• Nenhum resultado encontrado

4. O GRAFFITI ENQUANTO IMAGEM

5.1 Os indígenas nas imagens

Dentre as vozes que ecoam nas paisagens urbanas encontramos o que Marta Silva (2009), chama de “ativismo indígena” que luta no plano simbólico dos campos. Ancorada em Bourdieu (2004), a autora estudou a elaboração de discursos que fundam a legitimidade da identidade destes grupos por meio de visualidades, o que faz criar uma arena por interesses morais e culturais. Dentre estas visualidades temos as principais matrizes que compõem os grupos étnicos brasileiros que são originários dos indígenas, dos africanos e dos colonizadores (principalmente os portugueses). Porém, as vozes dos povos indígenas são interditadas e silenciadas nestas visualidades. Quando a publicidade tenta maquiar a sua ideia de multiculturalidade, estampam em seus anúncios a presença de sujeitos brancos, negros e por vezes, arriscam-se a colocar até um asiático. Esta é a apresentação interétnica mais usada.

Os povos ameríndios são apagados da publicidade, da televisão, do cinema, de praticamente tudo. Quando raramente aparecem, são vistos em imagens carregadas de estereótipos generalizantes. Aquela imagem que para Freire (2002), é um dos equívocos mais disseminados entre os diversos estratos da população brasileira: diz respeito ao “índio genérico”, que ignora a diversidade étnica, linguística e cosmológica desses povos. Isso acaba estereotipando a sua imagem figurada, isso é, cristalizando um estereótipo fixo. Desta forma, não há o Xavante, Xerente, Karajá, Javaé... São apenas índios, ou seja, não se reconhece as especificidades de cada etnia, são todos carimbados com um mesmo rótulo ou estereótipo, de um índio semi nu na floresta, com pintura corporal, adereços de pena na cabeça e empunhando um arco e flecha. Estas são as representações imagéticas mais disseminadas.

O ativismo de que trata Silva (2009), busca sobretudo, trazer à tona a imagem dos povos indígenas em diferentes suportes imagéticos, como nos livros didáticos, em histórias infantis, quadrinhos e também na televisão. O que preocupa é o fato de que ao buscarem estas visualidades, partem da aparência mais facilmente assimilada onde a similaridade está diretamente ligada ao índio genérico.

O graffiti se coloca como um importante vetor, um suporte narrativo perfeito para trazer de forma pictórica e figurativa para o cinza das cidades, a temática indígena que sempre fora interditada e silenciada.

5.1.1 Olhar para o “outro”

Nos capítulos anteriores, me ative a contextualizar o Graffiti, sobretudo seu aspecto imagético, visando primeiramente calçar a atmosfera que permeia esta atividade artística urbana tão polêmica quanto presente nas metrópoles contemporâneas. Cabe, a partir deste momento, trazer a temática indígena problematizando a sua imagem como vetores que fazem circular sentidos que cristalizam identidades cunhadas com o propósito supostamente depreciador. Os conceitos articulados nessas produções imagético-discursivas resultam de práticas contínuas estabelecidas socialmente e, portanto, a partir de “relações de poder”, conforme Foucault (1998), o poder não é centrado em um único ponto, unilateral, mas sorrateiramente ramificado, circulante e produtivo. Assim, o poder não se restringe à proibição, controle e impedimento mas, também, atua como produtor de identidades. "Todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído." (HALL, 2000. p. 19).

As circunstâncias que fundam as práticas de representação do “outro”, são processos históricos socialmente imbricados e carregados de discursos que tendem a desnaturalizá-lo e torná-lo estranho ou "forasteiro". De acordo com Hall (2000), as linguagens, (incluídas aí as linguagens visuais), são vetores sutis destas produções de significados com intenções discursivas previamente estabelecidas, com o propósito de subjugar o outro nas relações interétnicas. O próprio autor, traz a noção de que as identidades são móveis e transitórias, construídas por relações sociais em que o outro é tratado como exótico, onde as diferenças são o ponto central deste jogo, ou seja, afirmamos o que somos, negando o que não somos.

Deste outro, pouco se considera sua voz nos discursos a seu respeito. São sempre constituídos em um falar “sobre”, calçando-se num interdiscurso já legitimado, onde o outro não tem autonomia sobre o que é dito, sua voz é marcada por falas estabelecidas em um outro lugar. A imagem indígena que se formulou durante o processo de colonização é vítima desta arbitrariedade enunciativa, assim como afirma Orlandi,

[...] o Índio não fala (nos textos que são tomados como documentos) do Brasil. Ele não fala, mas é falado, mas é falado pelos missionários, pelos cientistas, pelos políticos [...]. Eles falam do Índio para que ele não signifique fora de certos sentidos necessários para a construção de uma identidade brasileira determinada em que o Índio não conta. (ORLANDI, 2002. p. 59.).

Este falar “sobre”, é o que constitui o discurso que continua a produzir estereótipos que caracterizam a imagem indígena. A formação discursiva que consideramos para formar a opinião e o olhar sobre os outros, raramente leva em consideração a fala destes nesta construção enunciativa, uma vez que, já se trata de uma estratégia de poder o silenciamento destas vozes. No caso dos indígenas, isso não foi uma tarefa tão difícil assim, visto que a própria barreira linguística colaborou para que toda a documentação sobre a colonização fosse escrita em português. As diversidades de línguas indígenas se colocavam como uma barreira natural, que "convenientemente" eram desclassificadas, tidas como rústicas e insignificantes. Assim, todos os registros de memórias que passaram a ser disseminados, são escritos em português, por quem os analisa de fora, ou seja, por meio dos enunciados discursivos do colonizador. Este olhar do outro, torna-se fundante para que fosse construída uma narrativa que dissemina ideias equivocadas sobre indígenas, que perdura até os dias atuais.

Para que ocorram as construções de discursos generalizantes, não é necessariamente preciso que este outro seja de outra cultura, basta que seja outro em posições que afetem ou ameacem a hegemonia do próprio grupo. Norbert Elias e John Scotson (2000), na obra “Os estabelecidos e os outsiders”, ao pesquisarem as relações de poder entre grupos a partir de uma pequena comunidade britânica, trazem o claro exemplo de uma disparidade identitária formada a partir de estigmas que fazem por fundar e manutenir preconceitos. 32

Os autores constataram que a interação entre os membros de um determinado grupo socialmente constituído (estabelecidos) identifica traços depreciativos em outro grupo

(outsiders) criando estigmas negativos que passam a influenciar o comportamento destes. A conduta dos sujeitos do primeiro grupo que se considera normal perante o grupo estigmatizado é excludente e discriminatória. São compartilhados discursos de inferiorização que manutenciam e perpetuam a suposta superioridade do primeiro grupo para com o segundo grupo dos excluídos. A resposta a essa interação faz com que a autoimagem do grupo estigmatizado seja autodepreciativa transformando a própria consciência que o indivíduo tem de si retraindo assim sua liberdade de ação social.

Após a apresentação de conceitos norteadores que tangem o universo plurívoco do graffiti, da imagem e da temática indígena, cabe neste momento do trabalho a apresentação e

32 O estigma pode ser caracterizado como uma identificação do outro com base em convenções sociais

previamente estabelecidas. Neste sentido, não é preciso conhecer o outro para criar o estigma, sua construção é dada socialmente como dispositivo de superioridade e controle.

análise do corpus que é composto pelas imagens indígenas presentes no graffiti dos artistas Cranio e Raiz respectivamente.

Com base nas categorias filtradas na análise de conteúdo, entro no cerne da questão analítica, elucidando assim, como se dá o encontro de seus trabalhos com a temática indígena por meio da arte urbana do graffiti. Os itens que compõem a análise de conteúdo totalizam a quantidade de categorias que serão analisadas em subcapítulos. Para a apresentação da análise, optei por organizar a sequência em ordem alfabética, sendo primeiramente apresentado o trabalho de Cranio para depois apresentar o trabalho de Raiz.

Entendendo que as imagens que compõem determinada categoria são parecidas e/ou equivalentes. Para que o trabalho não se torne redundante, serão pinçadas dos artistas apenas algumas imagens que representam cada categoria, a medida que vão se descortinando as análises, visto que o total de imagens recortadas de ambos os artistas somam-se 459 imagens, sendo inviável metodologicamente analisar cada uma. Tenho agora as diretrizes e os conceitos técnicos que me permitem entrar de fato naquilo que se propõe ser o substrato corpóreo desta dissertação. A análise dos artistas.