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CAPÍTULO 1: AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS NO

1.3 NOVOS CONFLITOS INTERNACIONAIS E AS

1.3.2 As operações de imposição da paz

Uma descrição mais clara das atividades realizadas pelas Nações Unidas nos campos da paz e da segurança surge em “Suplemento de Uma Agenda para a Paz”, de 1995:

As Nações Unidas têm desenvolvido uma série de instrumentos para controlar e resolver conflitos entre e dentro de Estados. Os mais importantes deles são diplomacia preventiva e pacificação; manutenção da paz; construção da paz; desarmamento; sanções; e imposição da paz. Os três primeiros podem ser empregados somente com o consetimento das partes envolvidas no conflito. Sanções e imposição, por outro lado, são medidas coercitivas e assim, por definição, não requerem o consentimento da parte interessada [grifo meu] (BOUTROS-GHALI, 1995, Art. III, item 23).

Essas operações militares de imposição da paz (peace

enforcement) tinham o propósito de garantir que mantimentos

chegassem aos que realmente necessitavam, sem ser desviados para as partes beligerantes. Podiam também ser utilizadas para forçar um cessar-fogo, quando um conflito localizado assumia proporções que ameaçassem inocentes. Enquanto as missões de manutenção da paz (peace keeping) são de responsabilidade e comando do Secretário- Geral da ONU, as ações militares estão sob mandato direto do Conselho de Segurança. Tornou-se comum alternar as duas modalidades, para potencializar os efeitos pretendidos com as missões. As intervenções na Somália, no Haiti e na Ruanda, nos anos 90, têm como ponto comum o fato de que, a princípio, eram missões de paz com mandatos humanitários e de caráter imparcial, sem autorização de uso da força. Conseqüentemente, encontraram severas limitações no desempenho de suas funções e sofreram grandes perdas humanas e materiais, o que levou o Conselho de Segurança a, posteriormente, autorizá-las a usar todos os meios necessários para cumprir seus mandatos, transformando-as então em operações de

imposição da paz 12. Do mesmo modo, quando a situação se torna menos perigosa, pode-se dispensar o uso da força e transformar uma missão armada em desarmada, como no caso do Timor Leste, em 1999 (CONSELHO DE SEGURANÇA, 1999).

A intervenção no Iraque, em 1991, em resposta ao massacre curdo promovido pelo governo de Sadam Husseim, nasceu com o propósito de criar zonas de segurança para a minoria curda, e é considerada a “primeira intervenção humanitária autorizada nas relações internacionais modernas” (RODRIGUES, 2002, p. 4). Em 1992, o Estado da Somália entrou em colapso, com inúmeras facções lutando pelo poder. O país foi arrasado por um sangrento conflito civil, e estima-se que a fome decorrente da situação de violência degenerada e pelas secas tenha matado cerca de trezentas e cinqüenta mil pessoas (WHEELER, 2000, p. 174). O Estado tornou-se um fator de instabilidade na região, com enormes massas de refugiados deslocando-se para países vizinhos. Na Iugoslávia, também em 1992, uma intervenção armada era a única maneira de garantir a chegada de assistência humanitária e a proteção aos não-combatentes durante a guerra civil (RODRIGUES, 2002). No Haiti, o golpe militar de 1991 instituiu um governo repressivo, provocando fome, caos político e um fluxo de refugiados para a República Dominicana. Só em 1994 houve intervenção armada13, após inúmeras ameaças e embargos fracassados. No ano seguinte, a etnia hutu promoveu o genocídio de milhares de pessoas da etnia tutsi, na Ruanda. Receosos de que a situação ocorrida na Somália ─ onde as forças da ONU sofreram grandes perdas humanas e encontraram enorme resistência na provisão de ajuda humanitária ─ pudesse repetir-se, a comunidade internacional levou três meses para agir. Nesse meio tempo, um milhão de tutsis foram exterminados brutalmente. O fracasso em um país africano selou o destino de outro, resultando no primeiro caso de genocídio desde o Holocausto (WHEELER, 2000).

12 Isso as difere de intervenções como a MINUSTAH, já criada de acordo com as

prerrogativas do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas e autorizada a utilizar a força na execução de suas funções. “Authorizes the Member States participating in the Multinational Interim Force in Haiti to take all necessary measures to fulfil its mandate” [grifo meu] (ONU, Resolução 1529/2004, p.2).

13 A intervenção armada na verdade consistiu na reformulação da operação de paz

precedente, a MINUHA, que havia terminado seu mandato em 1993, antes do período estabelecido, devido à recusa do governo militar em cooperar. Como o caos humanitário persistia, o Conselho de Segurança transformou a missão em uma força multi-interina autorizado a fazer uso da força na imposição da paz.

Essas experiências reforçaram a prática do Conselho de Segurança de associar direitos humanos a segurança internacional, o que, além de ser uma forma de garantir a autorização da força dentro das prerrogativas da ONU, justifica-se pelas conseqüências das crises humanitárias atuais, que geralmente transcendem fronteiras e acarretam desequilíbrios para os países vizinhos. Ocorre ainda que, em algumas situações, não há paz a ser mantida, mas imposta, como na Somália e na Bósnia-Herzegóvina.

Apesar da mudança positiva ocorrida na maneira como a ONU compreende situações de crises humanitárias, ao final da década de 1990 a Organização contabilizava uma série de oportunidades perdidas de agir em tempo razoável para evitar catástrofes humanas maiores. Na maioria das vezes, a inação frente a um caso emergencial deveu-se à dificuldade de motivar os Estados a participar de uma ação humanitária. Por não possuir uma força permanente disponível, a ONU depende da boa-vontade de membros capazes de fornecer contingentes para as missões. Além disso, toda decisão de intervir ou não é permeada por questões políticas, e os países raramente se mostram dispostos a colaborar sem levar em conta seus próprios interesses nacionais envolvidos, que evocam ora a soberania ora os direitos humanos para justificar suas decisões.

Percebendo essas dificuldades, Kofi Annan, ex-Secretário- Geral das Nações Unidas, insistia na necessidade de reagir mais rapidamente em crises humanitárias. No artigo intitulado “Os dois conceitos de soberania”, ele questionava o a rigidez do conceito de soberania frente a essas situações:

Estados são hoje amplamente entendidos como instrumentos a serviço de seus povos, e não o contrário. Ao mesmo tempo, a soberania individual ─ e refiro-me à liberdade fundamental de cada indivíduo, consagrada na Carta da ONU e em tratados internacionais subsequentes ─ tem sido reforçada por uma renovada e ampla consciência dos direitos individuais. Quando lemos a Carta hoje, estamos mais conscientes que nunca que o seu objetivo é proteger os seres humanos individuais, e não proteger aqueles que abusam deles (ANNAN, 1999, p. 49).

E ainda, quanto à seletividade na autorização de intervenções humanitárias pelo Conselho de Segurança:

Essas mudanças no mundo não fazem duras escolhas políticas mais fáceis. Mas elas nos obrigam a pensar sobre questões, tais como a forma com que a ONU responde a crises humanitárias; e por que os Estados estão dispostos a agir em algumas áreas de conflito, mas não em outras onde o número de mortes e o sofrimento são tão ruins ou piores. De Sierra Leone ao Sudão, da Angola ao Afeganistão, existem pessoas que precisam mais do que palavras de compaixão. Elas precisam de um compromisso real e continuo para ajudar a acabar com seus ciclos de violência, e dar-lhes uma nova oportunidade para alcançar a paz e a prosperidade (ANNAN, 1999, p. 49).

Annan vai ainda mais longe em seu apelo à proteção dos direitos humanos e critica, inclusive, a necessidade de autorização formal do Conselho de Segurança para que os Estados possam agir. Lembrando o genocídio em Ruanda, ele questiona:

Imagine por um momento que, naqueles dias e horas sombrios que conduziram ao genocídio, houvesse uma coalizão de Estados pronta e disposta a agir em defesa da população tutsi, mas o Conselho negasse ou adiasse a permissão. Deveria uma tal coligação, então, ficar de braços cruzados enquanto o horror se desenrolava? (ANNAN, 1999).

1.4 A DOUTRINA DA RESPONSABILIDADE DE