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2 A ISKCON BRASILEIRA EM RELAÇÃO AO MOVIMENTO HARE KRISHNA

2.1 AS PRÁTICAS SINCRÉTICAS NO “MERCADO DE KRISHNA”

Entende-se o fenômeno do sincretismo com uma das características marcantes da contemporaneidade no campo religioso. Há uma vasta bibliografia sobre esta temática38. Dentro dela, há a referência de alguns pesquisadores para ajudar a pensar na observação de práticas sincréticas numa mesma instituição de movimento religioso. Para este estudo em

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Um sannyasi é um Swami que leva a vida de renúncia, vive da pregação e do apoio de seus discípulos.

38 Ver trabalhos de Ferreti (1995), Bastide (1971), Maggie (2001), Magnani (1991), Mariano (2004), Oro (2002),

particular, o sincretismo não é somente avaliado como mistura de diferentes dogmas e/ou rituais, mas, principalmente, como mistura de diferentes modelos organizacionais que compõem o movimento Hare Krishna.

As teorias de Peter Berger (1985) e Pierre Sanchis (2001) permitem dar suporte à discussão levantada para este estudo sobre uma modalidade de sincretismo intratradicional relacionado ao “movimento Hare Krishna”.

Berger (1985), com sua teoria da secularização, coloca que a religião é uma forma de conhecer o mundo e situar-se nele, é uma realidade construída pelo homem. Um ponto de referência em sua teoria é o estudo sobre a secularização, que, para ele, “é uma crise de credibilidade e está relacionada com o pluralismo religioso”. O pluralismo observado por Berger (1985) dar-se-á pela convivência entre diferentes grupos religiosos que são tolerados pelo Estado e estão livres para competir, causando o fim dos monopólios das tradições religiosas. A principal característica das situações pluralistas, conforme a abordagem aqui exposta, é que os indivíduos não são mais submissos a uma única religião, e o ato de submeter-se é voluntário, o que vem dar um “tom de mercado”, pois a religião passa a não ser mais imposta ao indivíduo e sim escolhida. Na seguinte passagem, o autor esclarece melhor tal entendimento:

Resulta daí que a tradição religiosa, que antigamente podia ser imposta pela autoridade, agora tem que ser “colocada no mercado”. Ela tem que ser “vendida” para uma clientela que não está mais obrigada a “comprar”. A situação pluralista é, acima de tudo, uma situação de mercado. Nela, as instituições religiosas tornam-se agência de mercado e as tradições religiosas tornam-se comodidades de consumo (BERGER,1985:149).

Sanchis afirma que o “‟campo religioso‟ é, cada vez menos, o „campo das religiões‟39

, pois o homem religioso, na ânsia de compor um universo-para-si, sem dúvida cheio de sentido, mas de sentido-para-si, subjetivo, tende a não se sujeitar às definições que as instituições lhe propõem dos elementos de sua própria existência” (2001: 35-36).

A partir dessa análise do pesquisador sobre a busca do homem religioso em compor um universo de sentido para si, entende-se que o campo da religião é transitante, que caminha ao encontro das expectativas do “homem religioso”. Para sustentar tal afirmação, Sanchis diz que a melhor maneira de se fazer uma metáfora, à situação da religião nas sociedades contemporâneas, é vê-la como:

mercado aberto dos produtos simbólicos, o homem contemporâneo tende a adquirir elementos das várias sínteses que se lhe oferecem, para ele mesmo compor seu próprio universo de significação. Um universo, aliás, no mais das vezes não definitivamente articulado, em constante refazer e de acabamento sempre protelado (2001:36).

Esta constatação leva o autor a pensar o sincretismo brasileiro como porosidade:

Uma radicalidade duradoura e constantemente reinvestida teria assim dotado o Brasil de um habitus (história feita estrutura) de porosidade das identidades e de ambivalência dos valores de uma tendência, sempre frustrada, mas permanentemente retomada, em direção a conjunção do múltiplo numa unidade nunca atingida. Com a condição de situá-la claramente em seu nível estrutural, de não confundi-la com fáceis versões que, em lugares e momentos diferentes, ela apresenta, talvez continue sendo epistemologicamente chamar esta porosidade de “sincretismo”. (SANCHIS, 2001:45).

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O autor faz uma citação de seu trabalho anterior: Sanchis, 1995. Está em jogo aqui a relativização contemporânea da “competência” das instituições religiosas para definir a “identidade” de seus fiéis ou formar seu habitus (Sanchis, 2001:35).

A constatação do pluralismo religioso que remete a lógica de um mercado (BERGER, 1985) e o sincretismo entendido como porosidade (SANCHIS, 2001) pode ser visualizado no depoimento de um devoto Hare krishna, membro da comunidade de Porto Alegre, que teve seu contato inicial com o movimento Hare Krishna nos Estados Unidos.

Dharma Das conheceu o movimento Hare Krishna em 1977, no aeroporto de Chicago,

quando ele voltava para o Brasil, depois de seis meses nos Estados Unidos. A posição profissional dele na época era de sargento da Força Aérea Brasileira em licença especial para ir aos Estados Unidos. Foi pelo simples fato de ter encontrado um livro do movimento Hare Krishna no lixo do aeroporto que, segundo ele “o livro brilhou, refulgiu com a luz como se havia uma estrela na capa”, o fez acreditar que aquele livro era um “sinal”. O livro tinha como título “A Suprema Personalidade de Deus Krishna”. Dharma Das ficou muito impressionado com as figuras, apesar de não ter conseguido ler, pois ainda não dominava o inglês suficiente para um bom entendimento do texto. Logo que chegou em Porto Alegre, tentou procurar pessoas que conhecessem ou estivessem vinculadas a essa tradição religiosa, mas não encontrou ninguém. No ano seguinte, 1978, Dharma Das pediu a exoneração da sua função de militar e foi morar nos Estados Unidos. Ele foi movido pela vontade de aprender corretamente o inglês e melhorar a sua situação financeira. Quando estava trabalhando como cicerone no “Golden Gate Park ”- São Francisco, Califórnia, um rapaz ofereceu-lhe um convite para aulas de yoga. Durante um dia de folga, ele foi conhecer o local indicado no convite. Logo que chegou deparou-se com uma grande casa que exibia na entrada um imenso mapa da Índia. Era um templo da ISKCON. O Presidente do templo estava sentado no balcão “como estivesse esperando por mim”. Foi muito bem atendido, comeu, segundo ele, “um alimento saboroso [doces indianos] com uma música maravilhosa tocando ao fundo [música cantada em Sânscrito]”. Dharma Das ficou extasiado com o lugar e com a gentileza no

atendimento. Durante essa visita, o presidente do templo o convidou a “ter uma vida como aquela todos os dias”, chamando-o para morar junto com eles. Dharma Das respondeu:

(...) seria ideal, mas infelizmente a gente tem os nossos compromissos (...) e aí ele [o presidente do templo] disse não, mas quando você se volta para Krishna, Krishna é o maior compromisso, aí todos os outros compromissos cessam. Aí eu disse não (...) e ele [presidente do templo] insistiu e foi comigo lá em São Francisco, isto era em Burcley, Califórnia, foi comigo em São Francisco e me desligou do trabalho naquele dia e da residência também. Foi lá e entregou para mim, quer dizer encerrou lá o contrato de aluguel, né, do quarto que eu estava e, assim, como me liberou, mesmo, me puxou, me deu aquele empurrão transcendental.

Dharma Das tinha 30 anos, quando raspou a cabeça, largou o trabalho e o curso de

Inglês para ir morar no templo. Durante um ano, afirmou ter vivido uma vida “extraordinária”, envolvido em “fazer guirlandas para Krishna”. Suas “roupas cheiravam a flores”, como se estivesse “sentado no topo do mundo”. No entanto, a influência de muitos “amigos espiritualizados” de outras tradições religiosas orientais o convenceram a “dar um tempo” na vida monástica para “analisar toda a experiência espiritual vivida de fora”. Então ele resolveu sair do templo, conseguiu um bom emprego numa companhia de renome nos Estados Unidos e continuou freqüentando o templo como um seguidor externo. Nesse meio tempo, ele conheceu um outro templo hindu, mas não vinculado ao movimento Hare Krishna, chamado de Sanatana Visa dharma, de um mestre de Bangalore, Índia. Nesse templo também havia a adoração a Krishna. A diferença do templo da ISKCON era que no templo de

Sanatana Visa dharma os devotos podiam morar no local, ter um bom quarto confortável com

comida e ter a liberdade de trabalhar fora, desde que pagassem uma taxa mensal de U$ 300,00. Nos templos da ISCKON, era proibido a atividade profissional fora do templo e todo o dinheiro obtido com o trabalho dos devotos era destinado à organização.

Atualmente, Dharma Das vive em Porto Alegre e freqüenta o templo da ISKCON assiduamente. Apesar do longo convívio com os “devotos de Krishna”, ele não chegou a passar pela iniciação que oficializaria o seu pertencimento ao movimento Hare Krishna. Uma das justificativas que ele apresentou por ainda não ser um “devoto da ISKCON” é justificada pelo fato de o seu “mestre espiritual” ter deixado de ser guru e, assim, ele teve que se filiar a um outro mestre. Nessa passagem de reconhecimento de um novo guru, o processo de conversão ficou meio “congelado”. O fato de ele não ser reconhecido como um brahmana

vaishnava (a segunda iniciação que qualifica o devoto como sacerdote do movimento), não é

algo que o frustre, pois ele disse que “muitos devotos que já tomaram essa iniciação „caíram‟ no „falso ego‟ (o ego do indivíduo que se identifica com os sentidos materiais para usufruto da vaidade pessoal) e não seguem realmente a conduta de ser um brahmana”. Dharma Das disse que já tem anos dedicados à prática espiritual em diversas manifestações religiosas e, acredita, assim, que o seu propósito nesta vida é aprender a “desapegar-se”, inclusive da própria condição de ser reconhecido oficialmente como um brahmana.

No relato acima, são percebidas algumas considerações importantes para este estudo: na década de setenta, praticamente 10 anos depois que a ISKCON foi fundada, já havia uma outra tradição hindu estabelecida nos Estados Unidos “concorrendo” com o movimento de

Prabhupada. Isso demonstra a presença de um “mercado” de instituições religiosas de

tradição oriental, cultuando o mesmo Deus, mas oferecendo distintas possibilidades de praticar esta fé. Dharma Das, depois de um período morando num templo da ISKCON, fez a opção de mudar para um outro templo de tradição hindu para poder, assim, atender os seus objetivos particulares. Dentro do entendimento da lógica da existência de um mercado religioso, percebe-se que, nesse período, a disposição do campo religioso americano estava mais propensa a uma oferta de opções religiosas com menos rigor dogmático e com mais

ênfase na perspectiva individual. Pelo que se observou, a ISKCON disponibilizava o contrário desta tendência de mercado. No momento em que ela se revelava através de uma postura endurecida com os seus discípulos na exigência de uma vida mais coletiva e menos privada. Um outro detalhe é o fato de ser encontrado um livro do movimento Hare Krishna no lixo do aeroporto, o que indicia o próprio desgaste do movimento nos Estados Unidos. Esse ano, 1977, ano considerado como o ápice do declínio do movimento americano (BURKE, 1984), foi o período em que aconteceu este episódio.

2.2 O SINCRETISMO INTRATRADICIONAL: MOVIMENTO HARE KRISHNA E/OU