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3 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E PAULO FREIRE

3.3 A libertação cantada pelas CEB’s

Na tentativa de alargar a compreensão do conceito tradicional de religião, o teólogo protestante Paul Tillich, fundamenta a partir da experiência do Sagrado enquanto Incondicional o novo conceito de religião. Para ele, a partir da experiência do Incondicional,a religião passa a ser compreendida não mais como fenômeno cultural particular, mas como vida, inspiração, sendo ela, o próprio coração da cultura (CALVANI, 1998). Na visão de Tillich dentre as tantas funções da arte, uma delas é a habilidade de transformar realidades comuns em novas realidades plenas de significado e antecipar a criação de um tempo redentor. Em outras palavras, a arte consegue expressar e dar voz a povos silenciados e oprimidos, enchendo-lhes de esperança à luz da proposta de redenção.

A arte construída e valorizada por meio das inúmeras composições de cantos e músicas das Comunidades Eclesiais de Base demonstra com bastante evidência a consciência sociopolítica de um grupo social. Por meio dos seus cantos, ritmos, expressões, palmas, movimentos e conteúdos, as pessoas que formam essas pequenas comunidades constroem uma experiência eclesial pautada por uma concepção de vida, de Deus e de mundo. De fato, os cantos e as músicas têm sido a “orquestra” viva e dinamizadora da dimensão real e simbólica das Comunidades Eclesiais de Base.

O compêndio dos cantos das CEB’s compreende letras que denunciam desde a concentração de renda e da propriedade privada até a exploração e opressão do ser humano. O intuito é denunciar a injustiça social e pregar a mudança estrutural na sociedade brasileira, por meio de uma reforma agrária e uma política econômica que possibilite uma eficiente e justa distribuição de renda. As letras dessas canções soam mais como hinos de marcha. Assim

como os povos oprimidos do Egito marchavam em busca da sua libertação, da mesma forma hoje, o povo continua marchando na história contra a opressão maquiada, instalada pelo sistema neoliberal. Assim, canta o povo sonhador e crente na esperança de um mundo melhor:

Bendita e Louvada seja esta santa romaria!

Bendito o povo que marcha, bendito o povo marcha, tendo Cristo como guia!. Sou, sou teu, Senhor,

sou povo novo retirante e lutador! Deus dos peregrinos, dos pequeninos, Jesus Cristo, redentor!

No Egito, antigamente, do meio da escravidão. Deus libertou o seu povo. Hoje ele passa de novo, gritando libertação. Para a terra prometida o povo de Deus marchou. Moisés tava na frente, hoje ele tá na gente

quando enfrenta a opressão. Mãos ao alto, voz unida nesse canto se ouvirá. Nos caminhos do sertão, clamando por terra e pão ninguém mais nos calará. (Zé Vicente)

Esse bendito entoado pelos peregrinos em romaria revela dados proeminentes sobre as CEB’s. Ele retrata um diálogo do povo peregrino com Deus, no sentido em que se define como um povo rumo à terra prometida, herdeiros de Moisés. Portanto, assim como outrora, “Moisés tava na frente, hoje ele tá na gente quando enfrenta a opressão”. Esse sentimento por libertação conclama, a nosso modo de ver, duas atitudes de saída: a primeira, relacionada com o interior de cada peregrino, isto é, a partir da conscientização de gente oprimida munisse de atitudes em busca de sua libertação; e a segunda, tem a ver diretamente com as estruturas sociopolíticas em vigência, detectar as armadilhas de opressão e espólio dos poderosos, e, em coletividade lutar pela libertação de todas as nações oprimidas, consolidando um movimento de “andarilhagem histórica”.

A relação e a atualização que o cântico cumpre, produzem uma hermêutica atuante, ratificando a vigência da Palavra de Deus que se perpetua em meio à realidade de luta e resistência do seu povo. Desta maneira, se conclui a passagem dos israelitas pelo mar vermelho: “Naquele dia, Iahweh salvou Israel das mãos dos egípcios, e Israel viu os egípcios mortos à beira-mar” (Ex 14, 5-31). A chegada à terra prometida é promessa de Deus que se cumpre na vida do seu povo. O sentido de luta pela terra nos dias de hoje reverbera o desejo natural do ser humano que é ser livre perante a vontade do seu criador.

Na compreensão de Comblin, o Êxodo do Egito não pode ser encarado como dado cristalizado no processo total de libertação. O prosseguimento com a história do Primeiro Testamento assume uma intencionalidade pedagógica: mostrar que o povo de Deus é um povo real e histórico. “A Bíblia fala do destino de povos concretos; a sua libertação se refere a povos concretos e o povo de Deus tem um destino histórico concreto, material, bem visível e socialmente vivido por pessoas inteiras...” (COMBLIN, 2009, p. 13). Quando o teólogo nos aponta para essa libertação encarnada é uma tentativa de superar a concepção hermenêutica bíblica intimista e espiritualista que não forma comunidade, mas apenas retrata um fenômeno interior. A proposta de Comblin atenta para novas perspectivas reais de enfrentamento da Teologia da Libertação e de ampliação do diálogo religioso. Em outras palavras, isto implica no encontro da mensagem bíblica com os diversos movimentos de libertação latino- americanos. Como atesta o próprio Comblin:

Não podemos fugir do problema, dizendo que a libertação bíblica se refere somente às almas. Na realidade, ela se encarna em condições concretas e se encontra com os problemas da libertação racial, libertação da mulher, libertação das nações oprimidas pelos impérios ou libertação dos trabalhadores oprimidos pelos detentores do capital (Ibidem)[grifo nosso].

Somadas as essas libertações, o grito dos povos indígenas pela retomada das terras, o grito dos povos sem terra e sem teto, o grito dos coletivos LGBT’s que lutam diurnamente, incansavelmente para que suas vidas não sejam ceifadas diante das inúmeras ações LGBTfóbicas. Essas realidades outras, silenciadas e, por vezes, até mesmo alimentadas pela Igreja-Instituição, clamam por um novo olhar sobre o conceito de libertação35 a partir do

35 Para aprofundar essa temática sugerimos as seguintes leituras: CONCILIUM. Petrópolis: Vozes, fevereiro-

2002 (aprofunda a compreensão e a relação entre corpo e religião); PERSPECTIVA TEOLÓGICA. Belo Horizonte: O Lutador, janeiro/abril -2006 (Aborda a nova perspectiva da Teologia ao analisar o cristianismo latino-americano mediante a situação paradoxal em que vive: conviver com o declínio da civilização cristã ocidental e com o ressurgimento explosivo de formas religiosas arcaicas e selvagens); CONCILIUM. Petrópolis: Vozes, maio-1995 (Trata da nova compreensão relacional entre a Fé e a Terra, por meio da abordagem

contexto bíblico-cristão. Esse grito denunciador, forte e aguerrido pode ser constatado na canção de autoria de Zé Vicente:

Igreja é povo que se organiza, gente oprimida buscando a libertação em Jesus Cristo a ressurreição.

O operário lutando pelo direito de reaver a direção do sindicato; o pescador vendo a morte de seus rios, já se levanta contra esse desacato. O seringueiro com sua faca de seringa se libertando das garras do patrão; a lavadeira, mulher forte e destemida, lava a sujeira da injustiça e opressão. Posseiro unido que fica na sua terra e desafia a força do invasor, índio poeta que pega a sua viola e canta a vida, a saudade e a dor. É gente humilde, é gente pobre, mas é forte dizendo a Cristo:

meu irmão muito obrigado pelo caminho

que você nos indicou pra um povo feliz e libertado. (Zé vicente)

De acordo com informações extraídas do blog “Trem das CEB’s”36 que resgata e comenta com fidelidade as letras de alguns cânticos das CEB’s, o canto: “Igreja é povo que se organiza”, de um modo geral remete à década histórica de 1980, quando se constata intensas mobilizações, oriundas dos movimentos sociais e sindicais, nos quais se faziam notar inúmeros agentes de CEB’s. A canção retrata ainda a dimensão secular da ação dos leigos/as (agentes de pastoral) inspirada pela libertação em Jesus Cristo Ressuscitado. Esse é o momento na história em que a “Igreja dos Pobres” mais investe na formação de seus agentes para serem vozes proféticas no/com o mundo.

sistematizada da ecologia integral, na perspectiva de fundar uma nova aliança das sociedades com a natureza, da qual resulte a conservação do patrimônio terrestre, o bem comum sociocósmico e a manutenção das condições que permitem ao processo de evolução seguir seu curso).

36 As referentes informações estão disponíveis por meio deste link:

http://tremdascebs.blogspot.com.br/2010/05/os-cantos-das-cebs-suas-expressoes-da_08.html. Não referendamos nenhum autor, porque o próprio texto não é assinado. No entanto, a fonte bibliográfica de inspiração é o livreto:

Na perspectiva de Carlos Palacio (2001) os novos desafios e deslocamentos da Teologia da Libertação proporcionam o encontro do cristianismo com outras culturas, à inculturação da fé e o diálogo com outras religiões. Ao passo que se gera uma nova atmosfera, cria-se uma nova consciência eclesial. A grande conseqüência dessa consciência fez com que os povos da América Latina se identificassem como Igreja Particular. Não como uma afronta à perspectiva romana, mas como uma identidade de fé que ajuda a ser comunidade de Cristo consciente neste chão da realidade existencial, social e cultural.

Desta feita, a opção preferencial pelos empobrecidos exigiu e exige dessa Igreja Particular o desvelamento de outra cultura. A princípio, a popular. E, posteriormente, outras, como exemplo, as culturas indígenas, que se concentram em grande parte dos países latino- americanos e distinguem a América Latina dos outros continentes através dessa diversidade cultural peculiar. Portanto, a essa consciência eclesial foram atribuídos novos desafios e problemas no que se refere à evangelização dos povos. Assim, no dizer de Palacio: “a atenção às minorias étnicas, religiosas, sociais, aos excluídos etc. é conseqüência do que significa levar a sério ser uma Igreja particular e aceitar que a fé se encarne num contexto determinado (2001, p. 131) [grifo do autor].