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2 A ISKCON BRASILEIRA EM RELAÇÃO AO MOVIMENTO HARE KRISHNA

2.2 O SINCRETISMO INTRATRADICIONAL: MOVIMENTO HARE KRISHNA E/OU

O processo da secularização na instância religiosa, apresentado por Berger (1985), permite entender o campo da religião dentro de uma lógica de mercado. A sustentação dessa lógica é atribuída ao “pluralismo religioso”, que desencadeia miríades de manifestações religiosas que oferecem opções de significados de existência para que os envolvidos neste campo pudessem “construir suas realidades”. Nesse entendimento, o movimento do campo religioso oferta opções de “sentidos para existir” com uma demanda de pessoas, devido ao fato de “construir realidades”. Isto é interpretado como um mercado religioso, ou seja, “o lugar onde o consumidor adquire produtos simbólicos das várias sínteses que lhes são oferecidas, construindo seu próprio universo de significados, que está em constante refazer e de acabamento sempre protelado” (SANCHIS, 2001).

Ampliando-se mais ainda a lógica de mercado apresentada no campo da religião, Vallverdú (2001) cita Robert Greenfield (1979) que se referiu a um grande “supermercado espiritual” aberto nas décadas de sessenta e setenta a partir da eclosão da “contracultura”. Isso permitiu, segundo o autor, que “as novas religiosidades emergentes na modernidade voltassem a mostrar que a religião não desapareceu, simplesmente se transformou, se metamorfosou”. Vallverdú (2001) diz ainda que as formas religiosas contemporâneas tendem à desagregação, à fragmentação, à mobilidade, resultando em uma espécie de um novo supermercado espiritual e de sentido que toma forma em novos contextos ideológicos de busca de significados.

A idéia apresentada de “supermercado espiritual e de sentido” no campo religioso é pertinente quando se pensa hoje o modelo organizacional do movimento Hare Krishna. Para um melhor entendimento dessa discussão, divide-se a categoria “movimento Hare Krishna” como aquele professado a partir dos ensinamentos interpretados por Prabhupada no Ocidente. E, assim, classifica-se este como movimento Hare Krishna/ISKCON. No lado oposto, percebe-se o movimento Hare krishna, também, oriundo da mesma escola filosófica (Gaudya

Math), mas sendo pregado por um contemporâneo de Prabhupada. Este legítimo guru indiano vaishnava é considerado como “um sobrinho espiritual de Srila Prabhupada” (SILVA DA

SILVEIRA, 2005)40, Narayan Maharaja, que ocupa uma posição (na hierarquia da Gaudya

Math) similar aos gurus iniciados por Prabhupada no Ocidente.

A tensão está acontecendo devido à expansão do movimento Hare Krishna de

Narayan no Ocidente com o recrutamento de devotos ocidentais dissidentes da ISKCON.

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A partir de um texto não publicado, onde o autor, em um campo em Curitiba (07/01/2005), presenciou palestras de dois importantes Swamis, um da ISKCON e o outro um discípulo de Narayan Maharaja (um guru da Gaudya Math).

Conforme a interpretação de um Swami da ISKCON (SILVA DA SILVEIRA, 2005),

Narayan quer assumir a mesma posição de Prabhupada no Ocidente, o papel atual do

“profeta carismático” do movimento Hare Krishna no mundo. Acontece que a “posição espiritual” dele (Narayan) caracteriza-se por ser a mesma de qualquer sannyasi da ISKCON. Sendo que a ISKCON, representada pelo GBC (inclui-se aqui membros sannyasis) é que legitima o movimento Hare Krishna de Prabhupada no Ocidente e na própria Índia.

O Swami entrevistado pelo o pesquisador (SILVA DA SILVEIRA, 2005) reconhece que “Narayan Maharaja tem atraído aqueles devotos que estão „magoados‟ com a ISKCON”. O pesquisador percebe na fala desse guru da ISKCON o reconhecimento de insatisfação de alguns devotos diante dos rumos tomados pelo movimento Hare Krishna/ISKCON.

Em um artigo de um antigo devoto americano do movimento/ISKCON41 é sustentada esta tensão entre o modelo de movimento Hare Krishna da ISKCON e o de Nararayan:

O que as autoridades da ISKCON falham em perceber é o fato que eles não vão nunca parar a migração de devotos da ISKCON para o movimento de Narayan se não oferecerem [autoridades da ISKCON] algo melhor para os devotos. Nossos devotos perderam a confiança no GBC e na presente linhagem de gurus, porque estes chamados „gurus’ tiveram problemas pessoais que comprometeram seriamente esta titulação. Falando em termos práticos, podemos ver a cada ano um ou dois gurus que se diziam firmes em sua posição de gurus „caírem‟ dessa posição! Como podemos esperar que os membros da ISKCON possam confiar em tal corrupto e desonesto sistema de liderança? (minha versão de tradução).

Na citação anterior, percebe-se que existe uma grande insatisfação de devotos com o sistema de liderança da ISKCON, o que não significa uma oposição aos ensinamentos de

Prabhupada. No próximo trecho do mesmo autor do artigo anunciado acima, constata-se a

distinção do “movimento da ISKCON” e o “movimento de Prabhupada”:

Srila Prabhupada estabeleceu claramente que viveria para sempre através dos seus livros e a partir disto nós teríamos o contato com ele [Prabhupada] seguindo suas instruções nos seus livros, mesmo na ausência do seu corpo físico. A única maneira de parar a migração dos devotos da ISKCON para o lado do movimento de

Narayan é oferecendo uma alternativa melhor. Por que a ISKCON cria obstáculos

para os devotos que querem seguir estritamente o que Prabhupada pregou? Muito de nós já trabalhamos arduamente para trazer novos devotos para consciência de Krishna, só para largarmos nas mãos da ISKCON e estes depois se juntarem ao movimento de Narayan, pois esses novos devotos perceberam o quão mentirosos são os gurus da ISKCON. Nós imploramos que os líderes da ISKCON desistam de suas falsas posições de gurus. Saiam do caminho e permitam que Srila Prabhupada pregue diretamente para os devotos. (...) Se vocês querem salvar ISKCON do movimento de Narayan, vocês devem permitir que somente Prabhupada seja reconhecido como o único guru oficial de todos os membros da ISKCON (minha versão de tradução).

Retomando a classificação anterior estabelecida para o movimento Hare Krishna: movimento Hare Krishna/ISKCON X movimento Hare Krishna de Narayan; permite-se acrescentar mais uma modalidade organizacional dentro da instituição “movimento Hare Krishna”. Este movimento se opõe tanto ao movimento da ISKCON, como ao movimento de Narayan: chama-se movimento dos devotos de Prabhupada (aqueles que reconhecem somente Prabhupada como o único guru). Não há dados concretos da existência de alguma organização formal que estabeleça claramente uma forma organizada deste grupo de devotos que se autodenominam “seguidores diretos de Prabhupada”. Contudo, é freqüente aparecer em sites do movimento artigos desses devotos combatendo tanto a ISKCON como Narayan.

O caminho percorrido para avaliar toda essa discussão sobre tensão de modelos organizacionais constatados dentro de uma única instituição de movimento religioso é feito a partir da noção de um “sincretismo intratradicional”. Os modelos organizados observados

dentro do movimento Hare Krishna (ISKCON, movimento dos devotos de Prabhupada, movimento de Narayan), mesmo professando a mesma modalidade de crença (reproduzindo rituais, hábitos e costumes, praticamente iguais entre eles), diferenciam-se quanto aos significados atribuídos a cada um destes modelos. O conceito de sincretismo apresentado para este estudo permite pensar que a mistura desses diferentes significados de modelos organizacionais, com estreitas fronteiras entre si, definem de forma ampla o que é concebido como “movimento Hare Krishna”. A tensão acontece, exatamente, na tentativa de querer se restringir o conceito dessa instituição (movimento Hare Krishna) a somente uma modalidade organizacional.

Os significados de cada modelo organizado de movimento Hare krishna, aqui apresentados, estão diretamente ligados à forma com que os devotos percebem a oferta das opções de sentidos em função da demanda pessoal de “construções de realidades” dos devotos. Percebe-se, então, a lógica de mercado perfilando nesta instituição religiosa.

O conceito de sincretismo entendido como “porosidade” (SANCHIS, 2001) mostra-se útil para este estudo, quando se observa parcialmente algumas motivações que levam os devotos a aderirem a um modelo organizacional e não a outro, ou estarem vinculados, de certa forma, concomitantemente, em todas as versões do movimento Hare Krishna no seu entendimento mais amplo. Um exemplo disso pode ser constatado no relato do processo de adesão ao movimento Hare Krishna de Dharma Das que foi exposto anteriormente. Este devoto não se vinculou oficialmente ao movimento da ISKCON, mas é reconhecido como devoto e tem participação ativa dentro do templo da ISKCON em Porto Alegre. É importante ressaltar que, quando estava morando em templos da ISKCON americana, ele resolveu ir morar em outro templo, que também professava a fé em Krishna, devido ao rigor que os

membros do GBC estabeleciam para os devotos residentes. Em Porto Alegre, conforme ver- se-á no capítulo terceiro, o templo da ISKCON tem, atualmente, uma participação moderada dos representantes do GBC, o que dá margem a uma série de negociações locais. Negociações estas que acabam englobando distintos interesses de devotos.

Com relação ao perfil do devoto que se predispõe a seguir o movimento de Narayan, é possível constatar que se mostram insatisfeitos com a ISKCON. Tratam-se, geralmente, de seguidores mais antigos que entendem o movimento Hare Krishna/ISKCON como um modelo organizacional estagnado. Tendem a ser pessoas mais velhas, com uma erudição de tradição indiana védica consolidada e, também, com uma certa condição financeira para visitar o seu

guru em Mathura, Índia, conforme constata Silva da Silveira (2005).

Observa-se hoje, no Brasil, em nível de movimento Hare Krishna, a predominância do modelo ISKCON. Na verdade, a tensão maior entre estes outros modelos organizacionais do movimento caracteriza-se mais conflitante nos Estados Unidos, Europa e Índia. Nesses lugares, a presença dos representantes do GBC é mais vigilante42. No Brasil, ao contrário, o representante do GBC é uma figura carismática e muito condescendente. Isso faz com que o devoto brasileiro sinta-se mais disposto a relativizar certas ações do movimento/ISKCON que comprometam a sua credibilidade. Percebe-se, contudo, o fato de a questão do conflito ser mais local e depender muito das negociações que os representantes do GBC estão dispostos a fazer para manterem no lugar do conflito uma comunidade Hare Krishna.

No capítulo a seguir, tem-se a possibilidade de acompanhar um conflito dentro do modelo de movimento Hare Krishna/ISKCON (a partir da pesquisa no templo da ISKCON

42Ver artigo do devoto americano falando da ISKCON: http://iskcon.krishna.org/Articles/2001/06/00341.html -

em Porto Alegre) que tenciona questões de reconhecimento da tradição estabelecida por

Prabhupada. Temos, por um lado, os Swamis da ISKCON como os porta-vozes oficiais das

normas e regulações estabelecidas por Prabhupada; por outro lado, uma congregação local (também conflitante entre si) que mantém o templo financeiramente e também afirma estar atuando conforme os princípios estabelecidos pelo seu mestre fundador.

3 A ISKCON NO RIO GRANDE DO SUL

O estudo desenvolvido até então permitiu constatar, dentro de sua devida limitação, uma seqüência de tensões de ordem organizacional apresentadas no movimento Hare Krishna, desde a sua origem na tradição indiana até as suas versões americana e brasileira. Ao analisar o teor desses conflitos, percebeu-se um choque entre distintos modelos organizacionais (ISKCON; movimento dos devotos de Prabhupada; movimento de Narayan) que atendem, conjuntamente, como movimento Hare Krishna. Verificou-se que estes impasses ocorrem devido à tentativa de os modelos organizados procurarem estabelecer aquele que se “classifique” como oficial e autêntico movimento Hare Krishna.

Neste capítulo, ver-se-á um estudo de caso dentro do templo Hare Krishna em Porto Alegre representante do modelo organizacional ISKCON. Na tentativa de uma abordagem mais local, levantou-se, na mesma seqüência, tensões de disputas de poder: o GBC (representado pelos Swamis) X conselho administrativo; a congregação X o conselho administrativo. Tais tensões que, ao serem constatadas enquanto microanálise do movimento, dramatizam pelo reconhecimento de um modelo autêntico de movimento Hare Krishna.

A ISKCON em Porto Alegre situa-se na Rua José Bonifácio, 605, no bairro Bom Fim43. Neste mesmo endereço, o templo da ISKCON compartilha um espaço, em proporções bem menores, com o restaurante e a lancheria Govinda. Esses estabelecimentos comerciais pertencem a duas irmãs adeptas ao movimento Hare Krishna.

A dona do restaurante (Jamdasi) e a dona da lancheria (Madasi) são de descendentes de italianos do interior do Rio Grande do Sul – Casca/RS. Atualmente, elas moram na grande Porto Alegre (Cachoerinha), sendo parte integrante de uma grande família de 10 filhos na qual, sete são mulheres. Além de Jamdasi e Madasi, há mais duas irmãs convertidas ao movimento. Uma delas é fornecedora de produtos integrais (pães, bolos, biscoitos, pizza) tanto para o restaurante como para a lancheria. A outra irmã vive nos Estados Unidos, há algum tempo, onde conseguiu se estabelecer e prosperar no ramo da marcenaria. Hoje, esta devota brasileira nos Estados Unidos manda dinheiro para mãe e para as irmãs com o propósito de abrir um outro negócio para quando voltar. Uma das irmãs que não é convertida ao movimento informou que, antes do restaurante, todas elas, inclusive esta que não é adepta ao movimento, trabalhavam numa confecção de couro, tinham lojas, faziam feiras por todo o Brasil. Quando as quatros irmãs começaram a seguir a filosofia do movimento, resolveram romper a sociedade de produtos de couro com a irmã não adepta. Dentro do entendimento das irmãs convertidas, elas não estariam respeitando o princípio que se prega de não matar nenhum ser vivo, muito menos industrializar produtos de couro.

A dissolução da sociedade gerou um atrito familiar, pois todas elas mantinham-se financeiramente a partir desse negócio. Quando o templo Hare Krishna esteve

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O bairro Bom Fim, conhecido como “Bonfa”, é considerado um lugar “alternativo” em Porto Alegre. Abriga uma variedade de manifestações religiosas orientais; tais como um templo budista, comunidade Ananda Marga e outros.

“provisoriamente” instalado em Igrejinha, um casal de devotos ofereceu a Jamdasi uma parceria para abrir em Porto Alegre o restaurante vegetariano, algo comum de se encontrar em muitas comunidades Hare Krishna, o Govinda. Jamdasi aceitou, trabalhou por um período e, passado algum tempo, o casal desistiu deixando-a sozinha no negócio. Em virtude disso, ela resolveu chamar suas irmãs, mas uma foi para os Estados Unidos, a outra disponibilizou-se em só ajudar com trabalho e não investir dinheiro. Aquela que não era convertida continuou trabalhando com couro.

A dona do restaurante e suas duas irmãs têm um papel representativo na hierarquia de poder do templo da ISKCON instalado no restaurante, pois são elas, principalmente Jamdasi, que sustentam o templo financeiramente. É importante ressaltar o tratamento dado as mulheres devotas dessa tradição indiana o qual, também, foi adotado no início do movimento no Brasil. As mulheres não podiam comer junto aos homens, elas posicionavam-se no salão do templo sempre nos fundos. Os devotos que ficavam mais próximos ao altar eram considerados os “devotos puros”, geralmente os brâmanas mais antigos e os Swamis. Entenda- se com isso que a mulheres não eram consideradas “puras suficientes” para estarem mais próximas do altar. Hoje o templo gaúcho é, praticamente, mantido por mulheres. E esta convenção sexista, evidentemente, não se aplica mais.

Durante o período da pesquisa, constatou-se uma freqüência média de 30 pessoas no templo gaúcho durante os ”festivais de domingo”44. Nos dias de “comemorações especiais”45

, costumavam aparecer em torno de 100 pessoas. Para essas datas, geralmente, o grupo mobiliza-se para locar um espaço maior com o objetivo de alojar a todos. Não se tem um número estatístico de quantos devotos convertidos há em Porto Alegre. O próprio grupo não tem esse dado, pois existem muitos devotos convertidos que moram na região, mas não freqüentam o templo, muito menos participam das suas atividades. É possível encontrá-los somente em comemorações especiais, como foi mencionado anteriormente. O movimento local conta com mais apoio do conselho administrativo e da congregação. O conselho administrativo é composto pela a dona do restaurante (Jamdasi), por sua irmã (Madasi), por seu esposo (lidasa) e pelo pujari oficial (Jandasa)46. A congregação é formada pelos “simpatizantes”, pelo grupo de devotos antigos e pelos devotos convertidos amigos do conselho administrativo (importante frisar a relação de amizade com os membros do conselho, pois há casos de devotos que são proibidos pelo conselho de freqüentar o templo devido à inimizade entre eles). Atualmente o grupo conta, também, com mais nove jovens devotos convertidos recentemente. Dentro do grupo dos novos adeptos, cincos são mulheres e os restantes homens. A grande maioria são de nível médio e alguns profissionais de nível superior (jornalista e psicólogos).

44Todo domingo, o templo oferece um “festival”, onde reúnem-se os devotos e a comunidade em geral para o

ritual de abertura de altar do final da tarde. Há dança, “cânticos devocionais”, leitura e discussão das escrituras védicas e ao término é servido um “coquetel vegetariano”. O coquetel já é uma adaptação, pois segundo informações de freqüentadores mais antigos, costumavam-se servir um verdadeiro jantar. Muitos diziam que freqüentavam antes os “festivais Hare Krishna” para jantar e depois sair para “a noite”.

Estes festivais são uns tipos de aratik. Guerriero (1989) diz que aratic é cerimônia diária de adoração das deidades. No Domingo, torna-se um festival, pois há mais gente, principalmente aquelas pessoas que simpatizam com o movimento Hare Krishna.

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Aniversário de Krishna, aniversário de Caitanya, aniversário de Prabhupada, ou comemorações específicas de alguma divindade.

Os próximos tópicos abordam certas medidas tomadas pelos representantes do GBC que resultaram em um desgaste na liderança do movimento e que trouxe, como conseqüência, o fortalecimento e a expansão da congregação local de Porto Alegre.

3.1 O TEMPLO HARE KRISHNA EM PORTO ALEGRE: UM TRÂNSITO ENTRE