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VENTO PERSO

No documento Amyr Klink - Linha d'Agua (páginas 178-183)

A solução para cumprir o último cronograma do estaleiro veio mais ou menos de um vendaval perdido. Uma empresa recém-criada da área de comunicação e informática se interessou pelo projeto de Itapevi. Fomos contatados por sua agência por intermédio de um casal de publicitários elegante e convincente. Um japonês e uma senhora de sobrenome árabe. A Marina participou da primeira reunião, e relatou todos os problemas de comunicação e conectividade, freqüentes em barcos e outros veículos semoventes. Problemas que ela agora administrava com destreza. Ondas curtas, Morse, bólidos eletromagnéticos do passado ainda confiáveis, células terrestres e satelitais, pagers e fones globais, seqüestro de altas freqüências de satélites abandonados, VHF, UHF, antenas geoestacionárias e

orbitais phone-patch de meios combinados, o diabo. Foi bem interessante. Eu expliquei alguns dos meus princípios, nada interessantes, quanto a eventuais vínculos com empresas apoiadoras. Não uso bonés, uniformes nem fantasias coloridas de logomarcas. Não sou totalmente contrário ao fato de alguém usar.

Apenas não uso. Prefiro passar fome ou navegar pelado do que andar vestido por obrigação para com quem quer que seja. Soa como um perito atestar por coerção um fato, enquadrar por contrato o seu discernimento. As relações que construí com pessoas, fornecedores, parceiros e clientes foram fruto de confiança, suor, bolhas nos dedos e milhares de milhas. São relações verdadeiras e permanentes. Sei que é raro empresas firmarem acordos com a expectativa de construir histórias ou fatos verdadeiros, mas elas existem. Mais raro ainda encontrar homens de comunicação que pensem assim. Mas de vez em quando acontece. Incontáveis vezes deixei de fazer bons negócios e perdi contratos oportunos por não ceder nesse ponto. Não morri de fome e não fizeram falta esses negócios. A explicação, talvez um pouco contundente para profissionais de criação, pareceu fazer sentido para o casal bem- vestido. A empresa foi criada com um nome de que no fundo eu gostava, mas que era pouco sugestivo para expressar solidez e longevidade num negócio. "Vento", era a marca de fantasia da empresa — ou portal —, que eles tratavam no masculino: o Vento. Eu precisava urgentemente resolver o problema da construção dos mastros, e se o Vento se interessasse por apoiar essa etapa do projeto, seria a nossa

salvação. Foi marcada uma reunião com o presidente da empresa, sr. Guilhermino. Eu estava bastante calmo. Havia explicado à agência repetidas vezes que não seria uma reunião de mascates tentando pechinchar descontos, que eu apresentaria as planilhas de tarefas e custos, que não pretendia ganhar um centavo, apenas concluir o que estava iniciado. Falávamos de obrigações e compromissos claros, já do conhecimento de todos, e o resultado da reunião seria bem simples. Sim ou não. Para não parecer intransigente, insisti que se fosse para alterar a proposta já encaminhada eu preferia agradecer e recusar. A casa velha da rua Guapiaçu, apesar das 34 árvores de madeira de lei que plantei, estava sendo vendida a uma escola japonesa. O apartamento onde morei antes de casar também foi vendido. De um jeito ou de outro eu faria a lata de Itapevi descer ao mar. Deixei o estaleiro mais cedo nesse dia e segui para a reunião no sofisticado prédio de escritórios do conjunto Villa-Lobos. A reunião foi péssima. O sr. Guilhermino, piadista contumaz, a princípio parecia genuinamente interessado em participar do projeto. Depois, em tom de gozação, de modo nenhum antipático, caso se tratasse de um assunto banal, começou a fazer piadinhas e provocações. Eu pensava no suor e dedicação dos soldadores, dos que

dependiam daquele trabalho para viver, nos compromissos assumidos, nos clientes do estaleiro, em todos que haviam confiado seus barcos e economias às nossas idéias... Os sujeitos da agência, extasiados com o senso de humor tão brilhante de seu abastado cliente, esforçando-se para rir também...

Eu havia passado o dia no estaleiro, andando entre clarões azulados de solda que queimam os olhos, decidindo cortes e posições de peças, pingando de suor na prancheta do Thierry, depois na dobradeira de sessenta toneladas do sr. Ivo, quase surdo com a gritaria das tupias e o desempeno das chapas. Estava com barro de Itapevi nos sapatos sobre um elegante carpete, numa sala com ar- condicionado, vendo pelo vidro à prova de som o fétido rio Pinheiros e o trânsito das Marginais da cidade de São Paulo, que dali parecia um espetáculo artístico, um rio de luzes vermelhas tremulando de um lado, do outro luzes brancas fixas. Cruzei as mãos e comecei a rodar os polegares. Era uma situação pior do que carregar as batatas de Sintra. Ninguém esboçava uma reação. Não gosto de ser grosseiro como fui na véspera da batalha do Mindelo, mas a graça das piadas foi acabando, minha paciência também, as risadinhas murchando. Não me lembro exatamente quando foi, só sei que me cansei das

piadas, das risadas, me enchi e, obra do destino, incorri no mesmo pecado ofegante de Sintra:

— Pois então o senhor, por gentileza, pegue o seu dinheiro e enfie no traseiro. Muito obrigado!

Saí da sala, do prédio, do shopping anexo. Um erro, eu sei, responder sem pensar, sem pesar. Sem fingir, diriam alguns ases de comunicação que conheço. Paciência. Quando cheguei em casa, levei um susto. Uma blitz da divisão de narcóticos da Polícia Federal não seria mais intimidatória. ''Você nos fez perder o nosso cliente!". "Isso é uma irresponsabilidade, não vai ficar assim", bradava o japonês da agência. Lamentei profundamente pelo Vento perdido, mas diante do sarcasmo do sr. presidente e do nível das suas piadinhas, uma hora depois do encerramento trágico da reunião, e já bem calmo, ainda não me ocorria uma frase mais apropriada que pudesse ter usado naquela situação. Dois dias úteis depois, recebi um pedido de desculpas e um convite do presidente do Vento para almoçar num restaurante no Alto de Pinheiros, em São Paulo. O contrato foi assinado exatamente como havíamos combinado.

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No documento Amyr Klink - Linha d'Agua (páginas 178-183)