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As relações com a família empregadora

CAPÍTULO 1: CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOBRE CULTURA ESCRITA E SOBRE O EMPREGO DOMÉSTICO

1.2. Estudos sobre empregadas domésticas 1 Problematização

1.2.4 Características do trabalho doméstico

1.2.4.3. As relações com a família empregadora

As relações estabelecidas com a família empregadora provavelmente influenciam nas respostas às perguntas feitas acima. Dessa forma, será tratado neste item o que as pesquisas têm apontado sobre esse assunto. Posteriormente, nos capítulos 2 e 3, serão explicitadas as relações que as empregadas investigadas têm com seus patrões e as possíveis influências dessas relações em termos de relacionamento com o mundo da escrita.

Os estudos recentes que abordaram as relações das empregadas domésticas com seus empregadores recorrem, freqüentemente, às pesquisas anteriores que denunciam o caráter paternalista e maternalista desse tipo de relação. Na explicação de Vidal (2007), esses estudos tendem a caracterizar as relações entre patrões e empregadas como relações nas quais os empregadores pretendem exercer uma função maternal ou paternal frente a suas empregadas (VIDAL, 2007). Entretanto, os estudos atuais (inclusive o de Vidal) mostram que o quê era visto de forma negativa pelos intelectuais é considerado pelas empregadas domésticas como uma vantagem.

Brites (2000) diz, por exemplo, que:

60 Vale ressaltar que se propõe o uso da noção de conflito cultural como algo explicativo para a relação entre o

O que une os argumentos destes estudos é a percepção de que atitudes dos patrões em relação às empregadas domésticas tendem a ser pouco “profissionais”. Dizendo de outra forma: os patrões não desenvolvem relações de contrato modernas. O problema que minha pesquisa de campo introduziu nesta discussão (a qual não deixa de ser pertinente) é que as mulheres, empregadas domésticas por mim investigadas, encontravam no serviço doméstico particularidades que o tornavam vantajoso em relação a outras ocupações. As vantagens por elas destacadas coincidem justamente com aqueles fatores que os pesquisadores da condição feminina consideram como as raízes da subordinação que o serviço doméstico acarreta: relações personalistas e clientelistas estruturadas na organização da família patriarcal (BRITES, 2000, p.11).

Assim, baseando-se em seus dados empíricos, a autora constatou que, para as empregadas, “nenhuma atitude das patroas poderia ser mais revoltante do que a ‘mesquinharia’” (BRITES, 2000, p.197). As doações de roupas usadas, a permissão para levar para casa as sobras de comida, a ajuda financeira recebida para comprar um remédio eram percebidas como vantagens do serviço doméstico. Brites (2000) acredita que esse tipo de relação talvez seja uma solução

encontrada pela população pobre para enfrentar momentos de crise, em uma sociedade na qual o trabalho manual é barato e não garante assistência social de qualidade, além de ter os direitos trabalhistas constantemente burlados (BRITES, 2000, p.54).

As vantagens de atitudes consideradas paternalistas também são mencionadas por Vidal (2007). Para ele, as atitudes paternalistas, além de ser um instrumento que muitos empregadores usam para assegurar sua dominação, tem como resultado uma “duplicidade compartilhada” da qual empregadores e domésticas podem tirar vantagem (VIDAL, 2007, p.197).

Entre as pesquisas lidas, Brandt (2002) é quem apresenta uma postura mais diferente. As situações das empregadas do serviço doméstico da cidade São Paulo pesquisadas por ela caracterizam-se, de modo geral, por relações de contrato de trabalho modernas. Ela percebeu apenas em poucos casos a presença de relações paternalistas. A autora afirmou:

As noções de empregadas e empregadoras(es) sobre suas relações são marcadas, em primeiro lugar, pela consciência profunda da diferença de classes entre eles. Do ponto de vista dos empregadores, um sentido de “culpa social” torna a relação em certos momentos opressora. Em poucos casos, quando a carência da empregada é extrema e/ou quando ela mesma força a relação nesse sentido, se estabelecem elos paternalistas. No conjunto, no entanto, tanto empregadas como empregadores lidam com a relação de emprego da perspectiva de uma relação contratual moderna. A despeito de diferenças

advindas de traços de personalidade, a grande maioria dos entrevistados de ambos os grupos demonstrou valorizar a formalização da relação, o que significa se afastar das relações “promíscuas”, em que a ilusão de intimidade e amizade serve para a exploração da empregada. Não que esse seja um movimento tranqüilo (BRANDT, 2002, p.161).

É importante dizer que as relações estabelecidas entre empregadas domésticas e patrões são permeadas por afetividade. De um lado, como já foi mencionado, essa presença é relacionada ao tipo de ambiente no qual o trabalho se desenvolve, o ambiente doméstico. Por outro lado, a afetividade também é constantemente relacionada ao paternalismo61.

O trabalho de Vidal (2007) abordou de maneira interessante esse tema. Para ele, existem dois ângulos diferentes em que a afetividade pode ser observada na relação entre empregadores e domésticas: a comum humanidade e a maldade. Na comum humanidade, há o compartilhamento de uma mesma emoção, que é mais forte do que a hierarquia e a diferença social (VIDAL, 2007, p.185). A partilha de emoções relacionadas às situações de vida tais como o casamento, a morte de um próximo, a doença e o divórcio são exemplos da expressão desse ângulo da afetividade. O pesquisador ressaltou que essas situações não são vividas de um modo igualitário pelas duas partes, já que ele observou que o investimento emocional das domésticas é sempre mais importante do que o dos empregadores. Dessa forma, sobre a amizade entre patroas e empregadas, ele diz:

(...) les bonnes voient avant tout dans l’amitié des patronnes la reconnaissance de leur commune humanité tout en estimant qu’elle est compatible avec des droits et des obligations différents selon la position occupée dans la relation; alors que les patronnes la considèrent comme un moyen d’entretenir une relation de confiance mutuelle sans pour autant renoncer à l’idée d’une différence radicale entre les deux parties (VIDAL, 2007, p.193)62.

Os comportamentos de maldade, por sua vez, também podem ser vivenciados por empregadores e empregadas. Quando eles são originários dos patrões, geralmente estão associados às verbalizações que insistem na inferioridade das domésticas, como por exemplo, nas

61 Vidal (2007) discorda da relação atribuída entre paternalismo e afetividade e diz que ela é feita na falta de uma

explicação melhor para a afetividade.

62 (...) as domésticas percebem, antes de tudo na amizade das patroas, o reconhecimento de sua humanidade comum e

ao mesmo tempo estimando que ela é compatível com os direitos e as obrigações diferentes segundo a posição ocupada na relação, enquanto as patroas a consideram como um meio de manter uma relação de confiança mútua sem, pro essa razão, renunciar a idéia de uma diferença radical entre as duas partes. (Tradução sob minha responsabilidade)

humilhações repetitivas e na ironia sobre o baixo nível de escolarização, sobre a ingenuidade e sobre a incapacidade de cumprir corretamente uma tarefa. A maldade também é exercida pelas empregadas, quando elas atormentam, por exemplo, as crianças pequenas e os idosos das famílias para as quais trabalham (VIDAL, 2007, p.188).

É interessante mencionar a grande importância atribuída à afetividade pelas domésticas pesquisadas por Vidal (2007)63. A presença dela nas relações com as patroas é percebida pelas empregadas como sinal de um tratamento humano. Nas palavras do autor:

L’importance accordée par les travailleuses domestiques à l’affectivité dans les relations avec l’employeur exprime par ailleurs la demande de ces femmes de ne pas voir dénier leur humanité par des comportements qui les ignorent, les infériorisent ou les dévalorisent (VIDAL, p.165-166)64.

Segundo o mesmo autor, tamanha é a importância da afetividade que muitas empregadas demonstram um sentimento de gratidão para com os empregadores e se sentem orgulhosas com as manifestações de consideração expostas por esses últimos.

Vidal (2007) também descreve estratégias que patrões e empregadas domésticas utilizam para se relacionarem. Os patrões, por um lado, procuram realizar negociações constantes com as domésticas. Eles compreendem as situações nas quais a empregada precisa faltar ao serviço ou chegar mais tarde, devido aos problemas pessoais. A compreensão desse tipo de situação tem o objetivo de manter uma boa relação com a empregada. Entretanto, apesar de se mostrarem muitas vezes compreensíveis, “Trois mots (...) organisent le discours des patrons sur la façon dont il faut gérer les relations avec les domestiques: la place (o lugar65), la limite (o limite) et l’abus (o abuso)”66 (VIDAL, 2007, p.178). Ou seja, no ponto de vista dos patrões, a empregada deve conhecer seu lugar e os empregadores devem saber colocar limites para evitar situações de abuso por parte delas. O abuso é visto pelos patrões nas mudanças de horários de trabalho e pedidos

63 As empregadas domésticas pesquisadas por mim chegaram a relatar histórias de pedidos de demissão devido ao

tratamento pouco afetuoso estabelecido com as famílias empregadoras.

64

A importância atribuída pelas trabalhadoras domésticas à afetividade nas relações com o empregador exprime, aliás, a demanda dessas mulheres de não ver negada sua humanidade pelos comportamentos que as ignoram, inferiorizam-nas ou as desvalorizam (Tradução sob minha responsabilidade).

65 As traduções apresentadas entre parênteses foram feitas pelo autor.

66 Três palavras organizam os discursos dos patrões sobre a maneira que eles fazem para gerir as relações com as

constantes de ajuda. Os patrões também dizem ser necessário saber dar ordens. Os pedidos devem, segundo eles, ser feitos com amabilidade67.

Por outro lado, as empregadas também relatam as estratégias que utilizam para se relacionar com as famílias empregadoras. Entre as habilidades principais, que exige trabalho emocional, está decifrar o humor dos membros da família empregadora. “On doit sentir l’atmosphère68” (VIDAL, 2007, p.179). A partir da observação do humor dos patrões, as domésticas aprendem a se comportar: se as patroas estão de mau humor, ficam quietas e desenvolvem os seus trabalhos; se as patroas estão de bom humor, aproveitam para fazer alguma solicitação, como por exemplo, o adiantamento do pagamento.

A capacidade de observação também é demandada às domésticas para que possam ser estabelecidos bons relacionamentos com a família empregadora. A observação resulta no conhecimento da maneira própria de organização da casa e das exigências específicas dos patrões (VIDAL, 2007, p.180).