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1 AS CONCEPÇÕES DE DIREITO E A INFLUÊNCIA DO

1.4 O juspositivismo: desenvolvimento histórico

1.4.1 Três momentos do positivismo jurídico

Os fatores acima arrolados (o historicismo, o positivismo filosófico e estatização do direito) acabaram por influenciar três modos de desenvolvimento do positivismo, todos surgidos em locais diferentes, a saber: na Alemanha, a ―Escola Histórica do Direito‖; na França, a ―Escola da Exegese‖ e, por fim, na Inglaterra, a ―Jurisprudência Analítica‖.

Em relação ao primeiro (Escola Histórica do Direito), apresentou- se ele como uma concepção de direito surgida nos séculos XVIII e XIX, auge do romantismo; fornece os principais elementos de crítica ao

direito natural, o que se dá a partir da primeira obra que pode efetivamente ser considerada como expressão dessa corrente. Escrita por Gustavo Hugo, em 1798, com o título de ―Tratado do direito natural como filosofia do direito positivo‖, afirma que o direito natural não é mais entendido como um sistema normativo autossuficiente, como um conjunto de regras distinto e separado do sistema do direito positivo, ―mas sim como um conjunto de considerações filosóficas sobre o próprio direito positivo‖ (BOBBIO, 2006, p. 46).

Para o seu principal representante, F. K. Von Savigny, deve ser rejeitada a ideia de que o homem pode criar o direito racionalmente – e a partir do nada –, já que ele (o Direito), assim como a língua, os costumes e as artes, é um fenômeno histórico, produto do que chamou de ―espírito do povo‖ (ATIENZA, 2007, p. 232). Foi por esse motivo que o historicismo emprestou toda sua força para contribuir para a fundação dessa nova concepção de direito, havendo cinco pontos em que sua influência pode ser percebida quando confrontadas as duas concepções: 1º) a individualidade e a variedade do homem, de que se pode extrair que não existe um Direito único, que ele não é produto da razão, mas sim da história e que, por isso, varia no tempo e no espaço; 2º) a irracionalidade das forças históricas, o que leva à conclusão de que não há um cálculo racional do qual possa resultar um sentimento de justiça; 3º) o chamado ―pessimismo antropológico‖, ou seja, a descrença nas inovações que se pretende impor à sociedade; 4º) o amor ao passado, o que os levou a procurar reviver um antigo direito germânico em contraposição à mera recepção do direito romano; e, por fim, 5º) o sentido da tradição, que os levou a reavaliar o costume como forma de produção jurídica.

Essa compreensão, além de tornar o direito natural desnecessário – já que o direito positivo estava justificado por si mesmo – acabou por produzir um isolamento do direito da própria realidade social e, em consequência, uma ciência do Direito abstrata e formal, tanto que se converteu em um dos modelos de formalismo jurídico, a Jurisprudência dos Conceitos, desenvolvida especialmente por Rudolf Von Jhering (PALOMBELLA, 2005, p. 126).

O segundo deles, a Escola da Exegese, foi um movimento surgido na França e sustentava a redução do direito à lei, podendo-se afirmar que, ―vitoriosa a revolução francesa, a Burguesia, depois de ascender defendendo o direito natural, foi constrangida a abandoná-lo, para consolidar seu poder. O caráter ‗descobridor‘, revolucionário, deste, foi substituído pelo signo da lei, em particular do Código Civil de 1804...‖ (AZEVEDO, 1999, p. 13).

E é justamente pela codificação que se dá a troca do jusnaturalismo racionalista para o positivismo jurídico em sua compreensão mais radical, vez que ―identifica o direito com a lei e confia aos tribunais a missão de estabelecer os fatos dos quais decorrerão as consequências jurídicas, em conformidade com o sistema de direito em vigor‖ (PERELMAN, 1999, p. 32). A esse respeito, afirma-se que não há dúvida alguma de que a codificação na França foi um movimento fundamental do positivismo jurídico. Com ele, iniciou-se e consolidou-se uma linha do pensamento jurídico europeu, cuja influência é sentida até hoje, resultado do iluminismo e de uma cultura racionalista: a existência de um ―legislador universal (isto é, um legislador que dita leis válidas para todos os tempos e para todos os lugares) e da exigência de realizar um direito simples e unitário‖ (BOBBIO, 2006, p. 65).

A codificação traz consigo o triunfo de uma série de ideias, as quais podem ser colocadas comparativamente da seguinte forma: em lugar do monopólio do poder político típico do antigo regime, a participação nas decisões políticas; em lugar de uma sociedade dividida por privilégios hereditários, uma sociedade sem tais privilégios; e, ainda, em lugar de uma sociedade sem direitos e sem garantias ou limitações ao poder do Estado, uma nova sociedade com o reconhecimento de direitos e a implantação de um estado limitado pela lei.

Esse o contexto do Código Civil de 1804, documento redigido por uma comissão formada por quatro juristas: Tronchet, Portalis, Bigot de Préameneu e Maleville. O foco principal era um conjunto de leis que regulamentassem as relações entre os cidadãos, daí estar dividido em quatro partes: "Das Pessoas", artigos lº a 515°; "Dos Bens" e "Das Diferentes Modificações da Propriedade", artigos 516° a 710°; e "Das Diferentes Maneiras pelas quais é Adquirida a Propriedade", artigos 711° a 2.281°. Com ele, e a partir dele, a lei passaria a circunscrever o indivíduo do seu nascimento à sua morte através do sistema do registro civil laico. Deu-se o reconhecimento do casamento civil, e se, por um lado, a figura de um Deus estava ausente do Código Civil, por outro, ao pai de família era atribuído um papel preponderante, com a finalidade de garantir a ordem no seio da família. A propriedade, transformada pela Declaração dos Direitos Humanos de 1789 num direito "inviolável e sagrado", é então apresentada como a alma universal da legislação.

Embora o documento tenha nascido de inspiração iluminista e jusnaturalista, esta é abandonada no curso de sua aprovação, evidenciando a oposição entre o que se pretendia no início e o que se produziu no final. Se, no início, a intenção era deixar toda a tradição

para trás e inaugurar totalmente o novo, sob a condução de Napoleão se produziu algo diverso: um documento que manteve algumas das estruturas jurídicas do passado, cenário que é percebido pela redação do art. 4º daquele Código, em que constava a proibição de deixar de julgar quando houvesse silêncio, obscuridade ou insuficiência da lei9.

Interessante é observar que a intenção dos redatores era diversa da resultante da interpretação dada. O que os primeiros queriam era deixar aberta a possibilidade da livre criação do direito por parte do juiz, mas o inverso é que foi entendido: uma exaltação da onipotência do legislador e a obrigatoriedade de o juiz encontrar uma solução dentro do sistema jurídico (BOBBIO, 2006, p. 75).

Essa compreensão – que impede todo o poder de criação do direito a partir do juiz e proclama a força do legislador – funda a chamada ―Escola da Exegese‖, movimento de fundamental importância para o positivismo jurídico que sustenta que a interpretação da legislação deve ser um ato mecânico e passivo.

Bobbio (2006, p. 78) agrupa em cinco pontos as causas que determinaram esse entendimento: 1º) a codificação que permite o uso de uma via mais simples e mais curta para a solução de qualquer controvérsia; 2º) a mentalidade dos juristas dominada pelo princípio de autoridade, ou seja, o respeito à vontade do legislador; 3º) a doutrina da separação dos poderes, fundamento ideológico do estado moderno que impede o juiz de criar direito, sob pena de invadir competência do poder legislativo; 4º) o princípio da certeza do direito, que remete à necessidade de se ter um critério seguro para identificar a correção das condutas; e, por fim, 5º) uma questão de natureza política: a pressão exercida por Napoleão em relação às faculdades de direito para que fosse ensinado apenas o direito positivo.

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Como bem diz Bobbio: ―os projetos inspirados nas ideias do jusnaturalismo racionalista representavam a Revolução no ponto culminante da parábola, quando esta queria fazer tabula rasa de todo o passado: o retorno à natureza, no que tais projetos se inspiravam, desejava precisamente ser um desafio ao passado, à disciplina jurídica que o direito romano, a monarquia francesa e as outras instituições tradicionais vinham criando ao longo dos séculos. Nas intenções das comissões napoleônicas, em lugar disso, o novo código não deveria constituir-se em um início, um ponto de partida absolutamente novo e exclusivo, mas antes um ponto de chegada e de partida ao mesmo tempo, uma síntese do passado que não deveria excluir a sobrevivência e a aplicação do direito precedente (costume e direito comum romano), ao menos em casos para os quais a nova legislação não estabelecesse alguma norma‖ (BOBBIO, 2006, p. 73).

Suas características fundamentais podem assim ser resumidas: inversão das relações tradicionais entre o direito natural e o direito positivo, de modo que os representantes da escola da exegese não negam o direito natural, mas o minimizam por força de seu reduzido caráter prático; concepção de que normas jurídicas são apenas aquelas produzidas pelo Estado; a busca da vontade do legislador, ou seja, interpretação calcada na intenção do legislador ao produzir a única norma que reconhecem como jurídica; culto ao texto da lei, ao qual todos estão subordinados; e, uma última, respeito ao princípio da autoridade, ou seja, ―a tentativa de demonstrar a justeza ou a verdade de uma proposição, apelando para a afirmação de um personagem cuja palavra não pode ser colocada em discussão, é permanente e geral na história das ideias‖ (BOBBIO, 2006, p. 88).

Outra transformação substancial que então se impõe – em decorrência da nova compreensão do sistema jurídico – se dá em relação ao juiz, que acaba transformado em um ser passivo. Dessa compreensão se extrai um dos principais dogmas sustentados pelos defensores dessa corrente: a segurança jurídica. De modo geral, não só os juízes, mas todos os operadores do direito são transformados em ―servidores acríticos del poder político establecido, ya fuese éste dictatorial o democrático, defendiendo la primacía de la ley positiva por encima de todo y dejando de cuestionarse los aspectos que afectan a la legitimidad o justicia de las normas jurídicas existentes‖ (LUÑO, 2009, p. 83).

Por último, o terceiro dos movimentos, a chamada ―Jurisprudência Analítica‖. Com origem na Inglaterra do século XIX, foi criada por John Austin (1790-1859), aluno de Jeremy Bentham, de quem tomou a concepção de que o Direito é um conjunto de mandatos emanados dos soberanos aos súditos, respaldados pela coação (ATIENZA, 2007, p. 274).

Trata-se este último (Jeramy Bentham, 1748-1832) de um autor britânico que influenciou vários países com sua codificação do direito, mas não conseguiu a adoção de suas ideias em seu país de origem, a Inglaterra. Iluminista e utilitarista, defendeu a codificação do direito britânico e sua sistematização, com o objetivo de clarificação e limitação dos poderes dos juízes. Para ele, só o direito positivo poderia ser direito; daí negar a existência do direito natural e, por consequência lógica, a existência de direitos anteriores ao Estado. É o que se extrai de sua produção científica (―A Fragment on Government‖, de 1776), que, por ter sido uma das primeiras teorizações sobre o direito positivo e a compreensão de que direito é o direito posto, constitui-se em

―antagonista coerente das teorias dos direitos naturais e das abstrações metafísicas relativas à ideia de justiça‖ (PALOMBELLA, 2005, p. 121).

O universo de Bentham era o sistema do common law, do qual foi crítico, chegando a apontar cinco defeitos fundamentais nele existentes, a saber: 1) a incerteza do direito, o que impede o cidadão de prever as consequências de suas ações; 2) a retroatividade, já que, quando o juiz decide com base em um novo precedente, ante a ausência de outros, cria direito novo e aplicado retroativamente; 3) o fato de não ser é fundado no princípio da utilidade, já que – segundo o autor, falta poder ao juiz para eleger a forma de solução das controvérsias que, em sua visão, devem estar previamente colocadas em lei; 4) a falta de competência do juiz para solucionar todos os casos que lhe são colocados, competência que reconhece ao legislador; e, por fim, 5) a ausência de condições do povo para controlar a produção do direito por parte dos juízes, o que não ocorre em relação aos legisladores (BOBBIO, 2006, p. 98).

Na visão de Bentham, todo o sistema jurídico deveria ser calcado na codificação do direito, códigos estes que teriam como características: utilidade, ou seja, a produção do melhor resultado para o maior número de pessoas; completude, que não deixaria espaço para a criação judicial do direito; clareza e precisão, de maneira que todos pudessem conhecer seu conteúdo; e, por fim, existência de uma motivação que indicasse a finalidade a ser atingida com aquela lei. São ideias fundamentais para a consolidação do positivismo jurídico, o que veio a acontecer com Austin, que ―representa um pouco o trait d‟union entre as várias correntes que concorreram para fazer surgir o positivismo jurídico e particularmente entre a escola histórica alemã e o utilitarismo inglês‖ (BOBBIO, 2006, p. 101).

Foi com ele que se deu a separação entre a teoria geral do direito ou filosofia do direito positivo e a ciência da legislação. A primeira estudaria o direito que é, e a segunda, o direito que deveria ser, podendo-se dizer ainda que Austin

comparte con el iuspositivismo la tesis de la diferenciación entre la ley que es o existe y la ley que debería ser o no debería ser de acuerdo con un estándar asumido, comparte, por lo tanto la idea de construir un sistema de derecho positivo racional y autónomo al margen de todo contenido ético y de todo aspecto histórico o sociológico del mismo (AMADO, 2002 , p. 119).

Para isso, também sustenta que é necessária e fundamental a codificação, entendendo que o direito positivo se caracteriza ―por um objeto certo (o direito como ele é), por uma visão imperativa de norma (estruturada como comando), por uma concepção estatalista do direito (a fonte da norma é o titular da soberania, órgão legislativo do Estado)‖ (PALOMBELLA, 2005, p. 122).