fundamentais apresentada por Ferrajoli, já que ela seria válida qualquer que seja a filosofia jurídica ou política adotada por um determinado e específico sistema. Para Vitale, essa afirmação somente é verdadeira em parte, vale dizer, na parte que afirma que, para conceber um objeto lógico, não é necessário dar-lhe condições de materialização, ou seja, a essência dos direitos fundamentais não implica sua existência.

Ressalvado esse ponto, a dificuldade destacada por Vitale se dá quando se tem em conta que, para pensar o objeto direito fundamental na perspectiva da concepção em debate, é necessário que se tenha um conceito de indivíduo ou de pessoa, e nesse ponto é que está a dificuldade: nem todas as filosofias jurídicas ou políticas ―reconocen al individuo como ontológica, metodológica y axiológicamente fundamental‖ (VITALE, 2001, p. 68).

A segunda questão levantada por esse autor pode ser sintetizada na seguinte indagação: quanto de jusnaturalismo há no juspositivismo de Ferrajoli? A dúvida se justifica com a compreensão de que foi a partir do final da Segunda Guerra mundial que se estabeleceram as mudanças fundamentais dentro do sistema para uma compreensão como a sustentada por Ferrajoli, especialmente no que se refere à dimensão substancial da Democracia através da estrita legalidade, ou seja, da inclusão de vínculos substanciais às decisões políticas, não se podendo negar que – com isso – há uma internalização no sistema jurídico de uma determinada concepção de sujeito e de sociedade, a qual é elaborada por certo ―jusnaturalismo moderno‖.

A terceira questão de Vitale diz respeito à concepção de Democracia substancial de Ferrajoli decorrente da existência de normas substanciais que tratam da ideia de validez vinculada ao respeito aos direitos fundamentais e aos princípios axiológicos por elas estabelecidos (em contraposição às normas formais que tratam apenas e tão somente da vigência). Pensar dessa forma – e dar esse enfoque à Democracia substancial – não leva ao aniquilamento da Democracia formal ou procedimental ou, ainda, do debate político? Em outras palavras, pergunta Vitale, isso não ―reducirá tendencialmente a cero o, en todo caso, erosionará notablemente la possibilidad de elección entre proyectos alternativos de sociedad y de deliberación por el sistema de mayoría?‖ (VITALE, 2001, p. 71).

Para Vitale, essa concepção de Democracia substancial de Ferrajoli parece assumir as características:

[de uma] óptima república gobernada por filósofos, los de uma ‗casi óptima república‘, en la que el principio de legalidad estricta, com todas sus posibles inpliciaciones sobre la producción jurídica y sobre las dinâmicas económicas, despeñaría la función de Idea reguladora de la práxis social y de estrella polar del eventual cambio político (VITALE, 2001, p. 72).

Por fim, as duas últimas questões apresentadas por Vitale dizem respeito à afirmação de Ferrajoli de que a Democracia constitucional decorre da filosofia contratualista, o que lhe parece um pouco forçado, mas com um objetivo claro: justificar o vínculo desta com o procedimento democrático de decisão por maioria e, ainda, a afirmação de que há um nexo entre igualdade e Democracia e, contrario sensu, uma desigualdade em direitos e racismo. Aqui a dúvida fica por conta da necessidade de se identificar qual Democracia e igualdade em relação a quem. Quanto ao segundo ponto (desigualdade e racismo), a dúvida de Vitale é se não se está substituindo a causa pelo efeito (VITALE, 2001, p. 73).

Um terceiro e último autor cujas críticas merecem atenção é Zolo, quando questiona a utilidade teórica da noção de direitos fundamentais apresentada por Ferrajoli, no sentido por este empregada, especialmente se observadas as quatro teses que entende dela derivarem e vê como essenciais para uma teoria da Democracia. Recordem-se as teses: 1) a diferença estrutural entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais;

2) os direitos fundamentais como fundamento e parâmetro da igualdade jurídica e a dimensão substancial da Democracia; 3) a natureza supranacional dos direitos fundamentais; e, por fim, 4) a relação entre os direitos e suas garantias, admitindo-se a possibilidade de existência de uma lacuna técnica quando um determinado direito eventualmente não tenha uma obrigação prevista.

Para Zolo, com esse movimento, realiza-se passo brusco do plano da lógica formal para o plano da teoria normativa, situação que causa perplexidade de ordem epistemológica, especialmente pela indagação que daí decorre: é possível uma formulação lógica oferecer um fundamento essencial para uma teoria normativa? (ZOLO, 2001, p. 81). Em sua opinião, isso não é possível, tanto que o próprio Ferrajoli não deixa de atribuir à noção de direitos fundamentais importantes valorações político-ideológicas, sendo possível perceber que o que concretamente está na base das quatro teses apresentadas não é a uma definição neutra de direitos fundamentais, mas sim uma concepção garantista dos direitos fundamentais que sugere uma polêmica contra os direitos patrimoniais, considerados como a fonte da desigualdade jurídica entre os sujeitos (ZOLO, 2001, p. 83).

Ferrajoli responde a esses questionamentos com a afirmação de que as críticas formuladas – e aqui referidas – fizeram surgir com grande clareza a questão metateórica relacionada com a natureza dos conceitos da Teoria do Direito em relação aos da dogmática jurídica e, ainda, aos conceitos da filosofia política (ou axiologia jurídica e política) (FERRAJOLI, 2001, p. 139).

Em seu entendimento, definir e aclarar esses planos do discurso é uma questão prévia e fundamental que, ao não se dar, gera dificuldades e incompreensões entre juristas e filósofos do Direito. Superar esse ponto depende, então, da clara identificação dos diversos tipos ou níveis ―del discurso a los que pertenencen las tesis formuladas, así como de las distintas concepciones que se tengan de la teoría del derecho, la dogmática jurídica y la axiología jurídica y política‖ (FERRAJOLI, 2001 p. 140).

Essa questão, que está acima da definição de direitos fundamentais, para Ferrajoli, pode ser entendida da seguinte forma: no plano da dogmática, a investigação será em torno de ―quais são os direitos fundamentais‖; no plano axiológico, em torno de ―quais direitos devem ser considerados fundamentais‖; e, por fim, no plano teórico, ―o que são direitos fundamentais‖. Admite ele que muitas das críticas formuladas se justificam porque em seu ensaio nem sempre esclareceu

de modo preciso em que plano sustenta as teses ali apresentadas (FERRAJOLI, 2001, p. 140).

Dito isso, e tratando especificamente das críticas formuladas, reafirma a utilidade e a neutralidade de sua definição, já que não pretende efetivamente indicar quais são os direitos fundamentais, o que deve ser respondido pela dogmática, ou quais deveriam ser os direitos fundamentais, o que deve ser respondido pela axiologia jurídica, pertencendo ela à Teoria do Direito, cuja preocupação é reconhecer apenas e tão somente o que são os direitos fundamentais. Ferrajoli assevera: ―lo que nos dice la definición que propongo – que, por eso, llamo „formal‟ o „estrutural‟ – es, unicamente, cuál es la forma o estructura lógica de los derechos que convenimos em llamar „fundamentales (FERRAJOLI, 2001, p. 142). A utilidade teórica de sua formulação permitirá que sejam demonstrados cientificamente os direitos fundamentais em dado ordenamento jurídico.

A crítica relacionada a sua forma de compreender a universalidade e a indisponibilidade, característica por ele vinculadas à definição de direitos patrimoniais, apresentados estes como excludente alios (e, por isso, singulares) e disponíveis, é respondida com a reafirmação do caráter meramente formal de sua proposta de compreensão dos direitos fundamentais, com total dispensa do seu conteúdo em detrimento de sua estrutura. Afirma Ferrajoli:

[...] universalidad e indisponibilidad, se ha dicho, son sólo las formas a través de las cuales se tutelan igualmente determinadas necesidades o intereses convenidos como fundamentales en un ondenamiento determinado, o considerados como tales por uma teoría política de la Democracia (FERRAJOLI, 2001, p. 154).

Com isso, percebe-se que o universal de Ferrajoli tem significado diverso da compreensão geral do termo, já que o que caracteriza o Direito como tal será simplesmente sua imediata disposição de normas gerais em favor de classes indeterminadas de sujeitos (que, por essa razão, são chamadas de téticas). Representa o contrário dos direitos patrimoniais, os quais sempre dependerão de atos singulares e específicos (negociais, por exemplo), apresentados como hipóteses por normas (por isso, hipotéticas). Assim esclarece Ferrajoli:

[...] universal, pues, asociado a derechos, no es, por tanto, sinónimo de fundamental, sino que tiene un significado más extenso. Fundamentales son todos y solamente los derechos adstritos, no a cualquier clase de sujetos, sino a la clase de aquellos sujetos a los quales el ordenamiento les confiera el status de persona y/o el de cuidadanos y/o el de capaces de actuar (FERRAJOLI, 2001, p. 156).

Quanto à indisponibilidade, Ferrajoli acrescenta que seu entendimento se dá em função de sua concepção de direitos patrimoniais, que ele entende efetivamente disponíveis, vale dizer, passíveis de um ato de disposição produtor de efeitos (na constituição, modificação ou extinção do direito).

Mas, sem dúvida alguma, de todas as questões apresentadas, a que mais suscita debates é a que interroga a tese de Ferrajoli em um ponto central de sua definição: qual, afinal, o conteúdo dos direitos fundamentais?47

Para responder a esta pergunta, é preciso recordar que uma das inovações produzidas pelo Garantismo está relacionada à compreensão da dimensão substancial do Estado de Direito, que traduz uma dimensão substancial da própria Democracia. Com isso, os direitos fundamentais se apresentam como a base da moderna igualdade, uma igualdade em que esses direitos surgem como mais um grupo de vínculos substanciais impostos à Democracia Política. Poderão eles ser: negativos – aqueles gerados pelos direitos de liberdade, que nenhuma maioria pode violar; ou positivos – gerados pelos direitos sociais, que nenhuma maioria pode deixar de satisfazer.

Cademartori interpreta esse pensamento:

47

Em relação a esse ponto, Alexi afirma que ―El derecho fundamental como un todo es un objeto muy complejo pero, en modo alguno, inaprehendible. Está compuesto por elementos con una estrutura bien definida, es decir, las distintas posiciones del ciudadano y del Estado, y entre estas posiciones existen relaciones claramente determinables, las relaciones de precisión, de media/fin y de ponderación. Esto no significa que no pueda ser objeto de discusión que es lo que hay que ensamblar en un derecho fundamental como un todo. La polémica acerca de que es lo que pertenece a un derecho fundamental tiene su pendant en la polémica acerca de qué normas deben ser adstritatas a las disposiciones iusfundamentales en tanto normas de derecho fundamental” (ALEXI, 1993, p. 245).

Como diz Ferrajoli, os direitos de liberdade, aos quais correspondem proibições ao estado, não têm o seu conteúdo predeterminado, nem é o mesmo determinável a priori. Aqui o que é determinado são os limites para o seu exercício (a proibição de caluniar ou difamar no exercício da liberdade de expressão, por exemplo), ou as condições que legitimam a sua limitação (ordem motivada da autoridade judiciária). Já nos direitos sociais são determináveis os conteúdos, mas não os limites (sempre poderão surgir novos direitos desse tipo, dependendo das circunstâncias históricas de cada sociedade, bem como de seu desenvolvimento econômico e civil). E é pelo grau e quantidade das garantias adstritas a esses direitos que se pode medir a qualidade de uma Democracia (CADEMARTORI, 2006, p. 85).

Olhar por esse ângulo torna a definição de Ferrajoli algo mais próximo do substancial e mais distante do aspecto estrutural e ideologicamente neutro por ele proclamado desde o início. Isso abre caminho para um aclaramento do que ele entende como adequado em termos de conteúdo para a categoria ―direitos fundamentais‖, não se perdendo de vista a diferença em relação aos planos do discurso ou das definições formuladas, as quais deverão apresentar resposta a estas indagações: no plano da dogmática, quais são os direitos fundamentais?; no plano teórico, o que são direitos fundamentais?; e , por fim, no plano da axiologia, quais direitos devem ser considerados fundamentais?

Começando pelo último, retome-se Ferrajoli quando afirma que, no plano teórico, a melhor definição de direitos fundamentais é aquela que os identifica como direitos ―que están adscritos universalmente a todos en cuanto personas, o en cuanto ciudadanos o personas com capacidad de obrar, y que son por tanto indisponibles e inalienables (FERRAJOLI, 2007, p. 73).

Quanto à segunda indagação, a resposta será oferecida pelo direito positivo, vale dizer, a dogmática constitucional ou internacional, já que serão direitos fundamentais aqueles previstos pelos ordenamentos de cada uma das entidades políticas.

É em relação à terceira que surgem os questionamentos. Ferrajoli afirma que – observada a experiência histórica do constitucionalismo – é possível identificar três critérios axiológicos para determinar o que deve ser considerado como direito fundamental (FERRAJOLI, 2007, p. 73).

O primeiro diz respeito ao nexo entre direitos humanos e paz; surgido na Declaração dos Direitos do Homem de 1948, aponta para a inclusão dos direitos que protegem a vida entre os direitos fundamentais, decorrendo daí uma das principais garantias para a manutenção da paz. Relacionados às condições necessárias ao desenvolvimento de vida digna, estão entre eles o direito à vida e à integridade corporal, os direitos civis, os direitos políticos, os direitos de liberdade e os direitos sociais.

O segundo critério tem significado marcante para os direitos das minorias; é o nexo entre direitos e igualdade, o que deve ocorrer em dois planos: o primeiro busca garantir igualdade nos direitos de liberdade, o que significa dar igual importância a todas as diferenças existentes entre as pessoas (sexo, religião, opinião política), o que fará ―de cada persona un individuo diferente a todos los demás y de cada individuo una persona igual a todas las otras‖; o segundo estabelece uma igualdade nos direitos sociais, objetivando reduzir as desigualdades econômicas e sociais (FERRAJOLI, 2007, p. 74).

O terceiro critério, por fim, é o que identifica direitos fundamentais como a lei do mais fraco, proclamando que todos os direitos fundamentais são leis dirigidas criadas em alternativa à lei do mais forte, que seria a vigente em sua ausência. Aqui, segundo Ferrajoli, seu conteúdo seria, em primeiro lugar, o direito a vida, preservando-a dos ataques do detentou de maior força física; em segundo, os direitos de imunidade e de liberdade, onde a proteção se dá como escudo dos ataques daquele mais forte politicamente e, por fim, em terceiro lugar, os direitos sociais com a proteção em relação àqueles mais fortes social e economicamente (FERRAJOLI, 2007, p. 74).

3.6 O GARANTISMO E A SUPERAÇÃO DO POSITIVISMO