• Nenhum resultado encontrado

Leitura e escrita relacionadas às vendas de cosméticos

CAPÍTULO 3: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA COTIDIANAS DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS

G: Ah as histórias nossa senhora em mente mesmo eu tenho um livro que eu li sobre os Dez Mandamentos sabe? aqueles assim: não roubar não cobiçar a

3.4.4. Leitura e escrita relacionadas às vendas de cosméticos

Das quatro empregadas investigadas, três são vendedoras de cosméticos concomitantemente ao trabalho que desenvolvem como domésticas. Conforme foi dito, Cleonice é consultora direta de uma grande empresa de cosméticos brasileira, a Natura. Ela vende esses produtos principalmente para a família empregadora, para os amigos dos patrões e para seus colegas da escola. Além disso, uma colega de classe, em acordo com Cleonice, vende os cosméticos e solicita que Cleonice faça o pedido à empresa em seu nome. Graça e Suely não são consultoras diretas. Do mesmo modo como faz a colega de classe de Cleonice, elas são vendedoras que não têm cadastro próprio nas empresas e utilizam um consultor como mediador. Nesses casos, a comissão sobre a venda é menor. Independente da maneira como atuam (consultoras diretas ou não), a venda de cosméticos é uma atividade de complementação de renda e também uma maneira de ampliar o círculo social que é mediada pela leitura e pela escrita. O modo como registram as vendas e os débitos com as empresas são diferentes, mas todos eles envolvem registros escritos.

Graça vende perfumaria Cazo. Para ter acesso aos produtos, tem um consultor da empresa como mediador191.Ela anota em um carnê que recebe da empresa de cosméticos o nome da pessoa que fez o pedido, uma referência (ex: Inês do sacolão), o nome do produto pedido e o valor a ser pago. Vi um desses carnês e percebi que, em alguns casos, ela não destaca a parte que deveria ser destinada ao cliente. Ela disse que para as pessoas pouco conhecidas, destaca o papel do carnê e fica apenas com o canhoto. Esse é um indício de que a oralidade ocupa um papel preponderante nas vendas, quando se tratam de pessoas muito conhecidas, e, logo, pessoas de

191 Ela conheceu o consultor da Cazo no edifício no qual a família empregadora morava antes de residir no atual

confiança, que não precisam de um papel para “honrar” com a dívida. O consultor, por outro lado, para garantir o recebimento do dinheiro dos produtos entregues para ela, pede que assine uma promissória, que deve ser paga em até 30 dias.

Suely vende cosméticos da empresa Belladonna. Segundo relatou, a consultora (por meio da qual tem acesso aos produtos) deixa alguns produtos com ela e junto com eles uma lista onde há registrado os nomes dos cosméticos, a quantidade deles e o valor. É com essa lista que Suely acompanha o que foi vendido e o dinheiro recebido. Após aproximadamente um mês, a consultora retorna para recolher o pagamento e os produtos não vendidos.

No caso de Cleonice, o trabalho com a venda de cosméticos também é acompanhado de registros escritos. Ela precisa escrever os produtos vendidos anteriormente à comunicação dos pedidos à empresa pelo telefone. A tabela na qual Cleonice registra as vendas foi criada por ela própria, tendo em vista a letra muito pequena da tabela fornecida pela empresa192. Ela, então, registra o código do produto, a página onde ele se encontra na revista de divulgação, quantos pontos o produto vale (é preciso acumular um certo número de pontos antes de fazer o pedido à empresa) e qual é o nome da pessoa que fez o pedido.

Além de se envolver com essa prática escrita para a venda dos cosméticos, Cleonice realiza algumas contas para calcular o valor dos produtos vendidos. Se ela vende à vista, reduz o preço do produto para o cliente, reduzindo também a sua comissão. Se o cliente faz uma compra grande, ela divide o valor para o cliente em mais de uma parcela. Quando uma colega vende para ela, calcula o valor das vendas separadamente, de modo a cobrar justamente a parte das vendas feita pela colega.

Cleonice também diz folhear a revista de divulgação dos produtos logo após o seu recebimento. Ela justifica que precisa saber das promoções do período para realizar melhores vendas. Além disso, destaca a necessidade de aprender sobre os produtos lendo193 as informações presentes na revista, para, então, informar os clientes sobre efeitos ou vantagens de determinado produto. Todas essas práticas de leitura e escrita relacionadas à venda dos cosméticos estão relatadas nos depoimentos abaixo:

192 A opção por Cleonice de elaborar sua própria tabela também pode estar relacionada à dificuldade de lidar com

esse gênero textual da maneira como ele é organizado pela empresa. O fato de conter todos os produtos disponíveis registrados (organizados por seções) evidencia que a tabela proposta pela empresa é mais complexa do que a tabela criada por ela.

193 Cleonice também procura conhecer as informações sobre os produtos que vende por meio da participação em

reuniões de consultoras promovidas pela empresa de cosméticos. Talvez a reunião (situação predominantemente oral, embora com apoio na escrita) funcione para tornar menos árida, ou mais sedutora a leitura da revista.

P: Pra quem que você vende Natura? C: Pra qualquer pessoa...

P: Traz pra escola...

C: Trago...a A. e o S. [patrões] compram...que nem agora eu entrei na academia...a revista já tá rodando a academia...entendeu...que nem aqui na escola eu faço consórcio da Natura...à vista eu dou 15% de desconto...a prazo eu divido...se a pessoa comprar R$150,00 eu divido...

P: Você gosta de mexer com essa parte...assim de...marcar a tabela...ligar/ C: Não...eu não marco na tabela não...eu pego uma folha de caderno/ eu não tenho paciência...às vezes eles mandam uma folha pra gente fazer o pedido, né...a tabela...eu não tenho paciência de usar aquilo ali não...o S. até falou comigo...eu tô pensando em ir no/ oftalmologista que fala? Que é o de olho? P: É

C: E não é/...porque eu tô tendo dificuldade com letra miudinha...mas eu gosto de fazer...eu fazer...eu pego a folha do caderno/ eu compro um caderno assim mais barato...tiro aquele arame e solto todas as folhas...aí eu coloco assim...(...) código tal...página tal...pontos tal...e o nome da pessoa na frente...eu faço isso tudinho numa folha...eu acho que tem que ser do meu jeito pra mim entender... P: E você gosta de fazer isso?

C: Demais...eu gosto... (Entrevista 2 – 26/09/2007)

P: Então tem a Natura... que você tem que escrever tudo isso...

C: Fora se a pessoa me pergunta: Você tem isso? Por isso que você tem que ler a revista da Natura...até a Natura você é obrigada a ler...como é que você vai fazer propaganda de uma coisa/ vai apresentar uma coisa que você não/ não sabe se tem na revista? Você tem que conhecer a revista todinha...as pessoas sempre perguntam...(...) (Entrevista 5 – 09/11/2007, ênfase dela)

As descrições feitas acima permitem dizer que as práticas de leitura e de escrita que acompanham as vendas são necessárias por dois motivos principais. O primeiro deles refere-se à não disponibilidade dos produtos no momento da venda. Para ter acesso aos cosméticos, é preciso requisitá-los à empresa de uma só vez (no caso de Cleonice, pelo telefone; e no caso de Graça, nos momentos de visita que faz à casa do consultor ou por meio de um telefonema a ele) e, para isso, o apoio na escrita parece fundamental. Afinal de contas, guardar na memória todos os produtos vendidos, bem como a quantidade deles, pode se constituir um risco. Um esquecimento poderia, por exemplo, implicar uma venda a menos (e, talvez, um cliente a menos). Por outro lado, o pedido de um produto não requisitado por algum cliente pode resultar em dívida para si própria. O segundo motivo relaciona-se à forma de pagamento. As empregadas não recebem o pagamento imediatamente após a entrega do produto. Assim, para que não haja prejuízo ou enganos no momento de cobrar pela mercadoria vendida, é preciso escrever o nome do cliente que já realizou o pagamento. Vale ressaltar que essas escritas, de modo geral, são

feitas pelas empregadas e lidas por elas mesmas. Essa característica faz com que sejam vividas com mais liberdade. É com essa liberdade que Cleonice cria uma tabela que atende aos seus interesses e que Graça cria um espaço no canhoto para escrever a referência do cliente.

Segundo Hébrard (2000), as escritas dos comerciantes são antigas e não estiveram obrigatoriamente sob rígida organização. Ele se refere à pesquisa de Petrucci (1978) na qual o pesquisador investigou um livro de contas (que era constituído por folhas rapidamente costuradas) de uma mulher analfabeta, proprietária de uma charcutaria, em meados do século XVI. Sobre o livro de contas, o autor afirma:

Maddalena é analfabeta, mas Armando Petrucci (1978) mostrou num artigo exemplar que a impossibilidade de escrever não impede de se inscrever completamente na cultura da escritura, bastando para tanto que se aceite a delegar o isso da pena àqueles que são capazes de fazê-lo. Nessa caderneta, nada menos do que cento e duas pessoas de todas as categorias profissionais e sociais escrevem por Maddalena. O uso da delegação da escritura faz assim do espaço geográfico comercial um lugar relativamente aberto, ocasião de numerosas trocas e de uma difusão informal de práticas de escritura (HÉBRARD, 2000, p.48).

Nos casos analisados, as empregadas não delegam a outras pessoas a responsabilidade do registro, mas utilizam suas próprias habilidades de escrita para fazê-lo. Como foi dito acima, a liberdade que possuem na organização desses escritos (e tem como destinatário elas próprias) fazem as escritas comerciais se caracterizarem como autônomas.