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AS PÁGINAS ABERTAS

No documento Amyr Klink - Linha d'Agua (páginas 95-104)

A Marina ficou em São Paulo, eu segui para a França com uma pequena mochila nas costas. E com os restos mortais das páginas dobradas. Consegui comprar uma conexão para a ilha inglesa depois de resolver que antes de propor uma mudança drástica no projeto da dupla Bouvet & Petit eu deveria promover uma investigação surpresa no negócio suspeito de mastros ingleses. O certo seria ter antes agendado um appointment, como dita a etiqueta saxônica. Não quis. Aquela altura dos acontecimentos, estava tratando o assunto como caso de polícia, o tal Damon como depoente-chave.

Descendo a rodovia M3, ao volante esquerdo da menor viatura que pude alugar no aeroporto inglês, segui direto para Hamble Point, endereço do fabricante de mastros.

Existia mesmo a fábrica Carbospars, embora ela se assemelhasse mais a uma grande oficina instalada em vários galpões baixos no meio de uma marina pública. O pior é que eu já conhecia o lugar. No terreno baldio bem em frente à fábrica uma vez, no passado, eu havia pernoitado no decrépito Land

Rover de uma brasileira voluptuosa que morava em Londres.

O escritório, separado das instalações, ocupava duas lojas da marina. Sem formalidades, fui muito bem recebido pelo sr. Roberts, que me levou para uma visita às unidades de laminação e montagem. Impressionavam a exigüidade e a bagunça das instalações para um trabalho tão refinado, mas ao mesmo tempo dava para sentir no ar o cheiro de competência. Funcionários, poucos na verdade, imundos de cola, resinas, pó de lixa nos cabelos, fabricando peças de centenas de milhares de libras esterlinas. Mais impressionante ainda conversar com eles. Garotos uns, velhos outros, muito poucos tinham menos de uma volta ao mundo nas costas. Todos, como amadores ou não, haviam tripulado veleiros de provas oceânicas nos quatro cantos do mundo. Bem ao lado da construção térrea e baixa onde ficava o acanhado escritório estava atracado o imponente catamarã Enza, da Nova Zelândia, que sob o comando de Peter Blake acabara de quebrar o recorde de volta ao mundo sem escalas, em 74 dias, recorde estabelecido um ano antes por Bruno Peyron, o outro irmão do Loick, que dias antes eu encontrara no Kotick, em Puerto Williams.

com uma brasileira de Minas Gerais. Havia passado dois anos trabalhando nas obras de Itaipu. Arranhava o português. Convidou-me para conhecer o Enza, em que fizera um sem-número de alterações, adicionando componentes em fibra de carbono. Eu não sabia mais o que perguntar. Só queria tocar por alguns segundos o casco, os cabos, as velas. Parei em silêncio, em sinal de respeito, diante da histórica roda de leme, a mesma trazida semanas a fio por Blake e Robin Knox-Johnston.

São mesmo estreitos esses caminhos dos barcos de oceano. Em abril de 86, em Punta del Este, numa das paradas do Rapa-Nui, fui flagrado quase indigente pelo Peter Blake em carne e osso. As botas de borracha que eu usara na Antártica haviam sido perdidas num acidente quase trágico a bordo, e eu não tinha sapatos. Ele me viu saindo descalço do

Rapa-Nui, maltrapilho como um navegador francês,

no elegante cais em que faziam escala os belíssimos barcos da regata de volta ao mundo. Verdadeira passarela, onde velejadores bronzeados desfilam reluzentes os uniformes dos seus patrocinadores. Soube que vínhamos da Antártica, e pediu, timidamente, para conhecer o meu barco.

— Não é meu, mas seja bem-vindo.

para conhecer meu combalido Toyota Bandeirantes sem capota. Na época, Peter Blake já era um dos maiores nomes da vela de todos os tempos, e estava comandando o favorito Lion New Zealand. Ficou impressionado com a robustez do Rapa-Nui e com as fotos de paisagens paradisíacas feitas pelos Jourdan na Geórgia e na Antártica. Eu fiquei impressionado com sua simplicidade e atenção. Por influência involuntária dele, acabei fazendo amizade com um dos tripulantes do veleiro belga Cote d'Or, comandado por outro velejador lendário, Eric Tabarly. Dedé, um francês meio palhaço que eu voltaria a encontrar trabalhando no Pelagic, me salvou de inúmeros constrangimentos ao me presentear com seu velho par de tênis. Tinha no mínimo umas 50 mil milhas de uso — e aspecto correspondente —, e calcei-os, ininterruptamente, como se fossem troféus, até o dia em que, de volta ao Brasil, terminaram confiscados pela mãe da Ana Maria, por discutíveis razões de saúde pública.

Passei a noite num apartamento do clube náutico de Hamble — bem menos interessante que o Land Rover de anos antes —, e pela manhã, depois de quitar uma multa por ter parado com o pára- choque duas polegadas além da faixa do estacionamento onde eu era o único veículo, segui

para o encontro com os franceses em Vallauris. Na saída da cidade, entrei na Satchell Lane e parei na frente do número 93, a casinha geminada de tijolos vermelhos onde mora o Skip. Ele ainda estava nos canais patagônicos com o Pelagic. Deixei um bilhete embaixo da porta. Os mastros estranhos eram mesmo pouco conhecidos e ousados, mas existiam, pareciam confiáveis, e eu tinha gostado da idéia de fazer um

Paratii 2 mais simples e moderno.

Às nove horas do dia seguinte eu estava novamente na porta do escritório da Petit & Bouvet: a rua estreita, a passagem medieval e o predinho geminado de dois andares em pedra que mais lembrava uma velha adega. O Olivier já me aguardava. Cumprimentei rapidamente os estagiários que trabalhavam na parte de baixo, sob arcos de pedra e sem janelas, e subimos para a prancheta no mezanino. Eu levava uma pasta com alguns prospectos da fábrica inglesa de mastros, mas não me contive. Saquei do bolso traseiro as páginas dobradas já em decomposição avançada, coloquei-as sobre a prancheta do Olivier, abertas bem na foto que mostrava um veleiro branco com a imensa cruz invertida em cima e disparei:

— O que você acha deste negócio aqui?

responder, e começou a puxar de umas gavetas grandes um monte de projetos. Senti um enorme alívio quando vi os desenhos. Todos de barcos usando os estranhos mastros. Os projetistas do escritório francês eram incompreendidos adoradores do sistema inglês, haviam feito vários projetos mas nunca um de seus clientes tivera a ousadia de adotá- lo ao encomendar um barco. Eram tantas as vantagens e tão incomum o desenho do sistema que os clientes, desconfiados, terminavam optando por sistemas convencionais. Era caro, também, mas, depois da visita à fábrica em Hamble e de varar noites fazendo contas, eu concluiria que no meu caso, o de um barco ainda inexistente a ser construído num país onde importar um penico ou uma esquadra de helicópteros dá mais ou menos o mesmo trabalho, havia vantagens importantes. Se o projeto do casco e o plano de manobras levassem em conta desde o início o uso do sistema, o valor maior dos mastros seria largamente compensado pela economia em reforços estruturais, catracas, stoppers, desvios e centenas de traquitanas caras que normalmente entopem o convés de um veleiro. Eu teria um convés limpo, absolutamente livre de equipamentos em que tropeçar. Poderia andar de bicicleta fazendo voltas no casario... transportar postes, canoas, vacas ou pessoas

sem atrapalhar as manobras de velas, todas aéreas. Lembrei de uma foto do Damien II velejando nas Falkland, com o Jérôme ao leme e pelo menos 150 carneiros viajando no convés, indo de Beaver Island para Port Stanley.

O súbito ânimo do Olivier, de refazer todos os desenhos e apostar numa solução completamente nova, contaminou o ar da sala. Ele tinha dúvidas técnicas que eu não sabia responder.

— Vamos telefonar para o inglês, Amyr.

O Damon atendeu. Contou que o barco maior das minhas fotos dobradas, o Fly, tinha setenta pés e um mastro de 36 metros de altura, muito próximo do que ele imaginava para os do Paratii 2. Se quiséssemos, ele poderia agendar uma visita. O barco estava em Oban, Escócia, na entrada sul do lago Ness, em escala depois de uma travessia recorde do Atlântico Norte, comandado por um casal de septuagenários...

Senti vontade de beijar as mãos dos velhinhos e de ter setenta anos para celebrar travessias oceânicas em destilarias escocesas!!

Era preciso ir ver, e se possível velejar o tal Fly, O Olivier concordou. Parecia irresponsabilidade pura, no momento em que o estaleiro tomava forma e sugava todos os centavos que eu era capaz de

produzir, afastar-me ainda uma vez para experimentar barcos esquisitos na Escócia. Mas o fato é que eu me tornara um especialista em transformar projetos, e não ia perder a oportunidade de conhecer o Fly em ação. O Thierry, em Itapevi, ainda não estava informado das mudanças que eu planejava. Em tese, passar de mastros convencionais, presos por cabos de aço, para perfis autoportantes era simples e lógico. Na prática, um transtorno: centenas de horas de projeto a refazer. Os mastros livres se posicionariam bem à frente do ponto de apoio normal; teríamos que alterar o projeto estrutural e o arranjo interno, que já estavam definidos. Combinamos então, os três, um encontro em Glasgow e uma travessia dos Highlands para Oban.

Santa decisão. Em Hamble, o Damon mostrara sua patente aplicada em alguns veleiros ancorados na marina. Eram todos pequenos, e na verdade nenhum com milhas suficientes para provar sua confiabilidade. O Fly completara meia dúzia de travessias do Atlântico. Passamos apenas um dia nos

firth escoceses, um dia decisivo de manobras. Com

vento nervoso, garoas e rajadas, o simpático proprietário no comando tirava finas de destilarias e barcos precavidos, fazendo evoluções que dúzias de atletas velejadores não teriam como superar em

ousadia. Não poderia ter sido melhor.

Descobrimos um problema do sistema, no cabo que segura a vela de proa. O Olivier deu uma solução simples: os futuros mastros teriam que ser laminados com uma acentuada curva para trás, para pré- tensionar o cabo, exatamente como faz o mastro de gororoba de uma jangada cearense. A encrenca cuja foto andou semanas no meu bolso funcionava mesmo. O projeto do meu veleiro com as cruzes invertidas e as curvas de carbono ficou um espetáculo.

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No documento Amyr Klink - Linha d'Agua (páginas 95-104)