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3. O GRAFFITI E SUA ATMOSFERA

3.7 O surgimento do graffiti no Brasil

Já no período da ditadura militar do Brasil (1964-1985), inscrições parietais eram usadas como instrumento de resistência. Assim como em Paris de 1968, as mobilizações por aqui reivindicavam sobretudo, a redemocratização do país, que vivia momentos de coerção, censura e terror. Audazes pichadores enfrentavam o Estado em intervenções que visavam mobilizar a sociedade em prol da liberdade.

23 O termo Pop art é uma abreviação de “arte popular” em inglês. Refere-se a um movimento artístico surgido

nos Estados Unidos por volta de 1954, envolto em um figurativismo que se opunha ao expressionismo abstrato em voga no período. Os ícones da cultura popular oriundos da televisão, da fotografia, dos quadrinhos do cinema e da publicidade eram utilizados em reproduções artísticas com caráter crítico à sociedade do consumo. Uma de suas marcas era a reprodução de várias cópias do trabalho, questionando assim a ideia de que a obra precisa ser única e original. Andy Warhol (1928-1987) foi um dos fundadores e maior representante da pop art . De suas obras destacam-se as reproduções multicoloridas de Marilyn Monroe e as repetições das latas de sopa Campbell. Paradoxalmente ao seu intuito, o movimento popularizou-se tornando as próprias obras objeto de consumo.

Figura 15. Pichação na Estação Rio Centro, datada de 1968.

(Foto: Reprodução/Voyager)

Na sociedade e até mesmo dentro dos próprios grupos, é possível perceber preconceito para com os pichadores, são considerados despreparados, selvagens e alheios ao senso estético. Para Bourdieu (2004), especificidades simbólicas intrínsecas ao campo, só são percebidas por integrantes do próprio campo . 24

A cidade de São Paulo notadamente tem destaque no cenário mundial da arte urbana, as características tanto da pichação, quanto do graffiti paulistano elevaram a apropriação visual urbana a um novo patamar. Gitahy (1999), atribui o termo “pichação”, a um costume do período da Inquisição na Idade Média, onde padres e religiosos, se utilizavam de uma substância betuminosa chamada de “piche”, para identificar e difamar a parede de casas e conventos de outras ordens religiosas os quais não compactuavam.

Os pichadores modernos se aventuram em ousadas interferências buscando notoriedade. As tipografias criadas, são estudadas por pesquisadores e tornaram-se fontes caligráficas que chegaram a publicidade. Grande parte dos grafiteiros assumem que foram, ou ainda são pichadores. Aperfeiçoaram suas técnicas tanto pela observação dos desenhos que surgiam, como pelo próprio aprendizado em grupo. Sobre a pichação e o graffiti Paixão (2011), acrescenta:

24 Particularmente ( enquanto artista e pesquisador ), já estive inserido dentro do campo da pichação e hoje

A permanência em nosso tempo dessas duas formas de manifestação por meio de signos visuais desautorizados inscritos diretamente na paisagem, é uma complexa demonstração de força, de desobediência e de afirmação do indivíduo; são seu cógito e o anúncio da sua existência: pixo, logo existo. O grafite, a pixação e a tatuagem, entre os jovens da América Central, ao mesmo tempo em que têm servido como modo de demarcar os territórios, dos quais se apossam, e homenagear os seus mortos, têm servido como práticas de resistência política, de construção de socialidade e de construção de uma identidade contra a opressão do anonimato. (PAIXÃO, 2011, p. 209)

Segundo Spinelli (2010), foi Alex Vallauri, o precursor do graffiti figurativo brasileiro, estampando suas icônicas “botas femininas” pelos muros de São Paulo por meio das técnicas de estêncil . O historiador segue afirmando que Vallauri, no final dos anos 1970, ancorado nas tendências da pop art , reconfigurou a estética urbana de São Paulo com suas intervenções irônicas e ousadas, onde o consumismo, a crescente industrialização e o desenvolvimento tecnológico do período, foram as inspirações que levaram Vallauri a adaptar suas leituras visuais da “arte popular” para as ruas. Suas intervenções colocaram em debate as imposições e os limites da arte tradicionalizada e elitizada, restrita até então a galerias e museus.

Para Gitahy (1999), o surgimento das intervenções urbanas de Vallauri, ecoaram por todo o movimento artístico paulistano, que motivado pelas ideologias contraculturais que efervesciam pelo mundo, fizeram por surgir novos artistas que foram aderindo à ação de colorização da cidade. Em pouco tempo, já se podia perceber um cenário de arte urbana instalado no país. Os muros pálidos e cinzentos da cidade, passaram a trazer cores retratadas em diversas representações artísticas, como: personagens das histórias em quadrinhos, elementos da cultura pop, seres extraterrestres, sensuais representações femininas, tudo isto, entre frases, pichações e assinaturas diversas.

A trajetória do graffiti no Brasil, de modo geral, pode ser dividida em fases que determinam períodos distintos. Na primeira geração, que compreende as décadas de 1970 e 1980, podemos destacar que ao contrário do que ocorreu em Nova Iorque, foi a classe média e alta quem fez as primeiras intervenções. Poetas, artistas plásticos e estudantes universitários por meio de intervenções coletivas e individuais começaram a agir paralelamente aos grupos de performances teatrais. Destaca-se entre eles, o grupo Tupinãodá, 3nós3 e Manga Rosa. Artistas como Alex Vallauri, Waldemar Zaidler, Carlos Delfino, Ciro Cozzolino, John

Howard, Jaime Prades, Rui Amaral, Zé Carratu, Carlos Matuck, Julio Barreto e Maurício Vilaça são considerados integrantes da "velha escola" ( old school ). Precursores de um estilo figurativo que enfatizava o contraste de cores e o improviso em intervenções criativas que traziam como referência os personagens da cultura pop e das histórias em quadrinhos.

Conforme coloca Gitahy (1999), a trajetória do graffiti no Brasil tem sua origem na pichação, onde “além das frases de protesto, surgiram outras bem-humoradas e enigmáticas, como por exemplo: CELACANTO PROVOCA MAREMOTO, referente ao monstro pré-histórico do seriado japonês Nacional Kid”. (GITAHY, 1999. p. 21). O autor também cita o famoso criador de cães que espalhava a frase: CÃO FILA KM 22. Contudo, Gitahy atribui à pichação a popularização do graffiti no Brasil, visto que, foi a partir da pichação que a periferia apareceu no contexto urbano das cidades.

O autor segue distinguindo a pichação em quatro fases, sendo a primeira entendida como o processo de “carimbar” o próprio nome exaustivamente como uma fuga do anonimato, assim como fez Juneca e Pessoinha. A segunda fase surge da competição pelo espaço, onde de forma individual ou em grupos também chamados de crew , disputavam o espaço físico da cidade com símbolos de identificação. A terceira fase, ocorre quando passam a valorizar a intervenção mais alta ou mais difícil, nesta fase os pichadores realizam façanhas ao driblar vigilâncias e escalar prédios. Muitos pichadores morreram tentando. Na quarta fase, os pichadores valorizam a audácia e a polêmica gerada pela intervenção e ganham notoriedade dentro do campo quando a mídia espetaculariza os feitos. Neste período, foram alvos dos pichadores: o Teatro Municipal de São Paulo e do Rio de Janeiro, igrejas e monumentos, nem a estátua do Cristo Redentor escapou.

Para Gitahy (1999), as cores do graffiti surgem do ele chama de “Grapicho”, uma fase intermediária entre pichação e graffiti, onde os interventores passaram a sofisticar as grafias de suas pichações atribuindo cores, contornos e efeitos de volumetria com luzes, sombras e perspectivas. Somado a isto, passam também a incorporar figuras e personagens inspirados na cultura hip-hop. Os trabalhos foram se aperfeiçoando cada vez mais, chegando até as complexas produções dos artistas na atualidade. O fato é que a dinâmica de surgimento da arte urbana, mesmo que paradoxalmente, tenha surgido nas classes mais favorecidas, é no gueto que ganha força. A bifurcação ocorre em função do juízo estético de quem analisa, por mais que o graffiti seja parcialmente aceito enquanto arte, a pichação é menosprezada, embora ambas as intervenções sejam ainda participantes de um jogo de (in)dizeres criminalizados. A

subversão da legalidade. A arte é a mesma, é apenas a autorização desta que está em jogo. Desta forma, podemos entender que as intervenções de arte urbana, autorizadas ou não, são partícipes da transformação constante da cidade que, de um lado, se transforma fisicamente pela ação do tempo e de outro, pela ação do homem que a reconstrói, restaura, a modifica constantemente. A arte urbana é mutante e efêmera como o registro do nome na areia da praia. Instantes depois de ser realizada, pode sofrer interferência ou ser pintada cobrindo-a. O artista de rua já sabe, a obra é da rua.