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Gráfico 12: bairros de moradia dos componentes da TUF, classificados pelo IDH

3 “NORDESTINANDO AS ARQUIBANCADAS”

4. OS CANGACEIROS ALVINEGROS NO UNIVERSO DAS TORCIDAS ORGANIZADAS CEARENSES

4.2 Visões sobre violência entre torcidas

4.2.2 Bebida alcoólica e violência

As bebidas alcoólicas são um tema recorrente nos discursos dos Cangaceiros. Além das referências já mencionadas, elas são citadas pelos torcedores em grande parte de suas músicas, como exemplificam esses versos:

Porque eu gosto de beber, gosto de vibrar Eu sou cangaceiro.

Gosto de torcer, gosto de cantar Pelo alvinegro

(Música ”Eu vou torcer pro Ceará”) Balança a cachaça no mei do corredor Cangaceiro e Cearamor

(Música “As torcidas estão unidas”) A vida aqui só é ruim

Quando não ganha o vozão Mas se ganhar dá de tudo Cachaça tem de montão Tomara que ganhe logo Tomara, meu deus, tomara Não deixo o meu Ceará Nem se a cachaça acabar.

(Música “Não deixo o meu Ceará nem se a cachaça acabar)” Vamos derrubar o litrão

E torcer pro vozão de coração

Com minha cachaça na mão Vou beber de montão Vai meu vozão

(Música “Pout Porri – Cachaça”)

Percebe-se como há uma referência especial à cachaça dentre as demais bebidas. Esse destilado é fabricado a partir da cana-de-açúcar, um tipo de planta que foi largamente cultivado em terras brasileiras desde os primeiros séculos de sua colonização. Isso se deu modo mais intenso em locais hoje compreendidos como parte da região nordestina: um trecho que vai de Ceará a Sergipe, além do recôncavo baiano (FREIRE, 1967, p. 10). O modo de produção açucareiro teve enorme influência na formação social naquelas terras. Gilberto Freyre destaca um modelo de família aristocrático mais forte que em qualquer outra parte do Brasil, dotado de características “quase feudais”. A base dessa estrutura social da zona canavieira era composta também pelos negros escravizados e pelos homens livres pobres – os sertanejos (Ibid., p. 102-104).

Durante as primeiras décadas do século XX, conforme visto no capítulo anterior, foram criados alguns órgãos estatais voltados ao Nordeste, como o IAA – Instituto do Açúcar e do Álcool; e a SUDENE – Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste. Deve-se entender por “desenvolvimento” uma maior inserção na dinâmica da produção capitalista e em novos modelos de industrialização (PENNA, 1992, p. 29). A chegada desses projetos modernizantes não foi suficiente para alterar as formas de reprodução do capital e desigualdades

no Nordeste. Pelo contrário, essas medidas acabaram por reforçar aquele status quo (OLIVEIRA, 1993, p. 67).

Os projetos de industrialização do Nordeste não extinguiram a produção agrária do açúcar, mas sim a intensificaram. A partir da década de 70 foi expandida a área ocupada pela plantação de cana-de-açúcar, arroz, cacau, feijão, laranja e milho (ARAÚJO, 1995, p. 129).

Aluísio aponta esse vínculo histórico da cachaça com o Nordeste para explicar a sua citação constante nas músicas. Já Gotardo enxerga um “elemento cultural” na bebida:

A nossa turma gosta de beber. A gente gosta sempre de tomar umas. Mas tudo na paz (...). [A presença da cachaça nas músicas] é porque a cachaça, né... no Nordeste tem a cachaça, no nosso Ceará tem a cachaça. É uma coisa mais assim, pra esse lado... (Aluísio).

E aí, assim, como uma paródia, o cultural da nossa torcida, a cachaça, e aí a gente tenta propagar a cachaça nas músicas (Gotardo).

Assim como seus companheiros acima, Walter também indica um elemento regional, afirmando que a cachaça seria algo “mais nordestino”. Mas traz também outra justificativa: ela seria a predileta entre os torcedores cangaceiros:

A gente é bebedor de cachaça oficial! É mais é cachaça. Fora de casa, as viagens só rola cachaça, pouca cerveja, é mais é cachaça. É mais nordestino, né, a gente é... cearense, Nordeste, bebedor de cachaça, mesmo. Beber até... até ficar alegre [risos] (Walter).

A entrevista com Walter foi realizada no entorno do estádio Castelão, no dia 23 de agosto de 2015, aproximadamente às 15h, portanto uma hora e meia antes de começar o jogo do dia, Ceará SC vs Paraná Clube. O torcedor, visivelmente, já estava bastante “alegre”. Contudo, no momento da nossa conversa ele não estava segurando nenhum copo ou garrafa, o que me impediu de ver que tipo de bebida ele efetivamente estava consumindo. Ele foi o único cangaceiro que apontou a cachaça como bebida favorita daquele grupo de torcedores. Os demais indicaram a cerveja como a preferência.

É o caso, por exemplo, de Gotardo. Embora ele fale sobre o quanto os Cangaceiros gostam de cachaça...

A nossa torcida, em si, é um caso sério com a cachaça [risos]. Meu amigo, eu nunca vi uma torcida pra gostar tanto de beber. Eu vou te contar, é um recorde, viu? (Gotardo).

...reconhece que, apesar desse gosto, não é a ela a bebida mais consumida, mas sim a cerveja:

O que [a gente] bebe mais é a cerveja, cerveja bebe muito. Mas a cachaça é uma aliada muito forte na nossa torcida. A gente não afasta a cachaça não [risos]. Ela tá sempre na nossa roda, ali, sempre bebendo (Gotardo).

Gotardo foi aquele que, como vimos na página anterior, usou o argumento do “cultural” para justificar o destilado de cana nas canções. Aluísio, também na página anterior, explicou essa presença por razões históricas, mas igualmente lembrou que ela não é a mais ingerida:

A maioria [dos Cangaceiros] bebe cerveja. Mas a cachaça, por ser um negócio mais assim, mais nordestino... (Aluísio).

Pode-se compreender que, embora o álcool mais consumido seja a cerveja, a cachaça (que também é apreciada) tem um aspecto simbólico que vai ao encontro da proposta “cultural” da torcida. Isso lhe garante a condição de bebida- símbolo.

Além dessas duas bebidas já citadas, outras são lembradas em músicas:

Vodca, whisky, cerveja e cachaça Sou cangaceiro, sou, sou cangaceiro Vodca, whisky, cerveja e cachaça Sou cangaceiro, sou, sou alvinegro (Música “Sou é cangaceiro”)

Mesmo sendo a cerveja o álcool mais consumido, e a cachaça o símbolo, ainda há espaço para se falar de outras bebidas. No trecho acima se lembram de vodca e whisky, mas podemos compreender como uma exaltação das bebidas alcoólicas em geral; das sofisticadas às populares, das mais fortes às de menor teor.

A fala de Braga traz uma explicação interessante para isso:

Você sabe que todo nordestino, além de ser apaixonado pelo time, sempre gosta de tomar umas, né? Pessoal [os Cangaceiros] é apaixonado por uma birita, festas. Tem uns que tem a preferência, né? Mas o bom bebedor, ele toma de tudo [risos] (Braga).

Nota-se como a presença da cachaça nas músicas tem, como explicação predominante, o vínculo cultural e histórico dessa bebida com a região Nordeste; Walter acrescenta outro motivo, afirmando que ela seria o tipo alcoólico preferido da torcida. Contudo, apenas ele, dentre os entrevistados, afirmou isso. Outros indicam

a cerveja como bebida mais ingerida. Há ainda o exemplo de Braga, para quem o torcedor nordestino deve beber “de tudo”.

Há algo em comum em todas as falas: a afirmação contundente de que a torcida gosta de consumir álcool com intensidade: “a nossa turma gosta de beber”, “um caso sério com a cachaça”, “a gente é bebedor de cachaça oficial”, “pessoal é apaixonado por uma birita”. Isso também é reforçado nas músicas:

Vou dar um gole na cachaça Eu fico bebo44 mas não passa

O meu amor ao Ceará

(Música “Eu vim mostrar minha alegria”) Eu sou é cangaceiro

Torço pro Ceará

Nem que eu morra bebo

Eu vou é sacudir a arquibancada (Música “Cangaço só na gelada”) Sou cangaceiro

Alvinegro Já tô é bebo Quero mais o quê?

(Música “Pout Porri – Cachaça”) Vamos beber todas

Pro vozão vamos torcer Ceará Chopp e Cangaceiros Fazem o estádio tremer

(Música “As torcidas estão unidas”)

Com efeito, de acordo com o que observei nos meus momentos juntos à torcida, praticamente todos os integrantes bebem álcool nessas ocasiões, em maior ou menor quantidade. Também percebi como alguns, como disse Walter, ficam “alegres”, com comportamento alterado pelo efeito da bebida, embora raramente eu tenha visto alguém que poderia ser considerado “embriagado”, com as capacidades de raciocínio e equilíbrio comprometidas.

Também constatei como a cerveja é de fato a bebida predominante. A cachaça está presente, com suas garrafinhas sobre as mesas, mas a quantidade de recipientes de cerveja é maior. Geralmente essas garrafas estão guardadas em pequenos isopores, de maneira que o rótulo nem sempre é visível. Mesmo assim, tive ocasiões de perceber que nem todas essas cervejas eram de marcas populares como “Brahma”, “Antarctica”, “Skol”, “Nova Schin”, etc. Encontrei alguns cangaceiros

consumindo nomes como “Budweiser” e “Heineken”. Essas são marcas mais caras e que são vendidas no Brasil com o status de premium45.

Conforme já comentado, uma explicação pela frequência da cachaça nas músicas pode ser de ordem identitária: esse destilado, cuja matéria-prima está fortemente associada à história cultural e econômica da região Nordeste, vai muito mais ao encontro do discurso regionalista propagado pela torcida do que qualquer outra bebida. Isso chega mesmo a ser apontado por alguns entrevistados. Mas outra motivação possível, talvez menos evidente, é a questão da virilidade. Conforme será visto detalhadamente no tópico “Violência verbal” deste capítulo, os Cangaceiros compartilham da ideologia, presente em algumas outras Organizadas, de que a torcida precisa ser máscula. O oponente, para ser desqualificado, é chamado de feminino ou gay.

O destilado possui um teor alcoólico muito superior à cerveja. Dizer-se um “bebedor de cachaça”, assim, é mais impactante e viril. E quando a cerveja em questão é premium (bebidas desse tipo têm uma imagem de sofisticação, oposta à de rudeza), essa distinção parece ainda mais forte. Tal como os adolescentes “mirrados” de Cearamor e MOFI, que vestem camisas com estampas de mascotes musculosas para se afirmarem fortes e guerreiros (RIBEIRO, 2010, p. 55), os Cangaceiros parecem supervalorizar seu consumo de cachaça na construção da imagem máscula. São os nordestinos “cabra macho” que suportam beber de tudo, em especial, uma bebida forte.

É importante ainda lembrar que os Cangaceiros se recusam a participar de confrontos físicos entre torcedores. Pensando essa disposição para a briga como um capital dentro do universo das Organizadas (sobretudo as tradicionais), recusar- se a possuir esse capital pode significar uma perda de prestígio dentro desse

campo. Poderia também indicar uma imagem indesejada de fragilidade, covardia.

Declarar-se um bebedor de cachaça, assim, pode servir também como estratégia para recuperar um pouco dessa representação de masculinidade.

45 A economista Marili Ribeiro assim descreveu a chegada dessas duas marcas ao Brasil em 2011: “A holandesa Heineken e a americana Budweiser vão brigar pelo que se convencionou chamar de mercado ‘premium’, segmento com preço cerca de 20% superior aos das outras cervejas” (RIBEIRO, 2011).

Aqui há uma questão interessante: a relação entre bebida alcoólica e confrontos entre torcidas. Os Cangaceiros se posicionam em um delicado meio termo nesse assunto.

A lei federal Nº 10.671, conhecida como Estatuto do Torcedor, foi sancionada, em 2003, pelo então presidente Lula da Silva. Este conjunto de normas dispõe sobre a proteção e defesa dos espectadores de eventos esportivos. Dentre suas várias resoluções, destaco a que proíbe a entrada e o consumo de bebidas alcoólicas dentro das praças esportivas:

CAPÍTULO IV

DA SEGURANÇA DO TORCEDOR PARTÍCIPE DO EVENTO ESPORTIVO (...)

Art. 13-A. São condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei:

(...)

II - não portar objetos, bebidas ou substâncias proIbidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência (BRASIL, 2003).

A não-ingestão de álcool dentro dos estádios é tratada, nesta lei, como questão de segurança. Esse tipo de bebida é considerado oficialmente como um potencial estimulador de práticas violentas entre torcedores.

Neste ponto, chama a atenção o fato de os Cangaceiros sustentarem dois discursos que em certa medida podem ser vistos como conflitantes: de um lado, a crítica à violência; do outro, a ode ao consumo de bebidas alcoólicas, que são descritas pelo próprio Estatuto do Torcedor como “suscetíveis de gerar a prática de atos violentos”. Essa possível contradição não parece ser problemática a esses torcedores. Não identifiquei nenhum tipo de música, lema, documento ou nota oficial na qual os Cangaceiros tratassem desse vínculo álcool/violência, nem mesmo como forma de desconstrução. O único momento em que vi os torcedores falando disso foi na situação de entrevista, quando os indaguei diretamente sobre o assunto. As respostas sustentam a ideia de que essa ligação entre álcool e violência não seria correta, embora não haja uma argumentação mais aprofundada sobre isso.

Na minha concepção [creio] que não seja esse fato, relacionado bebida com violência, não, até mesmo porque a violência hoje infelizmente tá no mundo, e não é por conta só da bebida (Célio).

Eu acho que não tem nada a ver, não. Uma bebidazinha lá dentro do estádio não influiria em nada a respeito de briga, não (Aluísio).

Walter reconhece alguma ligação entre álcool e violência, embora a minimize:

Tem algumas pessoas que se altera mais, e tal, faz uma confusãozinha acolá, mas eu acho que não influencia (...). Eu acho que não faz, pra mim, cachaça, bebida alcoólica lá dentro do estádio era pra ser liberado. Acho que não influencia em muita coisa não. Pode influenciar um pouco. Mas, muita coisa, não (Walter).

Os entrevistados também revelam o que compreendem como sendo pontos falhos nesse sistema de proibição: apesar de não ser permitido beber álcool dentro dos estádios, a venda no entorno das praças esportivas é liberada. Além disso, alguns torcedores (não é especificado de quais Organizadas) entrariam com bebidas escondidas:

Hoje é proIbida a venda dentro do estádio de bebida alcoólica, mas muitos torcedores chega duas horas antes de jogo, mete o pau na cachaça, como a gente chama aqui, e depois lá dentro do jogo... (Célio).

O pessoal acha que vender a bebida dentro do estádio gera confusão. Não concordo muito com isso não, porque... fora do estádio tem, todo mundo bebe, né? Entra, outros entram com bebida (Aluísio).

Eu acho que quem vai pra arrumar confusão arruma. Bebendo ou não bebendo, “eu vou pra arrumar confusão”, o intuito deles de vir pro estádio é esse (...). Porque a gente bebe aqui fora, tem gente que já entra bebo, com intuito de arrumar confusão. Pessoal que usa droga dentro, pessoal que usa droga aqui fora, entra lá dentro já pra arrumar confusão, muito louco, tá entendendo? (Walter).

Além das bebidas consumidas no entorno do estádio e levadas escondidas para as arquibancadas, Walter chama a atenção para outras substâncias: as drogas.

Deste modo, a relação entre álcool e violência, reconhecida pelo Estatuto do Torcedor, não é compartilhada pelos Cangaceiros entrevistados. Para eles, as motivações de brigas nos estádios estão para além da influência do álcool. Além disso, apontam como contraditório o consumo de bebidas no entorno dos estádios, visto que alguns torcedores já iriam bêbados para as arquibancadas. O argumento de que a proibição do álcool não inibirá os que estão realmente dispostos a brigar se faz presente também quando os entrevistados falam sobre a questão da violência nas Organizadas de maneira geral. Isso será visto no próximo tópico.