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Retomando o caso de Maria Lessa, alguns aspectos a se destacar são o poder e riqueza da família de Maria Lessa. Sendo de linhagem tradicional e poderosa do sertão, filha de antigo capitão-mor, herdeira de terras, respeitada (ou temida) pelos sertanejos, ela correspondia a um determinado modelo de feminilidade que não necessariamente era o que se desejava de fato.

Embora ainda hoje o conceito de família patriarcal vez por outra apareça como modelo pleno de organização familiar no nordeste, é bem verdade que existiram formas muito mais diversas de organização familiar na região51. Devemos

51 Quando se trata de discutir o modelo de patriarcado tão celebrado a partir de Gilberto Freyre, que acabou se estabelecendo como modelo de organização familiar nordestina, é necessário levar em consideração o trabalho de Eni de Mesquista Samara, As mulheres, o poder e a família: São Paulo,

tomar o cuidado de entender que, mesmo quando tratamos de organizações familiares em que predominam arranjos de liderança feminina, o “peso do patriarcado”, enquanto limitador da atuação feminina, continua atuando de forma ativa na reafirmação dos papéis desejados para homens e mulheres.

Em torno do patriarca, o pai de família, foi construído também um conjunto de estereótipos que deviam servir na construção do modelo de homem que se desejava. Na mesma edição nº10 do jornal O Cearense, continua-se a construir perfis idealizados:

Pai

Tu que és pai reflecte na importância do deposito que te foi confiado; He dever teu dar alimentos áquelle a quem deste o ser.

He também de ti que pende que este filho de tua ternura venha a ser para ti objecto de bençaõ ou de maldição, que venha a ser útil ou pernicioso cidadão.

[...]

O filho perverso envergonha seu pai, e o bem morigerado faz a sua gloria. O terreno he teu, não o deixeis sem cultura, tu colherás em proporção da semeadura.

Ensina teu filho a ser obediente, e elle te abençoará; ensina-lhe a ser modesto e naõ terá de envergonhar-se.

Ensina-o a ser grato, e receberá favores; ensina-o a ser caritativo, e conciliará o affecto universal.

[...]

Ensina-o a ser diligente, e suas riquezas augmentaraõ; ensina-o a ser humano e terá coraçaõ nobre. Ensina-lhe as sciencias, e sua vida lhe será util; ensina-lhe a Religiaõ, e sua morte será feliz.52 [grifos nossos]

Este modelo de masculinidade, o do pai provedor, educador e formador do caráter dos filhos, passará a se tornar cada vez mais desejado no correr do século XIX. Embora a figura aterradora53 do patriarca do período colonial ainda vigore como modelo basilar de masculinidade, vale destacar que o pater famílias irá vigorar ainda por todo o século XIX e será ainda reconhecido nos códigos de1830 e 1890.

Em contrapartida a este modelo de masculinidade preponderante nos sertões onde prevaleciam os valores de honra, valentia e agressividade que

século XIX (1989), que confronta este modelo como o modelo único de família, contrapondo à multiplicidade de arranjos familiares, rurais e urbanos, que vão ser comuns em todo o território brasileiro. Se o modelo de família patriarcal de Gilberto Freyre descreve muito bem a família da região açucareira, o mesmo não se pode dizer em relação às demais regiões e aos diferentes estratos sociais.

52 (HBND) O Cearense, Idem, 1846.

53 A expressão “pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados” atribuída a Capistrano de Abreu por Boxer (1969, p.330), ilustra o alcance quase imensurável do pater famílias manifestado inicialmente na família, mas que acabava estendendo-se para o exterior e agindo na manutenção dos privilégios do patriarca na sociedade.

definiam a masculinidade, não foram raras as mulheres que assumiram a liderança de grandes famílias, não só na administração dos bens familiares, mas também nas disputas com outras famílias.

De maneira geral, as mulheres da elite ascendiam a esta situação de poder quando estava ausente uma figura masculina, e usufruíam de uma condição diferenciada em relação às outras mulheres, pois desfrutavam principalmente do status familiar. Tornar-se viúva e proprietária era, entre estas mulheres da elite, uma possibilidade aberta geralmente pela diferença de idade entre os noivos (homens mais velhos casavam com mulheres bem mais jovens) desde que estas sobrevivessem às sucessivas gestações a que eram submetidas (Cf. HAHNER, 2012, p.43-47).

Não foram raras no sertão nordestino as figuras das matriarcas, senhoras de terras, que, na ausência54, ou mesmo com a anuência de seus maridos, conseguiram posições de destaque e influência e desta forma confrontavam o “patriarcado rural” (Cf. ALENCAR, 2011; ROCHA-COUTINHO, 1994). Maria Lessa seria uma dessas mulheres que assumiam posição de poder na região. Embora sua influência fosse limitada pela atuação política do marido, fica claro nos jornais e nos ofícios que tratam do seu caso, os cuidados que se teve de ter com a prisão de tão influente mulher.

Outro exemplo interessante deste poder feminino nos sertões do Ceará pode ser encontrado na figura de D. Fideralina Augusto Lima, nascida na Vila São Vicente Ferrer das Lavras da Mangabeira,no ano de 1832 (viveu até 1919), após a morte do marido – o major da Guarda Nacional, Ildefonso Correa Lima –, assumiu a influência política herdada de seu pai e do falecido marido para organizar em torno de si a política da vila, garantindo à sua família o poder de vida e de morte na região. Fideralina não media esforços para atingir seus objetivos e chegou mesmo a confrontar a própria família – inclusive filhos e irmãs – para garantir no poder aqueles com quem firmara acordos. Geria os negócios com habilidade, sendo escravocrata, vendia os filhos das escravas que tinha para este fim específico. Restam até hoje, na tradição oral de Lavras da Mangabeira, os relatos de suas

54 Para Antonio Otaviano, “[...] a morte do esposo significava legalmente que a mulher assumiria a cabeça do casal, ou seja, o lugar de comando em relação aos filhos e ao patrimônio da família, era a legitimação circunstancial do comando de um feminino, o feminino-mãe” (2004, p.284-285). Assumir “chefia do fogo” ou ser a cabeça do casal permitia às mulheres de todas as camadas sociais – desde que não houvesse um tutor responsável – assumir papel de protagonista na família e fazer valer seus interesses.

crueldades e violências, inclusive sobre o rosário confeccionado com as orelhas de quem ela mandava seus jagunços matar (Cf. HOLANDA; QUEIROZ, 1990).

Como é de se perceber, os mesmos atributos esperados de um “senhor de terras e de homens” puderam ser assumidos por figuras femininas o que nos leva a imaginar qual impacto estas mulheres poderosas tiveram na sociedade da época e de que forma aqueles que se sentiam chocados resolveram atuar para limitar o poder feminino.

Mesmo as mulheres que não chegaram à condição de “matriarcas” exerceram sua parcela de poder na administração dos seus lares e da pequena produção doméstica que permitia relativa autossuficiência das casas, seja no campo, seja na cidade. Entre as mulheres mais pobres, a independência financeira alcançada através das vendas de alimentos, da lavagem de roupa e de outros serviços criava uma menor dependência de homens para a subsistência dos lares e criação dos filhos.