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2 REFORMA PROTESTANTE E LUTERO

2.4 Primícias da Reforma

Em consonância com o Dicionário Digital do Aurélio9, o verbo reformar10 significa melhorar; extirpar o mal introduzido em; retificar, corrigir etc. Se observarmos as diversas traduções dadas a essa terminologia, naturalmente perceberemos uma conotação de sentido positivo e até mesmo iluminador. Assim, a ideia de reforma perpassa a vida do cristão, como assinala a carta aos Romanos: “...sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus” (Rm 12,2). A reforma pode caracterizar uma fonte de inspiração interior (melhoramento pessoal, espiritual, ascético...), mas também pode dizer-se movimento externo (correção comunitária, mudança no pensamento de um grupo, reforma de um espaço físico...). A ideia de reforma expede a um sistema ou princípio, ou ainda a um estado anterior, e que no presente está deformado. Por reforma normalmente se compreende o retorno ao estado primeiro e precedente.

Com isto, estamos dizendo que a expressão reforma pode até soar de modo repugnante a princípio, no entanto, é por meio dela que tantos retornos e ajustes tão necessários são possíveis à existência humana. Culturalmente, pensar em reforma é idealizar algo trabalhoso, moroso e desafiador. Basta pensarmos numa reforma de uma casa qualquer, só o fato de imaginarmos essa proposta já nos assalta a tranqüilidade. Porém, a reforma por si possibilita um oxigênio novo, uma aparência atrativa e um ambiente mais limpo, afinado e possibilitador, onde é possível a expansão de ambientes, por meio de outros olhares. As investidas na reforma resultam de um longo período de reflexão e planejamento. A reforma no seu sentido literal é extremamente pedagógica, parte do ver, primeiro se analisa o que precisa ser revisto, depois se julga e se arquiteta os pontos mais urgentes dessa reforma e, por fim,

9 Acesso em 05/01/2018. Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/reformar

10 Na Antiguidade, o substantivo latino reformatio traduzia a ideia de mudança de uma situação ruim do presente

mediante uma volta aos bons e melhores tempos do passado. Na Era Medieval, o conceito de reformatio costumeiramente era aplicado ao contexto da reforma monástica. As ordens monásticas se engajavam em reformas que possibilitassem a superação do declínio da disciplina e do estilo de vida religiosa. Na Idade Média tardia, a compreensão da necessidade de reforma foi aplicada a toda a Igreja. Ao final do século XV a ideia da reforma também se estendeu ao governo e à universidade (Cf. Pontifício Conselho Para a Promoção da Unidade dos Cristãos e Federação Luterana Mundial / Do Conflito à comunhão. Comemoração conjunta católico-

luterana da Reforma em 2017. Relatório da Comissão Luterana – Católico-Romana para a Unidade. Brasília,

executa-se o plano de ação para o melhoramento material ou imaterial daquilo que se pensou reformar.

O termo Reforma em seu sentido restrito à temática abordada nesta pesquisa, designa “o complexo de eventos históricos que... abrangem os anos de 1517 a 1555, portanto, do tempo em que Martinho Lutero publicou as ‘95 Teses’ até a Paz de Augsburgo” (RELATÓRIO, 2015, p. 26). O próprio Lutero fez uso da terminologia “reforma”. “A Igreja precisa de uma reforma que não é obra humana, ou seja, do Papa, ou de vários homens, a saber, os cardeais – o que foi demonstrado nos concílios mais recentes -, mas é obra de todo o mundo; na verdade, é obra somente de Deus” (Idem).

De acordo com ZAGHENI (1999) a cultura da reforma chega com maior força na Europa, especialmente na Igreja, por volta do século XIV:

Essa palavra-de-ordem, reformatio tam in capite quam in membris11, torna-

se uma bandeira de extrema importância para o futuro, envolvendo uma idéia de reforma geral: esse é um dos temas dominantes na vida eclesiástica dos séculos XIV-XVI. Ganha cada vez mais espaço a convicção de que qualquer reforma da Igreja que queira ser eficaz deve começar de cima, pelo papa, cardeais, Cúria romana. Quem deve reformar, de fato, deve primeiro tirar a trave do próprio olho (ZAGHENI, 1999, p. 34).

De fato, a Europa tornou-se berço das reformas, sejam elas protestantes ou católicas, mas não por mero capricho, e sim por pura necessidade. Os motivos, parte deles já foram elencados, e outros elementos serão abordados quando discorrermos sobre o pensamento de Lutero, propriamente dito. Como atesta ZAGHENI, já no século XIV, a partir do concílio de Vienne (1311-1312) começa-se a pensar num programa de reforma que envolva toda a Igreja. Entretanto, as “reformas católicas” anteriores à reforma protestante, foram veementemente criticadas por Lutero. Porque, segundo o reformador, as tentativas de reformar a Igreja, organizadas pela Cúpula romana, não passavam de obras humanas, reforma de leis e de ritos, no campo da superficialidade, sem expressar coerência e retidão para com a vontade de Deus.

Oficialmente a Reforma Protestante consagra-se em 1517, quando na Alemanha, um monge agostiniano, chamado Martinho Lutero, exatamente aos 31 dias do mês de outubro, afixa nas portas da Igreja do castelo de Wittenberg um texto constando 95 teses, todas de sua autoria, a grande maioria referindo-se contrariamente às práticas do papado. Entretanto, este se torna mais um ato formal, haja vista que a cultura da reforma antecede o movimento efetivado no século XVI e não se limita à pessoa de Lutero.

Segundo Zagheni, as 95 teses de Lutero versam sobre uma temática única que é da prática e da teologia da penitência. Em seu bojo, elas se firmam como um convite à penitência (1-4; 92-95); não poderia o cristão se confiar que a salvação estar-lhe-ia garantida por meio de indulgências, dinheiro e ritos pomposos e sem vida (30-32; 49), ao contrário, conformar-se com a cruz; advertem para o retorno e observância fundamental às Sagradas Escrituras (92), à cruz de Cristo (68; 92-95), à caridade para com os pobres e marginalizados (41-45; 59), à experiência de fé saboreada por meio da interiorização do ser (4; 48; 94); ainda, algumas das teses desempenham a missão de denunciar e criticar as violações praticadas na Igreja pela maioria dos cristãos da época (Zagheni, 1999).

Antes de afixar as 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, o Relatório da Comissão Luterana – Católico-Romana para a Unidade ressalta que Lutero teria enviado-as em forma de cartas para o arcebispo de Mainz (Mogúncia) e para o seu bispo diocesano Jerônimo, de Brandenburg. O texto escrito por Lutero refletia sérias preocupações a respeito da pregação e do uso de indulgências. Seu anseio era propor uma discussão acadêmica acerca de algumas questões abertas e não resolvidas referentes à teologia e as práticas de simonia.

As indulgências ocupavam um lugar de destaque na piedade cristã da época. Eram entendidas como remissão de penas temporais devido a pecados cuja culpa já fora perdoada. Cada cristão estava sujeito a receber indulgências sob determinadas condições prescritas por via da Igreja. De acordo com Lutero, a prática das indulgências molestava a espiritualidade dos cristãos. Lutero levantou as seguintes questões:

[...] se as indulgências poderiam livrar os penitentes das penas impostas por Deus; se todas as penas impostas pelos sacerdotes poderiam ser transferidas ao purgatório; se os objetivos medicinais e purificadores das penas significavam que o penitente sincero preferiria sofrer as penas ao invés de ser livre delas; e se o dinheiro dado as indulgências não deveria ser dado antes aos pobres (PONTIFÍCIO, 2015, p. 27).

Um fator determinante para o desencadeamento da Reforma foi a maneira como as 95 teses de Lutero se espalharam rapidamente e com grande repercussão por toda a Alemanha. Devido à sua veemente posição contrária às indulgências, Lutero estaria sendo acusado de herético. Por essa razão, o monge agostiniano, em 1518, foi convocado para ir a Roma se explicar acerca de sua teologia diante do tribunal da Cúria. Porém, a pedido do Príncipe Eleitoral da Saxônia, Frederico o Sábio, o processo pôde acontecer na Alemanha. “O mandato papal dizia que ou Lutero se retrataria, ou caso se recusasse, o Cardeal teria o poder de

expulsá-lo imediatamente ou prendê-lo e levá-lo a Roma” (Idem, p. 28). Da parte de Lutero não tinha acordo desde que fosse convencido pela Igreja que ele estava errado.

Sem o devido acordo entre ambas as partes, o Papa Leão X, publicou no dia 15 de junho de 1519, a bula Exsurge Domine, condenando 41 proposições tomadas de várias publicações de Lutero. Segundo o Relatório da Comissão Luterana – Católico-Romana para a Unidade (2015, p. 29), as proposições condenadas pela Igreja foram analisadas fora de seu contexto respectivo. Os teólogos Eck e Aleander, tradutores da Exsurge Domine para o alemão, exigiram que as obras de Lutero fossem queimadas. Sem mais, em 10 de dezembro de 1520, deu-se em Wittenberg a queima de alguns livros do professor Lutero. Nada satisfeito, Lutero atira a bula papal ao fogo. Assim, em 3 de janeiro de 1521 precedeu-se a excomunhão pela bula Decet Romanum Pontificem.

Já antes da sua excomunhão, Lutero passou a usar com maior freqüência a língua alemã em seus escritos e dirigia-se não mais aos teólogos, e sim aos leigos. No dizer de Zagheni (1999) essa postura do reformador, explica também a estrutura dos seus escritos que se dizem de forma clara e simples, sem precisar de especialista para compreender sua linguagem. Ainda pensando nos leigos, Lutero adota um livro de formato pequeno, sendo acessível a todos, diferentemente dos enormes volumes, inacessíveis ao povo, inclusive pelo seu custo.

Seus escritos foram considerados ousados em meio ao contexto da época, Zagheni descreve um trecho de um dos escritos luteranos e comenta:

‘O tempo de calar já passou; é chegado o tempo de falar’, assim começa An den christlichen Adel deutscher Nation..., que se dirige ao poder leigo. Lutero aí afirma que é preciso abater três bastiões: o poder eclesiástico, o direito exclusivo do papa sobre a exegese e sobre a possibilidade de convocar concílios (1999, p. 82).

A ousadia de Lutero questionou o silêncio vazio e a subserviência dos leigos perante as ordens humanas falíveis. Ademais, o Reformador fez duras críticas ao clero de Roma12, que segundo ele, em sua maioria vivia somente de aparência e de hipocrisia. Em contrapartida, Lutero defende que os leigos tenham acesso às Sagradas Escrituras e que eles mesmos consigam interpretar a vontade de Deus para sua vida. A nova relação de fé estabelecida por Lutero baseia-se na comunicação direta entre o crente e Deus, sem necessitar de

12 “Há muito tempo, este afastou-se de sua louvável função original. Agora nada mais é do que uma criação da

intermediação alguma, consolidando a independência do cristão mediante as posturas abusivas das autoridades eclesiásticas.

Para tanto, Lutero propõe as doutrinas do sacerdócio comum dos fiéis e da justificação pela fé13 (graça), em que diante de Cristo todo aquele que crê verdadeiramente e realiza sua vontade do seu Senhor encontra a liberdade do ser cristão e passa a não mais obedecer aos homens, e sim ao seu Criador. Assim, o cristão passa a enxergar o seu processo de salvação de outra maneira, sem precisar estabelecer relações previdentes de ordem econômica com o intuito de afiançar um lugar no céu. Para Lutero, a salvação é graça divina, é presente, jamais se pode vender ou comprar.

Esse era o programa concreto da Reforma, cuja efetivação cabia, de modo direto, aos príncipes leigos e suas conseqüências afetariam todas as instâncias da vida eclesial e civil, isto é, do papa às casas de tolerância14. Diante de toda a repercussão global da Reforma, Lutero chega a afirmar: “Talvez eu tenha batido muito forte; mas eu devo falar; prefiro ser rejeitado pelo mundo todo a sê-lo por Deus” (LUTERO apud ZAGHENI, 1999, p. 83). Lutero estava convencido de sua missão profética, cada vez mais consciente de que o povo o escuta e não tinha dúvidas de que sua vocação era conduzir o povo.