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2 REFORMA PROTESTANTE E LUTERO

2.5 Lutero: um dos reformadores do séc

2.5.2 Lutero e a Igreja Católica Romana

A compreensão em torno da relação Lutero e Igreja é, de fato, selada por uma forte crítica à instituição. O que não significa dizer que o reformador guardava sob as mangas um plano para acabar com a Igreja e pouco menos ainda alimentasse o desejo de fundar uma nova igreja. O desconforto de Lutero estava voltado para a hierarquia eclesiástica. Ele estava convencido de que esta definição de Igreja a partir de uma organização geral, universal, não ajudava na vivência autêntica do Evangelho. O ideal luterano é partir da base, da comunidade local, isto é, a igreja para Lutero é comunidade. Explica-nos Altmann:

Assim, para Lutero, Igreja é original e primordialmente a comunidade, a comunidade daqueles que têm em comum a fé em Cristo. ‘Comunidade’ é o termo neotestamentário, enquanto que no Antigo Testamento o termo correspondente é ‘povo de Deus’. A Igreja é esse povo. Não são os pastores, os bispos ou o papa, pois ‘o papa não é povo, muito menos [é ele] um santo povo cristão. Da mesma forma também os bispos, sacerdotes e monges; eles não são um santo povo cristão’ (1994, p. 125).

Pensar em comunidade é, necessariamente, refletir sobre a democratização dos serviços ministeriais, colocando em cheque o papel da autoridade eclesial e valorizando as liberdades e os potenciais individuais dos leigos. Na concepção de Lutero, é mais provável que a igreja-comunidade consiga realmente promover todas as reformas possíveis e necessárias, pondo assim em prática a vontade de Deus, pois, uma vez que seus membros entenderam a proposta evangélica a sua concretização é apenas questão de planejamento e execução.

Lucien Febvre (1976) atesta que a reforma pensada por Martinho Lutero, a princípio, sustentava uma pretensão tímida de apenas provocar algumas mudanças na ordem religiosa existente em sua época. Pois, o que contava para “Lutero de 1505 a 1515” não era a Reforma da Igreja, mas ele próprio, sua alma e a conquista de sua salvação (FEBVRE, 1976, p. 64-65).

Em nenhum autor, por nós pesquisado, encontramos a tese de que a intencionalidade primeira do reformador era causar um cisma na Igreja; não obstante, Lutero não racha com a Igreja e é expulso por ela. Tal comportamento da Igreja Católica possibilitou o surgimento de uma nova igreja, como resultado do movimento reformista. Inicialmente, o próprio Lutero questiona o fato de alguns aderentes à nova igreja se chamassem “luteranos”:

Em primeiro lugar peço que meu nome seja calado e que ninguém se chame de luterano, senão de cristão. Quem é Lutero? Pois a doutrina não é minha. Eu também não fui crucificado por ninguém. São Paulo, em 1 Co 3, não quis suportar que os cristãos se chamassem de paulinos ou petrinos, mas de cristãos. Como poderia eu, pobre e fedorento saco de vermes, fazer com que os filhos de Cristo fossem chamados por meu nome desprovido de qualquer valor? Não assim, caros amigos, eliminemos os nomes partidários e chamemo-nos de cristãos, de acordo com a doutrina que temos... Não sou nem quero ser mestre de ninguém. Tenho junto com a comunidade a única doutrina de Cristo, o qual só ele é nosso mestre (LUTEROapud ALTMANN, 1994, p. 126) [grifo nosso].

Com essa afirmação, Lutero apenas ratificava que a Palavra de Deus está admiravelmente acima da igreja. A igreja-comunidade é fruto dessa Palavra e nada pode ser ou fazer senão por meio da ordem divina manifestada pela terceira Pessoa da Trindade: o

Espírito Santo. “Pois a Igreja é criatura do Evangelho, incomparavelmente inferior a ele” (LUTERO, 1995, p. 378). Desta feita, a comunidade só se torna cristã e santa porque é gerada pelas Sagradas Escrituras. Diferentemente do comportamento observado por outras autoridades eclesiásticas, Lutero não reivindica nenhum poder ou reconhecimento para si. Aliás, exorta aos fiéis que todo reconhecimento seja dado àquele que é o único mestre de todos: Jesus Cristo.

Walter Altmann ao discorrer sobre a eclesiologia de Lutero e as igrejas na América Latina acentua o surgimento das Comunidades Eclesiais de Base19como uma importante

ferramenta para a reinvenção da Igreja no continente latino-americano. Sob a influência do pensamento eclesiológico luterano, no qual “encontramos a ênfase comunitária, a libertação da tutela institucional, a compreensão da estrutura eclesiástica como reformável e de serviço, a preferência pelo fraco, a marca da cruz, a primazia da palavra de Deus” (ALTMAN, 1994, p. 133), as CEB’s fomentam um novo jeito de ser cristão, em meados do século XX.

Junto à Altmann (1994) afirmamos que uma possível aproximação entre a eclesiologia de Lutero e a Teologia da Libertação tenha se dado, provavelmente, por meio do conceito de liberdade desenvolvido pelo Reformador. O teólogo brasileiro Leonardo Boff, ex- franciscano, é quem vai atribuir maior importância à figura de Lutero com notória admiração. Altmann (1994, p. 313) ao citar Boff referindo-se à contribuição do monge agostiniano para o processo de libertação do povo cristão, destaca: “no campo religioso ‘Lutero efetuou um grandioso processo libertador. Será ele para sempre uma referência obrigatória para todos os que buscam a liberdade e sabem lutar e sofrer por ela”20. Boff comenta a doutrina da justificação da fé tecida por Lutero como sendo uma “radical libertação”, pela qual o cristão é capaz de experimentar uma extraordinária liberdade interior.

Em relação à influência de Lutero no campo sociopolítico de sua época, numa releitura de seu pensamento, Leonardo Boff infere que o Reformador figura “como uma das maiores testemunhas do espírito evangélico e da coragem de postular reformas na Igreja e na sociedade”21. O teólogo brasileiro ressalta a importância tanto da Reforma bem como de Lutero para a engrenagem de algumas reformas nos âmbitos sócio-econômico-políticos, tais como: a descoberta de novos continentes, com a colonização de novas terras, a invenção da

19 As CEB’s têm seu lastro teológico-pastoral na Teologia da Libertação. Esse tema será discutido com maior

propriedade no próximo capítulo.

20 Trecho do artigo 500 anos da Reforma de Lutero: sua relevância para a libertação dos oprimidos, de autoria

de BOFF, Leonardo; publicado no site oficial do teólogo brasileiro. Disponível em: https://leonardoboff.wordpress.com/2017/07/21/500-anos-da-reforma-de-lutero-sua-relevancia-para-a-libertacao- dos-oprimidos/. Acessado em: 22/04/2018.

imprensa, a introdução de novos métodos financeiros, a incidência do humanismo e especialmente o grito de toda a Cristandade por reformas profundas na cabeça e nos membros. No entanto, segundo Boff, uma das mais expressivas colaborações de Lutero no campo das reformas foi a concretização de um grandioso processo libertador. “Será ele para sempre uma referência obrigatória para todos os que buscam a liberdade e sabem lutar e sofrer por ela”22. A liberdade concedida por Lutero gera uma transformação de espírito, em que os indivíduos se vêem livres para pensar e agir sem o controle da Igreja Católica e assim superam o cativeiro babilônico23.

Com o intento de efetivar esse sonho por libertação, Lutero se opõe à justificação pelas obras ao propor a justificação pela fé. Faz a inusitada descoberta da misericórdia infinita de Deus em Jesus Cristo crucificado; O indivíduo não está sentenciado a cumprir leis e tentar por suas boas obras produzir a salvação; Sua missão neste mundo não consiste em ajustar-se e reproduzir todas as normas, com a convicção de sua incapacidade visceral de fazê-lo perfeitamente.Ao contrário, com a justificação pela fé o ser humano está livre de todas essas exigências impostas pela Igreja Clerical, a fim de estar livre para acolher a graça e a misericórdia como dádiva e oferecimento gratuito do Pai.

Destarte, os aspectos resgatados por Boff da teologia de Lutero irão à linhagem da proposta libertadora provocada pela livre interpretação das Sagradas Escrituras. Ainda de acordo com o teólogo da libertação, o maior legado de Lutero foi recuperar o potencial libertador do Evangelho, quando se entregou a Bíblia nas mãos do povo.

Assim, é de comum acordo, que os desdobramentos tanto da teologia luterana bem como da Reforma Protestante, propriamente dita, desencadearam uma construção de uma nova sociedade, com perspectivas de vida bastante divergentes daquela cristalizada pelo período medieval. Elucidar esses elementos contextuais em torno da Reforma e de Lutero nos possibilitaram enxergar um mapa – traçado a partir de conflitos, embates, propostas, mas também por múltiplos olhares e interpretações – que nos apresentou como se deu a concretização histórica da passagem de uma época para a outra.

No entanto, dar-se conta dessas peças do quebra-cabeça e tentar uma montagem estratégica nos ajuda na compreensão do Lutero não só reformador, mas educador. Pois, vimos que praticamente todas as propostas levantadas por Lutero, de uma forma ou de outra,

22 Ibidem.

23 Expressão cunhada pelo próprio Lutero para expressar a relação de submissão, na qual a Cristandade

versavam a educação do povo. Mesmo sendo na perspectiva de uma formação cristã e, não obstante, o contexto da época, o processo pedagógico desenhado pela Reforma Protestante aponta para uma “educação libertadora”. Educação esta, no sentido de que a construção crítica realizada pelos reformadores gerou a problematização de um modo de se fazer sociedade, fracassado. A cultura de reforma ajuda a compreender o contexto social emergente que tomava a Europa. E, a partir de uma leitura crítica dos acontecimentos na História, pensar reformas em vários setores da sociedade, alcançando-se assim, a tão esperada ruptura com a era medieval.

Não há como pensar a Reforma Protestante sem registrar as problemáticas sociais, políticas, educacionais e econômicas do seu entorno. Vimos que para Lutero a base da Reforma é a educação dos indivíduos, sem formação não há população alfabetizada, logo, a garantia do acesso à Bíblia é estéril. Sem a leitura dos Textos Sagrados não há interpretação bíblica e sem exegese ética e comprometida com autenticidade evangélica não se pode haver cristão livre e consciente. Portanto, esse diálogo entre Reforma, Lutero e Educação é a grande base de um modo de entendimento educacional, que possibilitou voos significativos no que tange à instauração de um novo modelo de comunidade cristã.