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5 PROSTITUTAS, CRIMINOSAS, LOUCAS

5.1. As prostitutas

A prostituição também trazia desordem ao espaço urbano. Os esforços de mantê-la distante dos olhos da boa sociedade fortalezense nem sempre eram capazes de ocultar a circulação destas mulheres pela cidade:

Pancadaria – Houtem pela manhã, na Rua do Mercado houve uma grande desordem entre algumas mulheres de conducta equivoca. Consta-nos que o resultado foi sahirem algumas com cabeças fracturadas e outras ferimentos.

Ignoramos se a policia intrevera para arrefecer o ardor das desordeiras.154[grifo nosso]

A polícia aparentemente não interviu na pancadaria das desordeiras, o jornal descreve a confusão de maneira indiferente, como se percebe na forma como descreve os ferimentos ou o acontecimento como um todo.

Em outros momentos, a atuação violenta das prostitutas recebe uma atenção maior, como no caso de agressões a um oficial da lei:

Na noite de 15 do passado o afamado Xico Marinheiro, subdelegado de policia, jogou taponas com a prostituta Maria Camello, por não querer esta sugeitar-se a servil-o nos seus intentos libidinosos. Ella gaba-se de ter dado boas taponas na lata155 do tal subdelegado. Que miseria!....156

153 O alcoolismo passa a constar como uma das características destacadas nos relatórios dos presidentes da Província sobre como influencia o aumento da violência interpessoal e como é mencionado com cada vez mais freqüência a partir de 1870 . Ao lado da baixa instrução, do “império das paixões violentas e ferozes”, da impunidade, o alcoolismo começa a ser visto como vício das camadas mais baixas da sociedade “a quase totalidade dos delictos teve por autores pessoas da ultima classe social, geralmente analphabetas, e dadas á máos-habitos, como embriaguez, ou ao mal entendido desforço pessoal [vadiagem], e á ostentação de valentia” (CRL, Relatório do Presidente da Província Desembargador João Antônio de Araújo Freitas Henriques, 1870, p.7). Cumpre destacar que os atributos apresentados pelo presidente se referem a práticas comuns entre os homens das camadas populares mas que, como já destacamos até aqui, tornaram-se cada vez mais frequentes e percebidas como atributos também femininos, o que reforça nossa teoria de que, quando estes atributos masculinos eram percebidos entre as mulheres, isso se tornava um agravante de suas situações perante a justiça ou pelo menos alvo de uma condenação moral pública.

154 (HBND) O Cearense, Noticiario, 12 de Outubro de 1869, nº228, p 1. 155 A expressão “na lata” no Ceará tem o mesmo sentido de “na cara”.

Embora o subdelegado já fosse afamado, possivelmente o fato de ter sido rejeitado por uma prostituta e ainda ter levado umas tapas na cara desferidas por ela, pode ter contribuído para um pouco mais de perda de status frente aos cidadãos da cidade. O fim da nota com um “Que miseria!” deixa em evidência o desprezo do jornal pela situação do subdelegado que apanhou de uma prostituta.

Eventualmente as prostitutas apareciam também nos jornais como modelos “do que não se deve ser”. São vários os exemplos – reais ou imaginários – que, nas páginas dos periódicos, estavam carregados de sofrimento e deviam assustar muitas jovens mulheres que viviam sob o risco da corrupção através da sedução:

A transviada

Não chores, coragem filho, Pobre criança sem pai; Ouvindo contar a vida, Que sofro como perdida, Não chores, coragem, filho! [...]

Ai de mim... formosa, incauta, Vivia feliz no lar,

Quando amei... e fui trahida, Pelo malvado illudida... Ai de mim... formosa, incauta! [...]

Depois do crime, o perverso Sem pena me desprezou! Em paga de amor tão santo, Deixou-me a vergonha e o pranto, Depois do crime, o perverso! [...]

Procurei-o... abandonou-me, Impelliu-me ao lupanar!

Quanta affronta, infâmia e dores... Sentindo tantos horrores,

Procurei-o... abandonou-me! [...]

Na rua... só... em delírio, Sob o insulto e maldição! Quase nua... sem alento, Sem casa... sem alimento, Na rua... só... em delírio! [...]157

Segue-se ainda todo um corolário de sofrimentos e desprezo da sociedade frente à mãe prostituta. A intenção mais evidente seria a de manter a

honra daquelas que eram – como a vítima da sedução – “formosas e incautas”, que se mantivessem vigilantes quanto às investidas dos sedutores, pois o que lhes aguardava, após um possível abandono, seria uma vida miserável e sofrida.

Colocava-se quase que exclusivamente sobre as mulheres a responsabilidade sobre a manutenção da sua honra. Quando, tornando-se mulheres, deixavam-se dominar pelas “fraquezas do seu sexo”, tornavam-se também alvos fáceis de homens que agiam também segundo sua “natureza”:

Cresci; fiquei moça. Meu coração a bater de um modo estranho; o sangue galopava-me fervente pelas veias; meu corpo enlanguecia... minha face corava... mil pensamentos de fogo me enfebreciam. A mór parte do tempo, largando a costura, empregava eu na leitura das novellas que meu pai possuía. Aquelles livros faziam-me mal; alguns envergonhavam-me, e todos levavam-me ao delírio. Era uma sede devoradora, que não sei descrever. Apaixonei-me então de um caixeiro de cabellos negros e ondeados e bigodinho retorcido. Dos olhares, sorrisos e gestos, passamos em breve ás cartinhas de papel côr de rosa e d’estas ás entrevistas. Uma noite... não pude resistir a sedução de suas promessas... perdi-me. E alli mesmo, no lugar do meu infortúnio, meu coração encheu-se de ódio para aquelle que me deshonrára; chorei de raiva e arrependimento. Elle promettendo reparar o crime com o casamento, procurava estancar-me o pranto. O que fazer senão aceitar a esperança? Esperei; esperei muito, até que, já não podendo enganar-me, embarcou-se o infame, abandonando-me para sempre...158

Tal como Maria do Carmo do romance A normalista, a jovem seduzida foi vítima da sua “programação biológica”, ajudaram na sua queda a leitura dos romances proibidos e a inocência. Estes exemplos são relativamente comuns nos jornais da época e devem ter povoado o imaginário de seus leitores, pais e mães zelosos da honra de suas filhas e moças casadoiras, acossadas pelo assédio dos rapazes.

A presença de prostitutas em Fortaleza em princípios do século XIX, nem sempre noticiada nos jornais, não estava limitada ainda a determinados territórios e muitas vezes a atividade da prostituição não era a fonte principal de renda das mulheres. Em pesquisa anterior, identificamos entre as mulheres lançadas no rol dos culpados, poucos casos de prostituição (ou meretrício), mas, em alguns lançamentos, são perceptíveis outras atividades relacionadas à atividade como as “casas de alcouce”. A atividade das alcoviteiras, nem sempre era relacionado à prostituição, mas antes à outra categoria de “tratos ilícitos”, como o amasiamento e o adultério, e sempre como atividade econômica complementar (Cf. BRAGA JUNIOR, 2010, pp.50-51)

Somente no censo de 1887, começaram a aparecer nas estatísticas mulheres que se apresentavam como meretrizes. Em estudo detalhado sobre o registro de profissões neste censo, Eni de Mesquita Samara apresenta dados relevantes sobre a prostituição na cidade. O primeiro destaque importante é o relativo ao fato de que a categoria “meretriz” era anotada na parte destinada às observações no censo, ou seja, a atividade da prostituição não era percebida enquanto “trabalho” pelos responsáveis pelo censo (Cf. SAMARA, 1998, p.1189).

Sobre a população da cidade, o censo registrava 17.504 habitantes, dos quais 7.467 seriam homens e 10.024 seriam mulheres (13 pessoas não possuem referência ao sexo). Do total de mulheres anotadas no censo, cerca de 389 (3,88% das mulheres da cidade) continham a observação de meretriz, e diferentemente do que observamos para finais do século XVIII e início do XIX quando a prostituição era atividade complementar (ou ocasional) à renda feminina, cerca de 305 (78,42% do total de meretrizes) mulheres não possuíam outra ocupação que não a prostituição159.

Mesmo se referindo ao contexto da Europa oitocentista, Walkowitz traz observações importantes sobre a relação entre trabalho e prostituição que são pertinentes para nosso estudo:

O caráter fluido e não institucionalizado da prostituição de rua permitia a um número considerável de mulheres trabalhadoras complementar seus salários insuficientes com o dinheiro ganho através de favores sexuais comercializados nas ruas. Mesmo para aquelas que ganhavam a vida principalmente com a prostituição, a <<vida alegre>> representava apenas um <<refúgio [temporário] perante circunstâncias difíceis>>; na sua maior parte, as jovens abandonavam tal ofício ao aproximarem-se dos trinta anos. (1991, p. 407)

A questão da idade se torna muito relevante no contexto da prostituição. No caso de Fortaleza, os dados levantados por Eni de Mesquita Samara corroboram a conclusão observada por Walkowitz: das 389 meretrizes identificadas no censo de 1887, cerca de 209 encontravam-se na faixa etária entre 18 e 30 anos e conforme a faixa etária aumenta, o número de prostitutas diminui, sendo 78 na faixa de 31-40 anos e 77 na faixa de 41-70 anos160 (Cf. SAMARA, 1998, p. 1195).

Dos dados apontados, podemos perceber que quantidade considerável de

159 Eni de Mesquita Samara fez levantamento e análise importantes destes dados relativos às meretrizes, constituindo-se em referência fundamental à nossa pesquisa.

160 Consta ainda deste levantamento 25 meretrizes sobre as quais não se encontra informação sobre a idade.

mulheres na cidade estava envolvida na prostituição, atuando indiretamente na preservação da “honra familiar” de tantas outras mulheres que se encontravam disponíveis no mercado de casamento161.

Estas mulheres – ao lado das loucas e criminosas – são aquelas que rompiam de forma mais evidente com os estereótipos criados sobre a feminilidade. O ponto de encontro dos discursos médico, jurídico e religioso tentou de todas as formas suprimir estas “outras” mulheres e, se as práticas discursivas criadas em torno desta ‘má feminilidade’ (a exemplo das representações nos jornais), não foram suficientes para controlá-las, outros meios deveriam ser aplicados para a concretização do controle social/sexual feminino.