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2. TORCIDAS ORGANIZADAS NO ESTADO DO CEARÁ: BREVE HISTÓRICO

2.1 As Organizadas tradicionais do estado do Ceará

As primeiras Organizadas de moldes modernos fundadas na capital cearense datam do início dos anos 1980. Considera-se a Torcida Garra Tricolor a pioneira (PINHEIRO, 2014b, p. 2). Este grupo nasceu em 1980 e ficou em atividade por 12 anos. Embora mantivesse instrumentos e músicas semelhantes às das tradicionais charangas, a Garra Tricolor se constituía como um agrupamento diferente daquelas, constituído por pessoas mais jovens. Possuía também uma postura mais contestadora em relação à diretoria do time, realizando protestos quando os resultados dentro de campo ou questões de ordem administrativa do clube lhes pareciam insatisfatórios. O grupo de pessoas que fundou essa torcida era composto, em sua maioria, de jovens adultos, universitários e casados (Ibid., p. 6).

Três anos após sua fundação, a Garra Tricolor já possuía cerca de 800 integrantes. Para fazer parte dela o postulante devia realizar um cadastro. De acordo com um dos fundadores, “a pessoa, pra se associar à Garra Tricolor, tinha que passar por uma triagem. Então, a gente só aceitava quem achava que deveria aceitar” (Ibid., p. 8).

A Torcida Organizada Cearamor, apoiadora do Ceará SC, foi criada em 1982, passando por uma reestruturação em 91, sendo atualmente a maior Organizada desse clube. Josiane Ribeiro (RIBEIRO, 2010) aponta que, no princípio, esse grupo era constituído por aproximadamente trinta pessoas, de classe média e média alta. Para fazer parte dela, assim como na Garra Tricolor, o postulante

precisava conquistar a confiança dos demais membros, convivendo com eles por um tempo até finalmente ganhar a aceitação. Isso se modificou à medida em que a torcida foi crescendo.

Após a já citada reestruturação, o cadastramento passou a ser feito mediante a apresentação de uma foto 3x4, cópia do documento de identidade e pagamento de taxa de inscrição. A filiação, portanto, tornou-se uma questão mais burocrática que subjetiva. Também com o passar do tempo o perfil socioeconômico dos integrantes mudou, ganhando a predominância de classes populares ou classe média baixa, conforme será visto em breve.

Outra torcida relevante no universo das Organizadas do estado do Ceará é a Torcida Uniformizada do Fortaleza – TUF. Fundada em 1991, ela é hoje a maior Organizada vinculada ao Fortaleza EC e trava com a Cearamor a principal rivalidade entre torcidas do Estado. Sua estrutura é semelhante às demais Organizadas do país, com divisão de cargos entre presidência e diretorias. A filiação é feita por meio de cadastro, preenchimento de ficha e entrega de foto 3x4.

Várias outras Organizadas existem em diversas cidades cearenses. Não faz parte dos objetivos deste trabalho listá-las detalhadamente, mas é preciso falar um pouco sobre o conjunto de torcidas que apoiam o Ceará SC, como forma de contextualizar o universo de Organizadas no qual os Cangaceiros Alvinegros estão. Além da Cearamor e dos próprios Cangaceiros, outras torcidas importantes são a Ceará Chopp, a Fúria Jovem, o Movimento Organizado Força Independente (MOFI) e o Setor Alvinegro.

A “Torcida Fúria Jovem do Ceará” nasceu em 1992. Protagonizou uma forte rivalidade com a Cearamor, o que levou a Fúria à quase extinção no início dos anos 2000. Após passar alguns anos de muita fragilidade, permanecendo nos estádios graças às faixas que alguns poucos integrantes continuavam a pendurar, a Fúria voltou a se fortalecer após 2010.

O “Movimento Organizado Força Independente – MOFI” foi criado em 2005, tendo boa parte dos seus primeiros integrantes chegado a partir da Fúria Jovem. Assim como a antecessora, também a MOFI se envolveu em vários conflitos

com a Cearamor, embora atualmente ambas as torcidas estejam em uma situação de paz.

Antes de falar sobre as torcidas alternativas, é preciso tocar num ponto fundamental sobre a história das Organizadas tradicionais da capital cearense: os antigos bailes funk da cidade de Fortaleza.

Esses eventos funk aconteceram na capital cearense entre meados dos anos 80 e 90. É importante falar deles porque boa parte dos jovens que vivenciavam aqueles bailes passou a incorporar as Torcidas Organizadas, quando aquelas festas se tornaram proIbidas. Proibição que se deu, sobretudo, por conta dos frequentes confrontos físicos entre os jovens que deles participavam.

A interdição dos bailes funks resultou numa remodelação significativa das torcidas organizadas, principalmente por dois motivos: primeiro, a interdição dos bailes não implicou a dissolução das significações organizadoras das sociabilidades que lhes eram características; segundo, com o fim dos bailes, todo aquele contingente juvenil que os frequentava migrou para as torcidas organizadas, com a mesma demanda por poder e enfrentamento (RIBEIRO, 2010, p. 115).

Os jovens oriundos das festas funk chegaram às Organizadas trazendo consigo as lógicas e sociabilidades que eram características dos bailes. Uma delas era a questão do sentimento de pertença ao bairro. Muito mais do que o time pelo qual torciam, eram os bairros de moradia que tornavam os jovens pertencentes a um ou outro grupo. Através desse critério, haviam grupos integrados simultaneamente por torcedores de Ceará SC e Fortaleza EC, por exemplo. Embora obviamente essa mistura de torcedores não esteja presente nas Organizadas, o vínculo ao bairro é um elemento muito forte nelas, sobretudo nas Organizadas tradicionais. É frequente ouvir torcedores, a caminho do estádio, bradando gritos de guerra que falam o nome de seus bairros; nas arquibancadas também é comum ver pessoas segurando faixas em formato de cachecol com o nome do bairro. A socióloga Glória Diógenes descreve como as Organizadas criam subdivisões internas, tendo os bairros como critério:

As subdivisões das torcidas organizadas esquadrinham a cidade de acordo com o bairro ao qual pertencem (...). Cada bairro de periferia vai de galera para o estádio, e quase sempre é mencionado assim: bairro X é Ceará; Bairro Y é Fortaleza (...). A torcida opera um sentimento de posse em relação à sua subdivisão: esse espaço da cidade me pertence e eu carrego para onde eu vou. É preciso que as torcidas exerçam um poder de comando, de domínio nas áreas onde se situam suas subdivisões (Diógenes, 2003, p. 86).

O bairro é tão importante para os torcedores organizados que, muitas vezes, é motivo de brigas e rivalidades severas entre torcidas, inclusive de um mesmo time. Já citei os conflitos entre Cearamor vs Fúria Jovem e Cearamor vs MOFI. Entre as Organizadas do Fortaleza EC, a disputa TUF vs Jovem Garra Tricolor (JGT) é marcante. Se nos bailes funk torcedores de diferentes times conseguiam conviver em um mesmo grupo, unidos pelo bairro, nas torcidas a convivência entre alguns torcedores é tensa justamente porque eles são de bairros rivais. Desse modo, nesses casos, o “bairro em comum” aparece como fator de integração mais forte do que o “time em comum”, exatamente como acontecia nas festas funk.

Outro aspecto das sociabilidades funk que chegou até às Organizadas (o que não significa que elas já não o tivesse antes) é a questão da virilidade voltada ao “combate”. A juventude, nas pistas de dança dos bailes, ordenava seus grupos de tal modo que, naquele espaço, se reproduzia as divisões territoriais da cidade de Fortaleza. Divisões simbólicas determinadas pelas redes de amizade, inimizade e rivalidades entre bairros. A certa altura das festas, iniciavam-se os contatos violentos entre esses diferentes grupos, numa mistura e alternância de briga e dança. Participar desses momentos necessitava de certo preparo:

A construção das experiências dos jovens frequentadores de bairro também implicava em (...) uma aprendizagem relacionada à construção de uma corporalidade aguerrida, voltada ao conflito. Para tanto, durante o período de aprendizagem, era preciso o preparo do suporte físico do corpo e a construção da sustentação emocional para o combate (RIBEIRO, 2010, p. 108).

A disposição e preparo para o confronto seguem presentes em muitos torcedores, sobretudo os organizados. Observando os escudos das Organizadas tradicionais, por exemplo, nota-se como seus mascotes trazem feições de agressividade e/ou de muita força física, ilustrando esse aspecto do preparo para o confronto:

Figura 01: Escudos dos principais grupos de torcedores do Ceará SC. Em cima, as Organizadas tradicionais; embaixo, as alternativas.

Veremos mais sobre isso no último capítulo. Ribeiro chama a atenção ainda sobre como esses momentos de confronto, muito mais do que simples manifestações irracionais de “selvageria”, refletem contextos sociais de demarcações territoriais simbólicas, rivalidades, amizades e conflitos que aqueles jovens experimentam no seu dia a dia no bairro, na cidade.

O baile funk se coloca como um espaço de continuidade dessa lógica demarcatória e seu poder agregador e de atração sobre os jovens frequentadores advinham da continuidade oferecida pelo baile às marcações identitárias daí decorrentes, ao passo que oferecia o efeito arena, imprescindível para a constante construção dessa formação cultural juvenil (Ibid., p. 110).

Esse preparo à briga, nas Organizadas, pode ter sido influenciado pelos bailes funk. Mas os confrontos que existiam nessas festas não eram algo que surgiam dentro delas: refletia relações sociais mais profundas. O antropólogo José Garriga Zucal, falando sobre o contexto da violência entre torcedores de futebol na Argentina, reforça a importância de se pensar esse fenômeno dos conflitos de outra forma que não pelo superficial viés da “irracionalidade”:

El primer paso para entender la violencia en el fútbol es rever aquellas concepciones que afirman la irracionalidade de estas acciones. La común caracterización de irracional e incivilizado del accionar violento lo incluye dentro de los limites de lo patológico y lo penable; esto mismo dificulta una discusión seria sobre sus causas y consecuencias. La práctica violenta es una acción nutrida de significación por sus actores, que no debe ser interpretada como “salvajismo” o muestra de incivilidade (GARRIGA ZUCAL, 2005, p. 60-61).

O comportamento torcedor segue uma lógica própria que lhe confere sentido aos olhos dos que estão inseridos naquele contexto. Descrevê-lo como “irracional” seria demonstrar que, na verdade, não se conseguiu alcançar as razões que o motivam. O primeiro passo para se entender as práticas torcedoras, dentre elas os confrontos físicos, é identificar os códigos que a fundamentam. Dentro de uma perspectiva de intervenção social, essa identificação seria também o primeiro passo para se oferecer soluções àquelas condutas.

Retornando às especificidades das torcidas cearenses, Ribeiro argumenta que os jovens incorporam essas experiências de conflitos vividas no cotidiano e as levam para outras situações, como os bailes funk e, posteriormente, as Torcidas Organizadas. As vivências dos bairros, então, extrapolam suas próprias fronteiras físicas e tomam toda a cidade junto com os rapazes e moças que as trazem consigo. O conceito de território enquanto experiências carregadas nos próprios corpos nos ajuda a refletir sobre essa questão:

O Território se constitui como marca que cada um carrega para onde vá, marca que cada um carrega dentro de si, cujo terreno cartográfico é, fundamentalmente, o corpo. O território das gangues é movediço. Ele se constitui sob o referente territorial, o lugar de moradia e circula, explicita-se, através do nomadismo de seus integrantes, em pontos diversos da cidade. É desse modo que a cada lugar de encontro, de festa, uma mesma trama territorial se desenha. As divisas dos bairros projetam-se nos estádios, através das torcidas organizadas e nos bailes funks através das galeras (DIÓGENES, 1995, p. 145).

Uma dessas marcas carregadas no corpo são as práticas de violência. Garriga Zucal, novamente falando sobre torcedores argentinos, mostra como um dos aspectos cotidianos comuns aos hinchas que pesquisou é a presença de atitudes violentas como mediadoras de conflitos, comportamentos aprendidos e reproduzidos por eles em outras esferas, como as rivalidades entre torcidas:

Las prácticas violentas, al igual que el consumo de droga y algunos delitos menores, son comunes em los contextos de socialización de los integrantes de la hinchada. Por ejemplo, la violencia es parte de las experiencias corrientes de los participantes de la hinchada, es uma herramienta legítima para dirimir sus conflictos. La práctica violenta no se reduce al ámbito del fútbol (...). Un hincha en una conversación me comentó que así se solucionaban los problemas em “el barrio”, que no era como em la “facultad” donde las cosas se podían conversar; las disputas se zanjaban de esta manera “o te pasan por arriba” (GARRIGA ZUCAL, 2005, p. 69-70).

Compreender os comportamentos das Organizadas passa, portanto, pela análise do contexto social dessa juventude. Ribeiro aponta que os jovens de

Cearamor e MOFI, em sua maioria, vêm de uma realidade de pobreza material, estigmas de marginalidade e um campo bastante restrito de “possibilidades de construções identitárias” (RIBEIRO, 2010, p. 63). Garriga Zucal interpreta as práticas violentas como uma via para uma construção identitária ativa dentro desse campo restrito de possibilidades.

Concebimos un margen de autonomía dentro de las relaciones de dominación que permite a los actores construir, muchas veces a partir de estas relaciones, un estilo proprio, dentro de cuyos límites existen elecciones identitarias que pueden terminar siendo criminalizadas (GARRIGA ZUCAL, 2005, p. 72).

Diógenes vai ao encontro dessa interpretação que confere às atitudes de violência um estado de criação e afirmação de uma identidade. A autora enfatiza o sentimento de pertença ao bairro nesse processo:

No espaço de entorno dos bailes funk e dos estádios de futebol, “um império fervilhante de signos” produz uma cenografia particular e paradoxal: galeras de jovens, através de seus corpos, “conduzem territórios”. Símbolos, “montagens”, bandeiras recriam a geografia da cidade, “desfilam cidade”. Uma dinâmica particular da violência, toda ela construída através da defesa de área, de projeção da força e do poder de um bairro sobre os demais, se faz anunciar como meio de instituir um signo territorial (...). Corpo e território (bairro) operam uma semiologia da cidade, registram e fazem circular significantes relativos a modos diversos de inserção urbana (DIÓGENES, 2003, p. 77-78).

Desse modo, pensar sobre as práticas violentas entre Organizadas tradicionais requer, necessariamente, compreender o contexto social de exclusão, violência, rivalidades e outros aspectos que compõem o dia a dia desses jovens, sobretudo no contexto dos seus bairros. Os Cangaceiros vivem uma dinâmica completamente diferente. O perfil socioeconômico que será traçado no ponto 2.7 deste capítulo mostrará como os componentes dessa torcida pertencem a um contexto social diferente, com mais renda e escolarização. Os bairros em que a maior parte de seus integrantes mora não estão entre as regiões mais estigmatizadas ou de piores condições de vida da cidade, conforme será visto no ponto supracitado.

Encerrando por hora essa discussão sobre Organizadas e práticas violentas, é curioso perceber como uma parcela da responsabilidade sobre isso cai sobre os próprios times e seus jogadores: espera-se que eles deem “o exemplo”. É comum campanhas contra a violência nos estádios promovidas pelos clubes, usando seus principais jogadores como porta-vozes de um discurso de paz entre as

torcidas. Quando a troca de provocações entre times é exagerada, ou quando os jogadores entram em confrontos físicos entro de campo, eles recebem críticas por estarem, imagina-se, dando “mau exemplo”, incentivando os torcedores a agirem do mesmo modo.

Radamés Rogério (2014) traz diversos trechos de colunas, reportagens e até pronunciamentos políticos criticando as condutas agressivas do jogador Edmundo (Palmeiras/SP, Vasco/RJ, dentre outros) dentro e fora de campo. Críticas que consideravam esse comportamento um estímulo para os torcedores. O apelido do jogador é “Edmundo animal”, justamente por conta dessas atitudes.

A associação do jogador ao acontecimento [uma briga sangrenta entre organizadas do Palmeiras/SP e do São Paulo] estava baseada na caracterização da ação dos torcedores como também animalesca, bem como no recente histórico de cenas de violência protagonizadas pelo jogador em campo (...). O clímax da culpabilização do jogador, porém, ocorreria com a publicação de uma reportagem do Jornal da Tarde que citava um pronunciamento feito no Congresso Nacional pelo deputado federal Paulo Delgado (PT/MG) em que este sentenciava Edmundo como “o” principal responsável pela violência nos estádios (ROGÉRIO, 2014, p. 77).

O autor conclui demonstrando a força que a imagem social dos jogadores possui, a ponto de ser vinculada a esses sujeitos parte da responsabilidade de uma questão social tão complexa:

Segundo esse raciocínio, o poder de influência do jogador de futebol é muito grande, ao ponto de consagrar este ou aquele modelo de conduta e de vida. Embora considere extremamente exagerada, precipitada e generalista esta associação da violência da torcida com as atitudes do jogador Edmundo, considero pertinente refletir sobre a posição destacada que esses indivíduos ocupam na sociedade, particularmente, devido à exposição midiática e a intensidade com que tanto a profissão quanto o esporte inundam o imaginário coletivo (Ibid., p. 78).

O senso comum geralmente julga a questão da violência entre Organizadas como fruto de “selvageria”, “irracionalidade” ou mesmo “má índole”. Mesmo assim, nota-se como há nessa percepção o reconhecimento de que alguns fatores externos podem sim influenciar o comportamento dos torcedores, seja para condutas positivas ou negativas. Esses fatores externos, ainda no raciocínio do senso comum, são em geral as ações de clubes e jogadores.