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3. MARIA ADÉLIA: A INFANTICIDA

4.1 A cidade vigiada

4.1.2 A ordem nas ruas

O Código de Posturas, publicado pelos presidentes da província do Ceará, tinha como objetivo maior disciplinar e organizar a cidade. Como comentado anteriormente, esta visão de organização refletia o interesse de uma elite que desejava Fortaleza como uma cidade civilizada.

As propostas de arruamento feitas através dos anos sempre destacam a preocupação de manter um traçado retilíneo sempre que possível e seguindo um grande plano xadrez para a área central da cidade.

Dentro desta lógica de ordenamento urbano e do interesse de dar à cidade ares de civilidade, existe um movimento de criminalização de algumas práticas da população. O Estado, em sua manifestação mais real, a lei, cria o crime, em que podemos perceber de forma evidente o poder do discurso da autoridade em relação às práticas cotidianas dos indivíduos ou de grupos sociais não hegemônicos.

Exemplo de criminalização de uma prática comum entre os pobres é o artigo 69 do Código de Posturas de Fortaleza, que estabelece o vestuário proibido dentro da cidade: “Nenhuma pessoa livre ou escrava poderá entrar nesta cidade, ou percorrer suas ruas, de camisa e ceroula, pela immoralidade e indecência do

115 Este debate sobre o aparente desapego dos colonos no Brasil pela norma ou planificação urbana ainda gera divergências entre os historiadores (Cf. MARX, 1997).

trajo”116. Mais uma vez me aproprio da análise de Amaral Lapa:

Impõe-se mudar a relação do homem com a natureza, com a cidade e com os outros homens, questionando a tradição que se apresenta com costumes e hábitos, que não mais correspondem ao que é tido como urbano e civilizado, compatível, produtor e produto do progresso, sinônimo de desenvolvimento, que só se atinge transformando a vida social para melhorá-la. (LAPA, 2008b, p.18)

Tal vigilância sobre os costumes pode ser observada também, por exemplo, no artigo 70 do Código de Posturas, que criminaliza os banhos nas águas urbanas: “Fica prohibido a qualquer pessoa apresentar-se nua, das seis horas da manhã ás seis da tarde, nos lagos ou riachos desta cidade, sob qualquer pretexto que seja”117. Tais práticas, comuns ao ambiente rural e às pessoas pobres, se tornaram crime segundo uma moral de uma nova sociedade que se estabelecia, tornando-se efetiva então uma moral urbana.

Estes são exemplos notáveis do processo de disciplinarização dos corpos. A nudez ou a exposição de roupas de baixo em espaço público chocavam as elites urbanas que já respiravam os ares de modernidade e civilidade europeus. A juventude, filha desta elite, que estudava fora da província, nas províncias mais ricas ou mesmo na Europa, reforçava as diferenças entre “nós” e “eles”, estabelecidas entre a elite e as camadas mais pobres.

A interferência das leis sobre as vidas dos indivíduos vai muito além da definição de algumas normas de conduta, como afirma Rolnik:

Mais além do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular a produção da cidade, a legislação urbana age como marco delimitador de fronteiras de poder. A lei organiza, classifica e coleciona os territórios urbanos, conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania diretamente correspondentes ao modo de vida e à micropolítica familiar dos grupos que estiveram envolvidos em sua formulação. (ROLNIK, 1997, p. 13)

A elite urbana de Fortaleza interferia não somente no aformoseamento da cidade em si, mas antes em uma projeção de seus ideais nos habitantes da cidade e ainda através das leis, e de muitos “arranjos”, criava-se neste contexto uma série de territorialidades para dentro ou para fora da lei, constituindo “regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limitada” (ROLNIK, idem).

A questão da cidadania é complexa e deve ser analisada com cuidado.

116 Art. 69 da Lei n. 308 de 24 de Julho de 1844. 117 Art. 70 da Lei n. 328 de 19 de Agosto de 1844.

Encontram-se à margem da cidadania os escravos, pela situação legal; os pobres, pelas suas condições econômicas; e as mulheres, pelo seu gênero. Retomemos mais uma vez a questão da violência simbólica construída em torno destes não cidadãos, marginalizados ou mesmo excluídos da nova ordem social e econômica que se estabelecia por estas terras.

A cidade não seria pensada em função de toda sua população, antes a ideia seria afastar os mais pobres do centro, empurrando-os para longe da área civilizada e moderna da cidade. No Código de Posturas, muitos artigos se referem à ocupação do espaço urbano de uma forma que explicitamente dificulta a permanência dos indesejáveis nas regiões economicamente mais fortes da cidade.

Eram altos os gastos com alinhamento das casas em relação às ruas, a construção de calçadas, a obrigatoriedade de edificar casas em terrenos arrendados dentro da cidade (evitando os terrenos baldios) no prazo de dois anos, a partir do arrendamento; assim como as multas para quem não obedecesse às respectivas posturas118. Tais medidas aos poucos procuravam transformar uma cidade cheia de casas de palha em uma cidade de tijolos caiados, e os custos de tal reforma acabariam afastando a população mais pobre para os “arrabaldes” da cidade.

A vigilância sobre os usos que a população fazia dos equipamentos urbanos faz-se perceber quando analisamos, por exemplo, certa legislação sobre a água, no que se refere aos banhos nos riachos e lagos da cidade, onde o cuidado não era somente com a nudez dos corpos, mas também com a higiene, proibindo-se o banho de animais nas chamadas aguadas públicas e a pesca com redes de arrasto ou venenos. Obviamente estas não eram as únicas posturas municipais que se referiam ao uso da água.

O fornecimento de água e o disciplinamento de seu uso eram alvo do interesse de toda população e por isso eram constantes as referências a estas questões no Código de Posturas e nos relatórios dos presidentes da província. Exemplos destes cuidados com as fontes urbanas estão no Código de Posturas, em que o artigo 16 proíbe a lavagem de roupas nas bicas dos chafarizes e o artigo 17 pune com 2$000 réis a pessoa que colocar sujeira ou banhar-se nas cacimbas

118 Artigos 1 a 5 e 64 das Posturas da Câmara Municipal da Cidade de Fortaleza, aprovadas pela Assembleia Legislativa Provincial, 1835.

públicas119. O trabalho das lavadeiras tornava-se mais difícil à medida que deviam afastar-se do centro da cidade para buscar uma fonte de água para realização de seu trabalho. De certa forma, esta medida buscava impedir a aglomeração de mulheres dos estratos sociais mais baixos e consequentemente tirar de vista seu comportamento “desordeiro” e vocabulário “ofensivo”.

Era nestas fontes e mananciais da cidade que se reuniam muitas vezes as lavadeiras, escravos e toda a massa de população mais pobre que fazia circular, além de suas mercadorias, toda uma série de boatos e fofocas que com certeza incomodava a ordem pública principalmente pela algazarra envolvida, e possivelmente pelas informações sobre as vidas dos patrões que circulavam de boca em boca.

Existia uma extensa legislação para a preservação e a higiene das fontes públicas. Durante a construção do chafariz do largo do Palácio, o presidente Manoel Felizardo de Souza e Mello sanciona a Lei de nº 148 que em seus artigos trata da urgência da construção do chafariz, do plantio de árvores nas proximidades, da manutenção de um guarda para proibir as pessoas de lavarem-se ou darem banhos em animais. Vale destacar o artigo 3 da dita lei:

A pessoa que a guarda encontrar lavando-se no manancial do chafariz, ou lavando animaes ou roupa, ou lançando immundicias, será presa e levada á presença do Juiz de Paz, para ser punida policialmente com um mez de casa de correcção, salvo se for escravo, porque neste caso pagará o senhor do mesmo oito mil réis de multa para as despezas da camara, e caso recuse pagar a multa será o delinquente castigado com vinte e cinco açoutes.120

Para manter a vigilância sobre a cidade, mas principalmente sobre seus moradores, todo um conjunto de agentes estava atento e sempre pronto para punir aqueles que não se conformassem às regras urbanas.