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As regras do gelo e a desordem protˆ onica

Em 1935, Linus Pauling fez algumas suposi¸c˜oes referentes `a estrutura do gelo, conforme apresentado na referˆencia [20]. A primeira suposi¸c˜ao dizia que cada ´atomo de oxigˆenio est´a covalentemente ligado a dois ´atomos de hidrogˆenio a uma distˆancia de aproximadamente 0, 95˚A, formando uma mol´ecula de ´agua, com o ˆangulo H-O-H como sendo aproximadamente 105◦ como na fase gasosa da ´agua. Algo que parece ´obvio hoje em dia, por´em Pauling estava supondo que o gelo ´e composto por mol´eculas de ´agua. Como na Figura 2.6, cada mol´ecula de ´agua est´a orientada de forma que seus ´atomos de hidrogˆenio estejam na dire¸c˜ao de dois dos quatro ´atomos de oxigˆenio, formando assim liga¸c˜oes de hidrogˆenio. As orienta¸c˜oes das mol´eculas de ´agua adjacentes s˜ao tais que apenas um ´atomo de hidrogˆenio permanece ao longo do eixo que passa entre os oxigˆenios.

Figura 2.6: Uma camada da estrutura do gelo projetada sobre o plano (1010).

Na estrutura tridimensional ilustrada na Figura 2.5, a desordem protˆonica ´e dif´ıcil de ser visualizada, por isso, uma visualiza¸c˜ao da estrutura em duas dimens˜oes pode facilitar neste caso, como na Figura 2.6. Existem dois s´ıtios poss´ıveis para os hidrogˆenios em cada liga¸c˜ao e quatro destes s´ıtios adjacentes para cada oxigˆenio. Esta desordem sobre estes s´ıtios satisfazem as duas regras do gelo, tamb´em conhecidas como regras do gelo de Bernal-Fowler [20, 21],

1. Existem dois hidrogˆenios unidos covalentemente a cada oxigˆenio.

2. Existe exatamente um pr´oton entre cada par de oxigˆenios primeiros vizinhos. As viola¸c˜oes destas regras produzem defeitos pontuais chamados defeitos Bjerrum. ´

E importante destacar que estes s˜ao v´ınculos locais, ou seja, a orienta¸c˜ao da mol´ecula em um s´ıtio vai afetar apenas os seus primeiros vizinhos e assim n˜ao ir˜ao influenciar a orienta¸c˜ao dos segundos vizinhos e assim por diante. Portanto, o gelo pode assumir um grande n´umero de estruturas cristalinas, considerando todas as configura¸c˜oes poss´ıveis.

Figura 2.7: As seis poss´ıveis orienta¸c˜oes da mol´ecula de ´agua em um determinado s´ıtio da rede.

Cap´ıtulo 2. Propriedades estruturais do gelo Ih 33

Al´em do mais, Pauling tamb´em supˆos que as energias de todas as configura¸c˜oes poss´ıveis que satisfazem as regras do gelo s˜ao t˜ao aproximadas de forma que nenhum ordenamento em particular fornecer´a uma configura¸c˜ao mais est´avel, ou seja, todas as configura¸c˜oes poss´ıveis s˜ao igualmente prov´aveis.

Considerando todas as poss´ıveis configura¸c˜oes protˆonicas consistentes com as regras do gelo, Pauling concebeu um modelo para calcular a entropia residual. Considerando um cristal de N mol´eculas, tem-se 2N liga¸c˜oes entre estas mol´eculas e um pr´oton. As seis poss´ıveis orienta¸c˜oes da mol´ecula de ´agua na rede do gelo est˜ao representadas na Figura 2.7. Desta forma, tem-se 6N poss´ıveis arranjos para estas mol´eculas. Levando em considera¸c˜ao a segunda regra do gelo que diz que deve haver exatamente um pr´oton em cada liga¸c˜ao, a probabilidade de obter uma liga¸c˜ao correta ´e 1/2. Em outras palavras, a fra¸c˜ao das 6N configura¸c˜oes nas quais todas as 2N liga¸c˜oes s˜ao formadas corretamente ´e

(1/2)2N e o n´umero total de configura¸c˜oes aceit´aveis no cristal ´e

W = 6N 1 2 2N = 3 2 N . (2.1)

Portanto, utilizando a rela¸c˜ao de Boltzmann para o c´alculo da entropia, obt´em-se a entropia residual do gelo,

S0 = N kB ln

 3 2



. (2.2)

Na aproxima¸c˜ao de Pauling, a entropia residual de um mol de gelo ´e 3, 371 J K−1 mol−1. Em uma aproxima¸c˜ao mais detalhada, ao inv´es de considerar que as liga¸c˜oes se espalham como os ramos de uma ´arvore, foi levado em considera¸c˜ao a presen¸ca de circuitos fechados, e desta forma, Nagle obteve S0 = 3, 4091 ± 0, 0008 J K−1 mol−1,

como apresentado na referˆencia [22]. Haida e colaboradores obteram experimentalmente a entropia residual do gelo como sendo 3, 41 ± 0, 19 J K−1 mol−1 atrav´es de estudos calorim´etricos, mostrando um resultado experimental em bom acordo com o modelo de Pauling, de acordo com a referˆencia [23]. Portanto, muitas propriedades do gelo s˜ao uma consequˆencia do desordenamento de pr´otons. Por exemplo, sabe-se que a mol´ecula de ´

agua possui um momento de dipolo e assim pode ser reorientada atrav´es da aplica¸c˜ao de um campo el´etrico. Por outro lado, o processo de polariza¸c˜ao no gelo ´e muito lento, pois as mol´eculas n˜ao est˜ao livres para se reorientar, a n˜ao ser que as regras do gelo sejam localmente violadas. Desta forma, a estrutura do gelo Ih tem o momento de dipolo

Cap´ıtulo

3

Contornos de gr˜ao no gelo

Na natureza, um cristal perfeito ´e apenas uma idealiza¸c˜ao. Do ponto de vista energ´etico, uma estrutura cristalina perfeita ´e a melhor op¸c˜ao no limite de baixas tempe- raturas. Neste limite, os ´atomos se movem muito pouco nos s´olidos, sendo assim dif´ıcil de eliminar as imperfei¸c˜oes introduzidas no cristal durante o seu crescimento, tratamento e uso. Portanto, o estudo dos defeitos em qualquer material ´e muito relevante, pois retrata uma situa¸c˜ao pr´oxima da realidade, e al´em disso, permite com que diversas propriedades dos materiais sejam controladas. Desta forma, pode-se dividir o estudo dos defeitos de acordo com sua dimens˜ao: 0D (dimens˜ao zero) - defeitos pontuais como vacˆancias, in- terst´ıcios e impurezas; 1D - defeitos lineares como discordˆancias que se tratam de linhas nos quais o padr˜ao cristalino ´e quebrado; 2D - defeitos planares sendo eles as superf´ıcies livres e contornos de gr˜ao. Nas pr´oximas se¸c˜oes ser˜ao discutidos apenas informa¸c˜oes refe- rentes aos contornos de gr˜ao, que no caso do gelo, pouco se sabe sobre a estrutura dessa regi˜ao.

3.1

Descri¸c˜ao cristalogr´afica dos contornos de gr˜ao

O contorno de gr˜ao em um material cristalino ´e a regi˜ao que separa dois cristais ou gr˜aos. Estes gr˜aos diferem nas suas orienta¸c˜oes e desta forma, o contorno de gr˜ao representa uma regi˜ao de transi¸c˜ao. A fim de descrever um contorno de gr˜ao cristalo- graficamente, um determinado n´umero de vari´aveis devem ser especificadas. Em geral, o contorno de gr˜ao pode ser caracterizado completamente atrav´es de cinco parˆametros

Cap´ıtulo 3. Contornos de gr˜ao no gelo 35

Figura 3.1: Vari´aveis que definem um contorno de gr˜ao. xA, yA, zA e xB, yB, zB s˜ao os

eixos das coordenadas paralelas `as dire¸c˜oes cristalogr´aficas nos gr˜aos A e B respectiva- mente. O ´e o eixo de rota¸c˜ao e θ ´e o ˆangulo de rota¸c˜ao necess´ario para transferir ambos os gr˜aos para uma posi¸c˜ao idˆentica. ˆn determina a orienta¸c˜ao do plano de fronteira entre os gr˜aos.

independentes que s˜ao os graus de liberdade (DOF, sigla em inglˆes para degrees of free- dom), os quais providenciam informa¸c˜oes sobre como preparar um bicristal, por exemplo. Trˆes graus de liberdade especificam a desorienta¸c˜ao m´utua entre os gr˜aos A e B, conforme esquematizado na Figura 3.1. Esta desorienta¸c˜ao ´e representada por uma rota¸c˜ao, na qual traz ambos os gr˜aos em perfeita combina¸c˜ao. Desta forma, a desorienta¸c˜ao ´e definida pelo eixo de rota¸c˜ao O (2 DOFs) e o ˆangulo θ (1 DOF). A orienta¸c˜ao do contorno de gr˜ao entre estes gr˜aos desorientados ´e definida pelo vetor normal ˆn ao plano de fronteira (2 DOFs).

Al´em dos cinco graus de liberdade macrosc´opicos independentes j´a mencionados, ´e necess´ario adicionar outros trˆes parˆametros microsc´opicos que representam um vetor ˆT caracterizando uma transla¸c˜ao de corpo r´ıgido de ambos os gr˜aos um em rela¸c˜ao ao outro, paralelos e perpendiculares ao plano de fronteira. Estas transla¸c˜oes s˜ao independentes dos graus de liberdade macrosc´opicos, e na realidade s˜ao controladas por motivos energ´eticos e n˜ao podem ser escolhidas arbitrariamente, pois para cada contorno de gr˜ao, algumas transla¸c˜oes existem de forma a gerar um equil´ıbrio das estruturas atˆomicas do contorno de gr˜ao sob condi¸c˜oes externas, tais como temperatura, press˜ao e composi¸c˜ao qu´ımica. Portanto, os cinco graus de liberdade que s˜ao necess´arios para descrever completamente a

(a) (b)

Figura 3.2: Esquema ilustrando os ˆangulos de desorienta¸c˜ao no contorno de gr˜ao. A Figura 3.2a mostra o ˆangulo de inclina¸c˜ao e a Figura 3.2b ilustra o ˆangulo de tor¸c˜ao. Ambas Figuras retiradas da referˆencia [24].

cristalografia de um contorno de gr˜ao, implicam em uma grande quantidade de diferentes contornos de gr˜ao. Desta forma, ´e preciso categoriz´a-los em grupos de acordo com as rela¸c˜oes entre os graus de liberdade. Assim, a rela¸c˜ao entre o eixo de rota¸c˜ao O e o vetor normal ao plano de fronteira ˆn levam a defini¸c˜ao dos contornos de gr˜ao inclinados ou tilt grain boundaries (O ⊥ ˆn) e dos contornos de gr˜ao torcidos ou twist grain boundaries (O || ˆn), como ilustrado nas Figuras 3.2a 3.2b respectivamente. As interfaces que n˜ao se encaixam em nenhuma destas duas rela¸c˜oes, fazem parte do grupo dos contornos de gr˜ao mistos ou mixed grain boundaries. Quando o plano de fronteira representa o plano da simetria do espelho das redes cristalinas de dois gr˜aos, esse plano ´e descrito pelos mesmos ´ındices de Miller e ent˜ao esse contorno ´e chamado sim´etrico. Wolf e Lutsko propuseram na referˆencia [25], uma categoriza¸c˜ao sistem´atica dos contornos de gr˜ao que est´a resumida na Tabela 3.1. ´E importante destacar que um contorno de gr˜ao sim´etrico s´o pode ser obtida no caso dos pure tilt grain boundaries.

Tabela 3.1: A categoriza¸c˜ao dos contornos de gr˜ao atrav´es do esquema baseado na rela¸c˜ao entre os ´ındices de Miller e os planos de contato individuais em um bicristal e o ˆangulo de tor¸c˜ao ϕ. Tabela retirada da referˆencia [26].

Symmetrical tilt grain boundary {h1k1l1} = {h2k2l2} and ϕ = 0

Asymmetrical tilt grain boundary {h1k1l1} 6= {h2k2l2} and ϕ = 0

Twist grain boundary {h1k1l1} = {h2k2l2} and ϕ 6= 0

Cap´ıtulo 3. Contornos de gr˜ao no gelo 37

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