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1 AS CONCEPÇÕES DE DIREITO E A INFLUÊNCIA DO

1.4 O juspositivismo: desenvolvimento histórico

1.4.2 O positivismo de Kelsen e Hart

Após essas três escolas, todas do século XIX e parte do século XX, ainda no primeiro quarto deste último, outro fator histórico e doutrinário de relevo no positivismo jurídico será o trabalho de Hans Kelsen, ―teoria pura do direito‖, o qual pode ser considerado como uma explicação a respeito da natureza do direito em que são eliminados os elementos sociológicos, políticos e morais. A definição se dá a partir das normas positivas que integram o ordenamento jurídico independentemente de seus conteúdos específicos, com o objetivo de ―proporcionar a la ciencia jurídica el mayor rigor, coherencia y autonomia posible, liberandola para ello de lo que consideraba disciplinas extrañas, tales como la psicología, la sociología o la ética‖ (LUÑO, 2009, p. 84).

Segundo esse autor, os ordenamentos normativos poderiam ser divididos em dois tipos: 1) os estáticos, em que as normas estão relacionadas umas às outras como as proposições de um sistema dedutivo – pelo fato de que derivam umas das outras, partindo de uma ou mais normas originárias de caráter geral, com a mesma função dos postulados ou axiomas num sistema científico – e 2) os dinâmicos, em que ―as normas que os compõem derivam umas das outras através de sucessivas delegações de poder, isto é, não através da autoridade que os colocou‖ (BOBBIO, 1994, p. 71-72).

Para Kelsen, o ordenamento jurídico é do tipo deste último, ou seja, dinâmico, já que ―o enquadramento das normas é julgado com base num critério meramente formal, isto é, independentemente de seu conteúdo‖ (BOBBIO, 1994, p. 73), isto porque, como ele mesmo coloca na ―Teoria pura do Direito‖, a ideia de validade está ligada à de vinculação do indivíduo àquela conduta, vale dizer, deverá ele agir de acordo com o prescrito em lei. À pergunta de por que deve agir como prescrito em lei, diz ele que tal não poderá ser respondido

com a simples verificação de um fato na ordem do ser, já que o fundamento de validade de uma

norma não pode ser um tal fato. Do fato de algo ser não pode seguir-se que algo deve ser; assim como do fato de algo dever ser não se pode seguir que algo é. O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma (KELSEN, 1998, p. 215).

A validade de uma norma, então, não pode decorrer simplesmente do fato de ter emanado de um agente. Há necessidade de que este agente tenha competência conferida por uma norma para que sua validade esteja presente, a qual vincula o agente e o indivíduo que está obrigado a cumpri-la.

Outro ponto fundamental da teoria pura do direito de Kelsen, e que interessa aqui, é a concepção do sistema em sua forma de pirâmide e a noção de hierarquia das fontes do direito, o que contribuiu decisivamente para que, sob o ponto de vista científico, o raciocínio jurídico fosse organizado.

Os pressupostos da teoria pura do direito podem ser sistematizados da seguinte forma: 1) é uma ciência em que o único objeto é o direito positivo, ignorando tudo o que não corresponda a sua definição; 2) o direito é só o direito positivo (teoria pura do direito positivo); 3) o objeto do estudo do direito deve ser apenas o ―dever ser jurídico‖, e não a finalidade ou o conteúdo da norma (aspectos metafísicos); 4) a norma jurídica é um juízo lógico-hipotético que une um suporte fácito a uma consequência jurídica; 5) o direito é um sistema coativo de normas escalonadas hierarquicamente, de modo que cada norma terá sua validade determinada pela norma anterior e superior, até chegar à chamada ―norma hipotética fundamental‖; e, por fim, 6) ao contrário daqueles que dizem que as normas jurídicas decorrem da vontade do Estado, Kelsen aponta que Estado e Direito são uma coisa só (LUÑO, 2009, p. 85).

Mas, em que pese a riqueza dessas contribuições, o que prevaleceu em algumas culturas jurídicas, em especial na América Latina, foi uma leitura parcial e restritiva das ideias de Kelsen que acabou por justificar uma série de golpes de estado e uma separação da ciência jurídica de sua dimensão crítico-valorativa, afirmando-se a respeito que o afastamento do direito dos seus fundamentos filosóficos e sociais, e sua consequente redução a uma simples forma que aceita qualquer conteúdo, serviu ―para quem prefere ter a consciência anestesiada e não se angustiar com a questão da justiça, ou então para o profissional do direito que não quer assumir responsabilidades e riscos e

procura ocultar-se sob a capa de uma aparente neutralidade política‖ (DALLARI, 1996, p. 82).

Da mesma forma, aponta que, com o advento do estado nacional socialista e suas práticas violadoras dos direitos humanos, mesmo para os mais ferrenhos positivistas, ficou difícil insistir no argumento de que ―lei é lei‖, ressurgindo a ideia de que há princípios que, apesar de não reconhecidos em um determinado e específico sistema jurídico, impõem-se como proteção a todas as pessoas (PERELMAN, 1998, p. 95).

Por fim, um último autor de fundamental importância no estudo do positivismo é Herbert L. A. Hart e sua obra ―O conceito do direito‖, trabalho já referido linhas atrás, publicado em 1961, em que, além de tratar do conceito de direito, apresenta uma nova compreensão do positivismo, opondo-se a Austin e a Kelsen na visão que trata o direito como ordens respaldadas por ameaças ou como organização da força.

Para ele, comparados os diversos tipos de leis encontrados em qualquer sistema jurídico moderno, percebe-se a insuficiência da compreensão do Direito como ordens coercitivas. Após afirmar que ―nem todas as leis ordenam que se façam ou se deixem de fazer determinadas coisas‖, aponta:

Há ramos importantes do direito aos quais essa analogia com as ordens apoiadas em ameaças deixa de se aplicar, já que desempenham uma função social totalmente diferente. As normas jurídicas que definem as formas de se fazer ou celebrar contratos, testamentos ou matrimônios válidos não exigem que as pessoas ajam desta ou daquela maneira independentemente de sua vontade. Essas leis não impõem deveres ou obrigações (HART, 2009, p. 37).

Além disso, o modelo de direito desenhado – no caso, pelo positivismo clássico de Austin –, que sustenta a ameaça como seu traço distintivo, merece de Hart objeções em três pontos fundamentais, que dizem respeito: 1) ao conteúdo da lei, já que – como acima demonstrado – algumas normas possuem conteúdos que não se mostram semelhantes ao modelo das normas com ameaças de sanção pelo descumprimento; 2) ao âmbito de aplicação, já que, se o direito é determinado pela existência da ameaça, resta sem explicação o caráter auto-obrigatório da lei que incide inclusive em relação àqueles que detêm o poder de sancionador (HART, 2009, p. 57); e, por fim, 3) à sua origem, já que existem os

costumes (o direito consuetudinário), aos quais se reconhece juridicidade.

Com essas objeções, Hart intenta derrubar a forma pela qual o direito e as normas vinham sendo considerados até então, razão pela qual, em substituição a essa compreensão – e pela inconsistência delas na identificação de elementos comuns a todas as normas –, propõe uma tipologia das normas, o que se constitui no elemento central de sua compreensão de direito.

Para ele, as normas somente podem ser: 1) normas primárias, aquelas que prescrevem determinados comportamentos, e 2) normas secundárias, distribuídas como de reconhecimento, de mudança ou de adjudicação.

A primeira delas, chamada ―regra de reconhecimento‖, é apontada como sendo aquela que especifica as características que deverá possuir qualquer regra primária para ser considerada como uma norma autêntica do ordenamento em questão. As normas de mudança são aquelas que facultam a certas pessoas a possibilidade de criar, modificar ou eliminar novas regras. Por fim, as de adjudicação são aquelas que reconhecem poder a certas pessoas para identificar quando as regras primárias são descumpridas, além de estabelecer os procedimentos a ser seguidos quando tal ocorre (HART, 2009, p. 118-125).

Com essa estrutura e com a combinação desses tipos de normas, pensa Hart, ―tornar-se-á claro que temos aqui não apenas o cerne de um sistema jurídico, mas também um poderosíssimo instrumento para a análise de muitos problemas que têm intrigado tanto os juristas quanto os teóricos da política‖ (HART, 2009, p. 127).

1.5 BOBBIO E OS TRÊS ASPECTOS DO POSITIVISMO