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2 REFORMA PROTESTANTE E LUTERO

2.5 Lutero: um dos reformadores do séc

2.5.1 As principais ideias teológicas de Lutero

Antes de adentrarmos a teologia propriamente dita de Martinho Lutero, ainda faz sentido tracejarmos um movimento de notória influência na Idade Média, denominado misticismo. De acordo com Walter Altmann (1994) além da expectativa e necessidade em torno de uma reforma da Igreja, houve também naquela época a cristalização de um movimento de piedade pessoal que de certa maneira rejeitou o anseio por reforma eclesiástica institucional, ou pelo menos a colocou em segundo plano. A intenção daqueles que aderiram ao misticismo consistia em alcançar o revigoramento necessário da vida cristã, a partir do interior das próprias pessoas, por meio da renovação da fé, da experiência religiosa e da piedade. Assim sendo, se poderia alcançar a união pessoal íntima com o Senhor.

A proposta “revolucionária” de Lutero da justificação pela graça mediante a fé consegue contemplar os dois anelos por reforma: institucional e pessoal. A dedicação do reformador aos estudos da Bíblia trouxe-lhe conclusões teológicas, as quais correspondiam a profundas questões existenciais. A partir do confronto com o texto da Carta de Paulo aos Romanos, na qual está escrito: “o justo viverá pela fé”, Lutero afunda-se numa profunda reflexão sofrida e conflituoso diante da sua relação com Deus.

A vida claustral de Lutero não fora simples. Conta-se que durante o tempo monástico o próprio monge teria acrescentado para si severas penitências ao seu corpo, não apreciadas e nem prescritas pela regra. Lutero preocupava-se constantemente com a justificação do pecador perante a grandeza de seu Criador. No cerne da questão habita o problema teológico da teologia da penitência. Se o justo deveria ser recompensado por suas obras, quanto mais sacrificasse o seu corpo mais misericórdia alcançaria diante de Deus. No entanto, nenhum dos sacrifícios corporais lhe trazia paz interior e tranqüilidade psíquica. Ao contrário, lhe deixava mais frustrado, no tédio e numa intensa tristeza (Zagheni, 1999).

Lutero, enquanto estudioso e intérprete das Sagradas Escrituras, não se compreende de outra forma senão de carne e osso. Ele, como qualquer outro,

[...] leva consigo, ante a Palavra toda, a realidade do seu ser, o processo de sua própria formação social..., a estrutura psicológica de sua pessoa, a classe social a que pertence e sua tendência política dentro de seu país, etc. Nada do que lhe é próprio pode ficar fora do seu encontro com a Palavra (FLUCK, 1986, p. 150).

Para Lutero era inconcebível empreender uma leitura da Bíblia sem alcance pessoal, de vida concreta e piedosa do cristão. Sua visão bíblico-teológica é profundamente abalizada pela sua cultura. A história de sua vida bem como sua própria teologia não podem ser avaliadas como sendo independentes do tempo que as fez nascer. Diante de sua época, Lutero delineia uma visão teológica, por vezes adiantada, porém em alguns aspectos presa ao seu presente.

O encontro de Lutero com a misericórdia divina lhe torna um novo homem. De fato, se “o justo viverá pela fé”, a justiça de Deus desvendada no evangelho não poderia ser jamais uma justiça punitiva, mas manifestação da doação gratuita de Deus, que garante a todos, através da fé, vida em abundância. No dizer de Altmann (1999, p. 31), essa

descoberta foi para Lutero como se diante dele se escancarassem as portas do paraíso, no qual livremente veio a entrar. Toda a ansiosa procura por salvação, inalcançável através de obras meritórias, tinha chegado a um fim inesperado e libertador. O desespero cedeu à certeza, a angústia deu lugar à liberdade, a ansiosa preocupação consigo mesmo foi substituída por uma incomum e incansável dedicação à boa nova redescoberta e ao próximo.

Essa descoberta pessoal de Lutero constituiu-se como resposta ao anseio concebido pelo misticismo, com um avanço significativo, o de que não era necessária uma prática

sobrenatural para se obter a salvação. Pois esta se encontrava à disposição de cada um, de modo gratuito, por meio da fé. Essa nova compreensão sobre a bem-aventurança irá se confrontar com a perversa prática da compra das indulgências e das boas obras como pré- requisito para a salvação e ainda em relação à ação dos padres como mediadores entre o crente e o sagrado. Assim inicia-se a reforma da Igreja, cuja autoridade máxima não se concentra mais na figura papal ou no direito canônico, mas na liberdade das Escrituras Sagradas em benemérito ao povo de Deus.

A doutrina da justificação não respondeu somente a uma curiosidade intelectual de Lutero, mas lhe causou uma profunda experiência pessoal de libertação. Acerca da liberdade do cristão, Lutero fundamenta sua teologia da liberdade cristã no Cristo que veio para redimir, isto é, resgatar a humanidade e lhe dar vida nova. Jesus Cristo é o grande causador da libertação do seu povo. Ele não veio para colocar fardos pesados sobre a vida de ninguém, mas justificar a todos aqueles/as que crerem na sua promessa de salvação e libertação. “Neste sentido, a lei divina não é cumprida primeiramente por ações externas ou atos ou pela vontade, mas pela dedicação, de todo coração, da pessoa inteira à vontade de Deus” (PONTÍCIO, 2015, p. 48). Isto é, todo/a aquele/a que crer na salvação que vem do Cristo este/a é envolvido/a pela graça da renovação contínua. Assim, conclui o Relatório da Comissão Luterana – Católico-Romana para a Unidade:

Esta é a razão por que Lutero insistia tanto na liberdade do cristão: a liberdade de ser aceito por Deus somente por graça e somente pela fé nas promessas de Cristo, a liberdade da acusação pela lei, pelo perdão dos pecados, e a liberdade para servir espontaneamente ao próximo sem buscar méritos por agir assim (Idem, p. 50).

Lutero estava convencido de que se alguém descobrisse o artigo central da justificação por graça e fé entenderia facilmente o sentido geral da Sagrada Escritura. Assim, “...tendo encontrado o centro evangélico da Escritura, toda ela mudou de sentido e tornou-se clara: os atributos divinos já não são qualidades de Deus, que nos ameaçam e amedrontam, mas expressões da ação de Deus em nosso favor, que nos liberta” (ALTMANN, 1994, p. 106).

A Bíblia foi a maior e mais significativa descoberta feita por Lutero, pois, a partir da Palavra revelada, ele conseguira defender todas as suas doutrinas e seus argumentos de fé. O encontro com a Palavra lhe trouxe um novo sentido para a sua existência. Relata-se que por volta dos vinte anos de idade, Lutero não tinha lido a Bíblia ainda. “Por acaso, descobriu uma,

numa biblioteca; pôs-se a lê-la com uma paixão que mergulhava o Dr. Staupitz num verdadeiro espanto...” (FEBVRE, 1976, p. 34).

A investida do reformador na tradução dos textos do Antigo e do Novo Testamentos do original para o vernáculo tornou-os não apenas acessíveis ao povo mais simples, mas causou uma mudança quanto à postura da Igreja em relação à detenção exclusivista da hermenêutica bíblica. Por outro lado, receoso de que essa livre interpretação pudesse gerar a relativização do Evangelho, Lutero estabelece um critério central para se interpretar os livros sagrados: tudo aquilo que eleva Cristo. Portanto, “aquilo que não ensina Cristo não é apostólico, mesmo que Pedro ou Paulo o ensinem; inversamente, aquilo que prega Cristo é apostólico, mesmo que Judas, Anás, Pilatos ou Herodes o façam” (LUTERO apud ALTMANN, 1994, p. 108).

Toda a preocupação de Lutero estava alicerçada na difusão das Sagradas Escrituras e na autenticidade da vida cristã. Quanto mais cristãos lessem a Bíblia mais encontrariam a liberdade em Cristo e, consequentemente, passariam a entender o serviço ministerial dos fiéis. Segundo Lutero o novo cristão-leigo transcende a lógica da inércia pastoral e entende que “Cristo pagou um preço alto para que todo o mundo tivesse o ministério de pregar, batizar, absolver, ligar, administrar os sacramentos, consolar, aconselhar com a Palavra de Deus e tudo o mais que é necessário para o ministério Pastoral” (LUTERO, 2000, p. 62). Dessa maneira, ele rompe com a alienação bíblico-pastoral e fomenta a autonomia do leigo para não só ler as Sagradas Escrituras, mas pregar e dispensar os sacramentos, até então, administrados exclusivamente pela autoridade eclesiástica.

De acordo com Lutero todo batizado se torna participante do sacerdócio de Cristo (Sacerdote supremo). Ou seja, o Reformador “compreende a relação dos fiéis a Cristo como um ‘feliz intercâmbio’, no qual o fiel toma parte nas propriedades de Cristo, e, portanto, também em seu sacerdócio” (PONTIFÍCIO, 2015, p. 63). Esta compreensão luterana de que todos os cristãos são sacerdotes tornou-se uma proposta concreta para abolir a divisão estabelecida pela Igreja entre clérigos e leigos. Desta feita, o que um cristão é como um sacerdote deriva da participação no sacerdócio de Cristo. Seu ofício confere contribuições efetivas para a vida da comunidade, ao passo que ele toma consigo as preocupações do povo na oração perante Deus e busca transmitir a mensagem do Evangelho para os outros.

Por esse motivo, Lutero atribui tanta importância ao estudo. Pois, se os pais enviam e incentivam seus filhos a estudarem, certamente, as comunidades de fé podem contar com pessoas bem instruídas para o serviço de Deus. Veementemente exortava aos adultos nessa

direção, ao enfatizar os benefícios e os malefícios de enviar ou não os filhos às escolas. Caso os pais não enviassem os filhos para estudar, segundo Lutero, estes estariam causando um grande mal à sociedade e, sobretudo, ao projeto de Deus, assim, alinhavam-se às forças daquele que é contrário a vontade do Senhor. Por outro lado, deveria alegra-se constantemente aqueles que entenderam a proposta do serviço de Deus e do trabalho aos irmãos, quando educam seus filhos para que estes possam se tornar um exímio pastor, pregador ou professor (LUTERO, 2000).

Entretanto, o Reformador não se limita em difundir e restringir a formação para dentro da igreja. Da mesma forma que alguém a princípio se interessasse pela formação cristã e ministerial e se dedicasse aos estudos com empenho para tal, não haveria nenhum constrangimento se lá na frente esta mesma pessoa encontrasse uma profissão que lhe possibilitasse o seu sustento e a sua participação na vida secular. Destarte, “o estudo não prejudica seu trabalho pelo sustento. Ao contrário, ele sabe administrar muito melhor sua casa. Além do mais, está preparado e apto para o ministério da pregação ou para o ministério pastoral, se for preciso” (LUTERO, 2000, p. 80).

Nesse sentido, em Lutero já é possível preludiar a compreensão de formação cidadã, constatando uma formação humana através da base cristã e uma formação social ao articular saber teórico com o saber prático. Naturalmente que não nos referimos à formação do cidadão aos moldes da contemporaneidade, mas certamente esta compreensão embrionária do ser cidadão concebida por Lutero respinga com força ainda nos dias atuais, seja por meio da educação promovida pela religião propriamente dita, ou através de outras instituições de natureza religiosa.