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3. O GRAFFITI E SUA ATMOSFERA

3.2 As obscenidades de Pompeia

Vira-se a página do que chamam de pré-história para a história, por volta de 3.500 a.C., no momento em que os signos pictográficos esboçam o surgimento da escrita cuneiforme atribuída aos povos sumérios da antiga mesopotâmia. Os povos que foram surgindo também fizeram uso de códigos pictográficos ligados à linguagem como os egípcios e os romanos. Segundo Paixão (2011), a ideia de que o domínio da linguagem estava restrito aos sacerdotes, escribas e autoridades não condiz com os inúmeros registros encontrados, que eram feitos por camadas não favorecidas. Registros de servos e camponeses cristãos perseguidos no império romano foram encontrados em escavações de catacumbas do séc. II ao séc. V, tratava-se da arte paleocristã, ou arte catacumbária, locais que usavam para cultuar o cristianismo secretamente. Nestas câmaras subterrâneas eram pintadas mensagens que custariam a cabeça de qualquer cristão. Literalmente! Em outras paragens, soldados e servos que trabalhavam para os nobres na cidade de Pompeia riscavam as paredes com materiais pontiagudos trazendo mensagens obscenas e subversivas. “ Sgraffiare” , foi o nome que os italianos deram para estas manifestações artísticas espontâneas em locais públicos.

A origem do termo é uma reminiscência do vocábulo italiano Sgraffiare . Assim, o

sgraffiti é uma técnica de decoração de fachadas, segundo a qual se sobrepõem várias camadas de estuque; antes deste secar, o artista faz incisões em forma de linha e levanta grandes zonas da camada superior. Desta forma, surgiram ao longo dos séculos fachadas com decorações muito resistentes que ainda hoje se podem ver em diversos lugares. Em meados do século XIX - coincidindo com a descoberta de inscrições nos muros de Pompéia - apareceu pela primeira vez a palavra graffiti . Desde o seu início, um dos traços característicos deste fenômeno foi o seu caráter extraoficial. Por esta razão, alguns arqueólogos, como Raffaele Garucci, separaram com absoluta clareza os graffiti da arte oficial. (STAHL, 2009, p. 6).

Segundo afirma Stahl (2009), arqueólogos classificavam caráter extraoficial ao chamado graffiti separando-o da arte oficial, e isso nos instiga entender: o que tinha de tão interessante no Sgraffiare Pompeiano?

Paixão (2011), nos coloca que a cidade de Pompeia que sucumbiu ao vulcão vesúvio no ano de 79 d.C, se manteve oculta durante 1.600 anos, sendo oficialmente “redescoberta”

esbarrado em paredes de Pompeia, mas o teor obsceno das inscrições encontradas foi o suficiente para que se ocultasse a descoberta, dado o clima moralista e classista do período. A revolução científica renascentista teceu uma ideia eurocêntrica em favor do colonialismo. Historiadores e arqueólogos a serviço do poder construíram versões carregadas de uma visão caucasiana, heterossexual e sexista, buscando assim, legitimar discursos como se fossem “missões civilizadoras”. As referências aos filósofos Aristóteles, Platão entre outros, dedicaram-se a transmissão de uma suposta tradição clássica. Após a publicação do livro: “ Arqueologia do Saber ” de Michel Foucault em 1969, a hegemonia do discurso eurocêntrico fora abalada. Foucault, chamava a atenção para o discurso e o poder na construção interpretativa da história. O autor salienta as descobertas de Pompeia e Herculano e entende que a invenção do ocidente repousa sobre aspectos fundantes na construção de identidades nacionais por meio do discurso colonialista.

Millet (1990) argumenta que os romanos introduziram a ideia da civilização tradicionalizando a Grécia como o berço do espírito europeu e o império romano como a consolidação da civilização. Os achados de símbolos materiais romanos pulverizados pelas províncias comprovam o uso da sua posição social a partir do processo de “emulação e aculturação”. O autor coloca que os estudos de Robin Collingwood, a partir de 1930, trouxeram modelos interpretativos que abriam espaços para abordagens “nativistas”. Millet (1990) destaca que a aculturação como modelo sociológico levanta vários questionamentos, desta forma, não é possível afirmar que a imposição de uma cultura julgada superior venha suplantar as culturas nativas trazendo homogeneidade social, pelo contrário, as resistências motivam manifestações ideológicas tendo a arte como um grande vetor.

O hiato temporal causado pela tragédia do Vesúvio, permitiu a cristalização da história de Pompeia, elucidando assim, importantes vestígios que questionam a hegemonia cultural do império romano e desmascaram a lascividade desta sociedade, comprovando também as estratégias com que a história forjou o pensamento eurocêntrico ocultando características tidas como impróprias ou pervertidas.

As imagens descobertas em Pompeia trazem um desconforto para a “romanização” histórica, por apresentarem mensagens consideradas obscenas e subversivas. Mas, há de se considerar a questão cosmo-pictórica que nos coloca Gell (2018) e Sanches (2003), sobre a

produção e agência da imagem e a sua relação com as imagens mentais produzidas pela humanidade em dado momento histórico.

Figura 12 - Dois homens e duas mulheres na cama.

Fonte: SANFELICE, 2016. p. 114

Pérola de Paula Sanfelice (2016), em sua tese intitulada: “Sob as cinzas do vulcão: representações da religiosidade e da sexualidade na cultura material de Pompeia durante o império Romano”, elucida mediante uma farta documentação, a permissiva, sofisticada e luxuriosa vida pompeiana. A autora salienta que a história sempre trata com delicadeza os registros em Pompeia, até mesmo, alguns dos documentos e registros históricos são estrategicamente protegidos no “Gabinetto Segreto” ou “gabinete secreto” que fica no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, sob o pretexto de que são considerados “pesados” para serem vistos pelo público em geral e, portanto, trancafiados.

Olhar carregado de uma sobreposição cultural cristã que não leva em consideração a ação agente das imagens em contextos ritualísticos ligados à adoração pagã de deuses cuja expressão de fertilidade, prazer e procriação tornaram-se tabus, como Vênus, Ísis, Priapo, Hermafrodito e entre outros das mais diversas culturas, Dionísio-Baco. Este último, considerado deus da transgressão, da loucura sagrada, da alteração temporária, da possessão, em que seu ritual de caráter extático (de êxtase), inclui: vinho, música (com flautas e tamborins), danças e movimentos corpóreos rodopiantes que levam ao transe e a cultos regados a exercícios orgiásticos, os chamadas práticas dionisíacas, rituais tíasos, báquicos ou somente bacanais. A prática que teve apogeu no século II a.C.passou a ser proibida em todo

permitia-se praticá-la.

Com base nos apontamentos apresentados pela pesquisa de Sanfelice (2016) é possível aferir que Pompeia era uma cidade rica, pulsante e no que tange a liberdade de expressão, subversiva enquanto representação imagética. Suas inscrições de graffiti respondem a uma transgressão da ordem Imperial Romana do período, realizada de forma contestadora, pelos próprios agentes desta sociedade para a própria sociedade. Seria o mesmo que dizer, que estavam reivindicando suas liberdades religiosas e práticas ritualísticas em uma sociedade em pleno processo de cristianização.