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CAPÍTULO 3: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA COTIDIANAS DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS

3.1. As práticas de leitura e escrita constituintes ao trabalho doméstico em ambiente letrado Práticas de leitura ou de

3.1.2. As listas de compras

Diferentemente dos recados e bilhetes, a escrita de listas de compras e a realização das compras têm uma variação maior entre cada um dos lares pesquisados. A lista pode ser escrita pela patroa e lida pela empregada que realiza as compras; pode ser escrita pela empregada e lida

pela patroa no momento das compras; pode ser ditada pela empregada e escrita pela patroa que também realiza as compras; ou, ainda, pode ser escrita pela empregada e lida pelos patrões, quando eles fazem as compras, ou por ela própria, quando faz as compras.

Graça, por exemplo, lê a lista de compras de frutas, legumes e verduras escrita pela patroa semanalmente. É de sua responsabilidade realizar a compra desses itens no hortifrutigranjeiro próximo à residência da família empregadora. Graça justifica a necessidade da lista devido à variação do cardápio. Como o que será preparado para o almoço é uma escolha da patroa, é ela também que escolhe, e escreve, o que deverá ser comprado. Vi duas dessas listas, nas quais constavam os nomes dos alimentos e, raramente, a quantidade deles.

As compras mensais são realizadas por T. sem o apoio de uma lista. Ela diz já saber o quê e quanto comprar e diz sempre freqüentar o mesmo supermercado para facilitar o conhecimento da distribuição dos produtos nas prateleiras. A compra de carnes é feita pelo telefone; Graça as recebe, recolhe o recibo e realiza o pagamento.

Suely, por sua vez, escreve a lista de compras dos itens que precisam ser comprados (alimentos e produtos de limpeza) e C. realiza as compras. Ela escreve a lista na medida em que nota a falta ou a presença em pouca quantidade de algum item. Quando a patroa vai fazer as compras, já sabe onde encontrar a lista escrita paulatinamente pela empregada.

S: (...) eu faço a listinha...e vou deixando ali na varanda...quando tá faltando mais coisas...que eu vejo que tá mais urgente...aí eu falo com ela...mas eu vou só fazendo a lista...e às vezes ela também me pergunta...ó Suely...hoje eu vou no Epa [supermercado]...tá precisando de alguma coisa? Aí quando tem a lista pronta...ela traz tudo de uma vez... (Entrevista 2 – 05/12/2007)

Nazira é a única empregada pesquisada que não escreve listas de compras para a patroa e nem lê listas de compras deixadas pela patroa. Entretanto, participa da escrita da lista de verduras, legumes e frutas de uma maneira muito particular. Ela dita para M. os alimentos que estão faltando na geladeira. Acredito que o ditado pressupõe um mínimo de entendimento de como uma lista é escrita: nomes dos alimentos seguidos da quantidade calculada. Além disso, é desejável que os alimentos sejam ditados em uma seqüência lógica (verduras, legumes e frutas, por exemplo). Uma lista desordenada pode resultar em muitos deslocamentos dentro do estabelecimento comercial onde serão feitas as compras ou então uma leitura não linear (é preciso correr o olho em toda a lista para prever o que será comprado em cada seção). Por outro lado, a

lista da compra mensal é feita exclusivamente pela patroa, que observa, nos armários, aquilo que está faltando.

A situação do ditado da lista de compras feito por Nazira merece uma atenção especial, já que percebemos nesse evento a mediação do outro. Para que a escrita da lista de compras possa se efetivar, as participações da empregada e da patroa são necessárias. A primeira é conhecedora do conteúdo que deve ser escrito e a segunda possui os conhecimentos do código escrito. Embora a situação de ditado proporcione certa diluição da tensão presente no momento dessa prática (afinal de contas, se a empregada tivesse que escrever, ela própria, a lista de compras, teria maiores apreensões, dada a sua dificuldade para a escrita), ela não consegue suprimir a hierarquização dos saberes. Nazira dita porque não possui as habilidades de escrita suficientes para a escrita da lista. Se a hierarquia dos saberes estivesse mais dissolvida, provavelmente o ditado e a escrita da lista teriam os seus protagonistas alternados: ora a empregada ditaria, ora a patroa ditaria. Assim, pode-se dizer que a mediação do outro, diferentemente do caso dos leitores/ouvintes do cordel (1930-1950), pesquisados por GALVÃO (2002) não conseguiu diminuir de maneira considerável a tensão estabelecida entre uma pessoa pouco letrada e a escrita. Vale ressaltar, ainda, que, também de maneira distinta do cordel, as pessoas envolvidas nessa relação, além de possuírem conhecimentos diferentes em relação à escrita, ocupam lugares sociais diferenciados.

Na pesquisa sobre a escrita doméstica relatada anteriormente, o ditado também aparece nas análises do pesquisador. No caso francês, de maneira mais explícita nas classes superiores, Lahire (1997) afirma que os homens costumam ditar, por exemplo, para as suas mulheres, os conteúdos das cartas administrativas. Diferentemente da situação de Nazira, o caso analisado pelo pesquisador evidencia que quem dita detém o poder.

Cleonice, por sua vez, escreve uma lista de compras mensal, para orientar a compra no supermercado de alimentos e produtos de limpeza que são consumidos pela família. Essas compras costumam ser realizadas por ela e um de seus patrões. Em raros momentos, ela faz as compras sozinha, apenas quando os dois patrões estão muito ocupados. Cleonice requer, por escrito, uma quantidade menor para aqueles produtos que ainda estão presentes na dispensa, embora em quantidade insuficiente para o mês. Para os produtos faltosos, Cleonice requer uma quantidade maior. Ela também diz aproveitar as promoções, o que significa que a quantidade a ser comprada pode ser alterada no momento das compras, em função do preço e da possibilidade

de estoque. É interessante notar que a empregada diz já saber o que precisa comprar e declara que se as compras fossem feitas apenas por ela, não haveria necessidade de lista. Tal fato pode demonstrar uma maneira específica de a família gerenciar as tarefas domésticas que se diferencia do modo como ela gostaria de fazer.

P: Você vai com ela fazer compra? Quem faz...faz lista...como é que é?

C: Eu sempre faço a lista...às vezes eu vou com o S....às vezes...e às vezes eu vou com a A.... quando a A. vai...mas quem mais vai mesmo é o S....

P: Mas a lista é você que faz? C: Hãrran...

P: Você faz como? Pelo o que tá faltando...pelo o que usa mais...como é que é? C: A lista eu coloco de tudo...tudo...o que tem eu coloco menos...porque sempre...aquelas coisas tá sempre faltando mesmo...mas tem coisa que/ alguma coisa tá na oferta...aí compra aquele tantão lá...aí chega na outra vez que vai fazer compra eu já não peço mais...eu não peço aquilo porque já tem...assim...eu não tenho mania de.../ eu não gosto de ter coisa sobrando demais...mas também nem faltando...mas eu já acostumei com as quantidades...se eu fizer eu faço de cor, né...lá em casa eu fazia de cor...mas o S. não faz de cor não...(risos)...

P: Você ia pro supermercado sem lista? Lá na sua casa? C: Hãrran... (Entrevista 1 – 16/06/2007)

Três vezes por semana, Cleonice realiza as compras de verduras, legumes e frutas para a família empregadora. Ela diz não fazer lista para essas compras. O dinheiro para isso é entregue pelo patrão mensalmente. Ela realiza o pagamento e guarda os recibos.

Baseando-me na pesquisa de Lahire (1993), considero que, entre as outras práticas de escrita domésticas descritas, a escrita de listas de compras ocupa uma posição particular, na medida em que possibilita um nítido rompimento com o senso prático. As empregadas pesquisadas dizem freqüentemente que não precisariam de lista para fazer as compras para a casa da patroa. Relatam saber sempre de memória o que precisa ser comprado, talvez porque, além de estarem envolvidas com as tarefas domésticas em tempo integral, são profissionais experientes. Ou seja, o senso prático incorporado por elas seria suficiente para que desempenhassem a ação de comprar sem a necessidade de antecipar, por meio da escrita, o ato da compra. Entretanto, como em muitas situações não são elas que fazem as compras, o pedido dos patrões se torna justificável e o senso prático que sempre funcionou para elas (em suas residências) é rompido. O trecho abaixo explicita de maneira precisa o controle sobre a ação proporcionado pelas listas:

(...) les listes (de choses à faire ou à dire, de choses à emporter en voyage, de commissions...) sont souvent des moyens de fixer des actions futures, des programmes d’actions, des plans. Les listes de commissions, par exemple, établissent parfois des programmes de déplacements et constituent ainsi des "plans dont le principe organizateur est matériellement et objetivement présenté, ce qui les rend plus aptes à regler l’action, plus durables, plus complets et plus formels". Elles pemettent ainsi de "gagner du temps", d’économiser ses pas (...) et de ne "rien oublier" (LAHIRE, 1993, p.122)158.