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0 TESTE QUE FALTOU

No documento Amyr Klink - Linha d'Agua (páginas 104-115)

Existe uma curiosa correlação entre beleza e eficiência dinâmica, no ar ou na água. Projetistas de aviões com freqüência insistem que aviões feios voam mal. Não ligo a mínima para assuntos de beleza, mas em barcos acontece algo parecido. Talvez porque a essência da beleza esteja na simplicidade absoluta, e a simplicidade de linhas é o que faz um casco andar bem. Ou porque a beleza agrada aos sentidos, e nada agrada mais num barco do que o movimento limpo, sem arrasto, sem desperdício de energia. O projeto do

Paratii 2 ficou simples, limpo, aerodinâmico. O

Stickel, o Neco, exímio projetista de bólidos voadores e hábil sobrevivente de suas invenções aerodinâmicas, gostou, e acabou fazendo uns desenhos muito interessantes de como ficaria, quando pronto, o casco. Com os mastros impressos na escala correta, o desenho ganhou um ar de bólido aeronáutico. Não era por acaso que a patente inglesa para essas estruturas autoportantes se chamava Aerorig. O Neco é um desenhista gênio, que vive num ciclo circadiano invertido, e com quem nem sempre é fácil encontrar, por causa dos horários

estranhos. Prezo muito suas opiniões. Ninguém no mundo é mais engraçado do que ele, nervoso e ligeiramente gago, descrevendo os desastres aeronáuticos de algumas de suas criações: planadores orgânicos de alta velocidade, asas voadoras, flutuadores anfíbios. Imitando os gemidos cortantes do vento, estruturas em colapso, o rosto deformado pela pressão aerodinâmica, ailerons com as mãos, profundores com os pés, turbinas com as bochechas, um verdadeiro performista. Tive a honra de ser seu cúmplice em alguns projetos, em outros quase fui vítima. Mesmo acidentes terrestres o Neco conseguia transformar em aéreos.

Em 1986 fomos juntos à Namíbia visitar o deserto do Namib e os amigos que dois anos antes tinham me ajudado a desembaraçar o LA. T. — o barquinho com cara de tamanco holandês que eu usei para remar até o Brasil. Viajávamos no teto de outro decrépito Land Rover, o do amigo Gunther, quando o Neco, numa lombada de areia vermelha, decolou em direção às dunas do deserto de Kalahari. Não entendi como não morreu. Outra vez, em São Paulo, na represa do Juqueri, perto do famoso hospício homônimo, um acidente aéreo se transformou em submarino. Depois de inúmeras tentativas de fazer decolar uma asa voadora presa ao bote inflável preto

do Paratii, o nosso instrutor de vôo, Luizinho, piloto talentoso mas nadador medíocre, espatifou-se no meio da represa e afundou. Pulamos na água gelada de roupa e tudo, eu e o Neco, e nadamos mais rápido do que medalhistas soviéticos para resgatar o Luiz antes que se afogasse, e também o engenho voador. Enquanto aguardávamos pelados ao sol de inverno, para que as roupas secassem mais rápido, o Neco imediatamente vislumbrou a solução de um catamarã em alumínio para vôos anfíbios. Poucos meses depois, na represa de Americana, os flutuadores do catamarã, construídos na Levefort, a fábrica do bote laranja com o qual fisguei a Marina, ficaram prontos. Funcionaram e voaram lindamente. Tão lindamente que o esquálido e aerodinâmico Luizinho, eufórico com a performance anfíbia, exagerou num dos pousos, a barra entrecascos quebrou, e ele novamente desapareceu numa explosão de espuma no meio da represa. Foi salvo de afogamento certo pela segunda vez.

No fundo, sabíamos que diante do que estava para ser feito em Itapevi todas essas desventuras de aprendizado eram experiências de risco banal. Fazer funcionar o estaleiro, produzir obras confiáveis para terceiros, treinar mão-de-obra especializada, gerir e sustentar financeiramente uma operação complexa

por um período longo eram tarefas de risco muito maior do que todas as aventuras do Neco somadas. Muito menos atraentes, também. Os fantasmas de cascos moribundos de projetos abandonados e estaleiros falidos não eram fruto da imaginação. Eu tinha fotos e dados sobre o assunto.

A França, mãe da ousadia arquitetônica em construções navais, passou por um movimento curioso a partir da década de 1970. A circunavegação errante e solitária de Bernard Moitessier produziu um livro — La Longue route — que influenciaria a cultura e o espírito de desprendimento dos franceses. Por outro lado, o tom intimista, sensível, sem um fio de pieguice aventureira, do relato da Sally Poncet, no clássico Le Grand hiver, também colaborou para isso. O inverno a sós com Jérôme, ao sul do círculo polar, e o filho nascido a bordo na solidão da Geórgia foram um ato filosófico maior que qualquer aventura. Na mesma década de 1970, outro bretão ilustre, de poucas palavras, inovador e determinado, Eric Tabarly, iniciaria uma série de conquistas em provas de oceano que perduraria por três décadas. Sob a influência desses relatos e do ambiente político da época surgiu, sobretudo na Bretanha, uma legião de construtores amadores que sonhavam partir pelo mar em busca da liberdade.

Milhares o fizeram, sem recursos nem experiência, às vezes com crianças pequenas, animais de estimação ou sogras, como reza o folclore sobre os franceses. A posição estratégica das nações francofônicas e antigas colônias ajudou, facilitando a necessidade às vezes complicada de encontrar empregos temporários para prosseguir. Raríssimos desistiram depois de partir. No entanto, dezenas de milhares de barcos, os dos sonhadores de menor convicção ou senso prático, nunca foram concluídos por seus armadores originais. Acabariam fazendo navegar terceiros, ou consumidos pelo tempo.

A construção amadora tornou-se um negócio, os cascos abandonados, um mercado. O mundo náutico amadureceu. Descobriu-se que marinas e portos de lazer, ainda que minúsculos ou isolados, tinham efeito positivo e multiplicador na economia e no turismo. A atracação de embarcações em estruturas flutuantes padronizadas, normatizadas e conectadas a serviços — ao invés de deixá-las espalhadas em poitas sem nenhum controle, como se estimula no Brasil — diminuiu o dano ambiental, o número de acidentes, o custo da manutenção e o do seguro. Qualificou mão-de-obra. Levou à despoluição de rios, velhos portos e baías ocupados desordenadamente.

A França virou referência no mundo náutico, criou os parâmetros e as normas que faltavam. Resgatou a cultura, a memória e a história, que alguns choravam ter perdido para os saxões da ilha em frente. Transformou portos decadentes em destinos turísticos, marinas, museus, núcleos de preservação. Viu surgir um negócio bilionário que, ainda mais que o turismo, só funciona em escala mundial: o do afretamento de embarcações consignadas e o conseqüente ciclo virtuoso de atividades relacionadas. Escolas de vela aos milhares, compra compartilhada ou consignada de barcos novos que podem ser usados por equivalência em bases espalhadas pelo mundo, crescimento das indústrias náutica e turística, leis ambientais mais eficazes acopladas a novas tecnologias de saneamento.

As escolas de vela e marinharia ultrapassaram a dimensão esportiva ou do lazer e abraçaram a função educativa e de formação. Tornaram-se obrigatórias, não no sentido legal apenas, mas também para a viabilidade econômica dos projetos. Eventos esportivos e culturais, regatas em solitário ou tripuladas, competições, exibições de técnicas tradicionais ou de tecnologia, não só cresceram como foram exportados para todo o planeta.

Hoje, verdadeiros bólidos singrando oceanos em velocidades há pouco tempo impensáveis pulverizam a cada ano novos recordes. Estruturas que contrariam a lógica, materiais compostos de aplicação aeroespacial, e soluções testadas em condições extremas rapidamente tornam-se disponíveis para os usuários leigos ou do negócio do turismo. Menos de uma dúzia de homens e mulheres, a maioria vivos e navegando — almas gigantes de calos nos dedos e pele enrugada, usando botas de borracha e capas surradas —, foram, talvez sem saber, com as suas histórias quase precárias de coragem, os responsáveis. Quase todos bretões.

Esse movimento tem enorme probabilidade de acontecer no Brasil, onde, melhor do que ter feito errado, nada foi feito. Mais do que na Europa, aqui haverá, ao lado do econômico, um grande benefício social.

O Paratii foi de certo modo a minha experiência de aprendizado amador.

Ao admirar a beleza dos desenhos do Neco, a harmonia dos perfis imensos e curvos em fibra de carbono, ficou evidente que uma decisão importante como a escolha de solução tão incomum já não poderia ser teórica. O barco novo, com mastros que mais pareciam asas, se tornara um barco alado. Por

mais que a estética sugerisse eficiência ou funcionalidade, por mais que a idéia de fazer algo diferente contaminasse os envolvidos, agora não seria eu a única vítima. Os espaços de construção do estaleiro estavam completos, e dos cinco mastros a serem instalados nos futuros barcos apenas um seria convencional, com cruzetas, terminais, apóstolos e todo o resto. Encomendamos as maquetes dos barcos a um sujeito extremamente habilidoso de Campinas que um dia encontrei perambulando em Paraty, o Marcos. Ele as fez em massa plástica, com todos os detalhes estruturais e os mastros aeronáuticos. Móveis e desmontáveis. Um espetáculo. Os dois primeiros clientes do estaleiro, o comandante Ary, do veleiro Hozoni, e o Beto, do Londrina, optaram pelo sistema, ambos claramente convencidos pelos belos prospectos ingleses e por confiar na minha escolha para o Paratii 2. O Thierry endossou a idéia. O novo mastro significaria uma razoável simplificação estrutural em relação aos outros barcos que projetara. Ele conhecia tudo sobre mastros autoportantes e laminação, apenas não tinha visto um ao vivo antes da nossa velejada escocesa em Oban. Eu vira alguns, outros em gestação na fábrica inglesa, mas não entendia nada de fibra de carbono ou de seu modo de laminação. O Luc Bouvet e o Olivier Petit teriam a

chance de aplicar no Paratii 2 uma idéia que defendiam, mas que não fora posta em prática na França. É claro que gostaram da mudança no projeto. Foram mais além. Trataram, politicamente, de convencer os ingleses a alterar o desenho da seção principal do mastro, então cilíndrico e grosseiro, para um perfil aeronáutico tipo Naca, com curvatura acentuada no tope, e assim corrigir o problema que havíamos visto na Escócia. Foram oito meses de insistência para convencer os donos ingleses da patente.

A euforia em torno dos mastros começou a me preocupar. Eu havia envolvido um número razoável de pessoas na idéia e queria ter certeza de que não tomara uma decisão errada. O fato de o Skip — morador notável da cidade em que os mastros eram construídos, freqüentador do Checkeris, o famoso pub isolado na floresta infestado de navegadores — não conhecer o sistema me incomodava.

O Damon mandou os primeiros desenhos modificados e alguns requisitos estruturais. Aventou a possibilidade de fornecer os materiais e tecnologia e de coordenar a laminação, que, se fosse o caso, poderia ser feita no Brasil. Pensei nos amigos do Neco em São José dos Campos, laminando peças aeronáuticas sofisticadas para a Embraer. Nos ases de

laminação que hoje fazem os melhores aerogeradores do mundo em Sorocaba.

Pensei no Marco Landi, especialista em materiais compostos, que já havia construído barcos e mastros de referência em fibra de carbono. As peças teriam 33 metros de comprimento e um arco de quase dois metros de flecha. As maiores autoclaves para cozinhar carbono eram da própria Embraer, e tinham 15,5 metros. Teríamos que construir um forno destrutível.

Antes de avançar em novos problemas, porém, cheguei a uma conclusão básica em relação a uma dúvida que me atormentava: quem já usara um perfil daqueles na Antártica? Ninguém, ainda. Seria preciso fazer um teste com o bendito sistema, e antes de aceitar toda e qualquer encomenda. Não desisti da idéia nem mudei os planos que já estavam feitos. Tínhamos todos os subsídios possíveis para acreditar nos ingleses. Apenas preferi não alimentar ilusões miraculosas sobre a idéia.

Havia ainda pelo menos dezoito meses de trabalho em caldeiraria até que chegasse o tempo de encomendar mastros ou equipamentos de convés para os barcos que estávamos construindo no estaleiro. Com esse tempo, se algum evento desabonasse o uso dos novos mastros ou a

confiabilidade da sua patente, voltaríamos atrás imediatamente. Faltava um teste de verdade. Não uma viagenzinha pelo Atlântico ou uma passagem sorrateira pelo Drake, fugindo das depressões com agilidade, poupando material. Faltava um teste de resistência e uso pesado em condições duras, em latitudes altas. Alguém teria que fazer. Algum barco de algum país com a santa cruz de carbono espetada em cima teria que fazer, e só então eu trocaria mastros convencionais por cruzes aladas.

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No documento Amyr Klink - Linha d'Agua (páginas 104-115)