• Nenhum resultado encontrado

2. PERSPECTIVAS TÉORICAS: GÊNERO, EMPODERAMENTO E

2.5 As relações de gênero na agricultura no Brasil

No meio rural brasileiro, como em toda formação histórica do Brasil, a dominação masculina foi estruturada no princípio singular das relações de dominação/submissão, favorecendo a supremacia masculina sobre a feminina, e beneficiando os homens de formas múltiplas no espaço social dos agentes envolvidos, estabelecendo diferenças, muito visíveis e, às vezes, quase imperceptíveis, e essas diferenças se revelam nos universos sociais dos homens e das mulheres, como uma linha tênue, uma demarcação mística18 que rege a interação e as relações de poder entre estes.

Segundo Hernández (2006), a categoria de gênero é definida por diversos autores e autoras como uma construção cultural, social e histórica que permite que sejam identificados e visualizados aspectos culturais e relações de poder entre homens e mulheres e o quanto estas são relevantes e repercutem nas ações políticas (LAMAS, 1996; SCOTT, 1996). Mas Bourdieu (1989), nas suas interpretações sobre estruturas simbólicas (habitus), fundamenta as construções subjetivas das relações de gênero. Para muitos estudiosos, os parâmetros de debate ideológico e simbólico acerca da preferência pelo masculino, funcionam como uma forma de inculcação, uma imposição de superioridade, que podem ser de precedência religiosa e estas categorizaram as mulheres como indivíduos inferiores nas esferas jurídicas, políticas e econômicas.

O meio rural brasileiro, devido ao seu tipo de colonização e ao sistema patriarcal, instituiu-se por muito tempo como uma estrutura de divisão sexual do trabalho, que fortaleceu a invisibilidade do trabalho da mulher e alimentou a

18 O termo agente foi utilizado por Bordieu (2010 “a”) em A Dominação Masculina e, em seguida, o

mesmo autor, na mesma obra, cita a linha de marcação mística, segundo ele, um termo de autoria de Virgínia Woolf.

desigualdade de gênero. As marcas deixadas pelo patriarcalismo legou às mulheres uma servidão imposta e, às vezes, reproduzidas por elas mesmas, ainda que não percebam tal fator na maioria dos casos. Sendo assim, papéis hierarquizados passaram a ser reproduzidos, inclusive por muitas mulheres que não se dão conta do quanto reproduzem tais papéis e, nas relações de gênero, este fator redunda em desvantagem para o sexo feminino, dificultando que as mulheres se vejam e se construam como sujeitos sociais.

A naturalização da inferioridade feminina foi construída culturalmente e trouxe como consequência o fato das diferenças, passarem a ser vistas como defeitos das mulheres, fortalecendo assim a perpetuação das desigualdades entre sexos (CONTE e FERNANDES, 2010, p. 89).

Significativas diferenças entre o trabalho do homem e o da mulher na agricultura familiar possibilitam as desigualdades de gênero. O trabalho dos homens destinados aos trabalhos fora do lar e de caráter monetário e o das mulheres vinculado às tarefas do cuidado do lar e da família, acrescido das atividades agrícolas do entorno da casa, com tarefas vinculadas à alimentação e ao consumo familiar, sem vinculação de caráter monetário, atividades consideradas uma extensão das tarefas domésticas e não contabilizadas monetariamente (HERÉDIA e CINTRÃO, 2006).

Outra forma de subordinação se dá quando as tarefas destinadas à comercialização são contabilizadas como um esforço coletivo, sendo tidas como ajuda, quando realizada pelas mulheres. Assim, a invisibilidade do trabalho delas é fortalecida, prejudicando o contato com o mundo exterior (extensionistas, bancos, sindicatos), pois os homens consideravam as mulheres inaptas para esse trabalho, relegando a elas atividades relacionadas à limpeza da terra, colheita, seleção e embalagem de produtos, o processamento dos produtos agrícolas, dentre outros, além de responderem por todo trabalho doméstico, podendo contar, às vezes, somente com auxílio das filhas. O trabalho feminino no campo, considerado uma extensão do trabalho no lar, produz um fator negativo que é a falta da proteção social e outros direitos garantidos aos trabalhadores formais (HERÉDIA e CINTRÃO, 2006). A organização do trabalho na sociedade humana tem suas origens nos tempos remotos e se dá pela divisão natural do trabalho, nas relações sociais, econômicas e políticas, conforme relatos de Clodomir Santos de Morais (1997):

[...] quando o homem vivia em tribos, o trabalho se dividia da seguinte forma: o trabalho mais pesado (a guerra, a caça de animais de grande porte, etc.) era tarefa dos homens adultos, enquanto o trabalho mais leve cabia à mulher, aos anciãos e às crianças. É

necessário esclarecer que a primeira divisão do trabalho da história humana, não detinha características de divisão profissional. No período econômico baseado na coleta de frutos e raízes, a mulher permanecia no lar cuidando dos afazeres domésticos e teve ao longo de milhares de anos a oportunidade de observar as consequências das sementes e dos restos de alimentos jogados no quintal de suas casas. Não é por acaso que alguns teóricos apontam que o surgimento da agricultura fora iniciado pela mulher. A semeadura, portanto deu-se através dessas observações, pois tinha habilidades e noções de plantio, noções do tempo propício, enfim, conhecia os detalhes necessários para se obter bons resultados. Concomitantemente ao processo da semeadura e cultivo dos jardins, a mulher também passou a domesticar animais. A mulher foi domesticando a galinha, o porco, a vaca, o cavalo e outros animais que encontravam nas sobras de alimentação do homem, mais facilidades de obter comida sem arriscar sua vida com as feras dos bosques (MORAIS, 1997apud SOUZA et al, 2008, p.2).

No campesinato brasileiro, a mulher agricultora foi importante desde o abastecimento das primeiras cidades. Sendo os agricultores e as agricultoras, em sua maioria, independentes e possuidores de ideário de aldeia livre, estabelecidos em relações comunitárias e em rede, com suas trocas e produtores de seus alimentos, não sujeitos aos ditames do mercado, do controle do capital e das regras do Estado, tal fator possibilitou um olhar incomodado por parte de tais instituições, tão citadinas e cidades tão burocráticas, favorecendo, com isto, a exclusão destes das políticas públicas por longos anos (CARVALHO, 2005; PLOEG, 2008; SPYER, 1983 apud CONTE e FERNANDES, 2011).

As agricultoras, apesar de sua invisibilidade ao longo da história, foram elementares para o campesinato, por assumirem a responsabilidade de cerca de 60 a 80% da alimentação das pessoas. No regime de colonato no Brasil, com as famílias imigrantes, as mulheres agricultoras se destacam no trabalho agrícola, por desenvolver, junto a este, outras atividades que favoreciam a sobrevivência do grupo, além do trabalho na produção de excedentes, que eram comercializados (CARVALHO, 2003; SILVA, 2004 apud CONTE e FERNANDES, 2010, p. 86).

A mulher na agricultura, ao longo da história brasileira, assumiu uma grande sobrecarga de trabalho e muitas responsabilidades sobre elas, além de não serem amparadas por políticas públicas educacionais, que somente chegaram ao campo na década de 40. No que tange à saúde, até os tempos atuais é precária e ineficiente. Priore

(2004) descreve que, no período colonial, “as mulheres e suas doenças moviam-se num

território de saberes, transmitidos oralmente, e o mundo vegetal estava cheio de signos das práticas que as ligavam ao quintal, à horta, às plantas” (apud CONTE E FERNANDES, 2010, p. 87).

Até os dias atuais, a mulher agricultora, muitas vezes necessita continuar com suas práticas na área da saúde alternativa, ligadas à alimentação saudável e à utilização de plantas medicinais e também como transmissoras destes saberes e práticas ao longo dos anos. Nos lugares remotos, as parteiras, as curandeiras e benzedeiras atuaram e atuam em detrimento da falta de hospitais e do difícil acesso às políticas públicas de saúde para homens e mulheres que vivem no campo. Nos tempos atuais, o Programa de Saúde da Família busca integrar, por meio de estratégias às instituições e às organizações sociais, para o desenvolvimento de parcerias na área da saúde, abrindo possibilidade de neste espaço se construir cidadania19. O uso de plantas medicinais e sementes crioulas se multiplicam pelos saberes e práticas populares milenares, funcionando como forma de autonomia das mulheres agricultoras. As escolas das comunidades rurais também são referências para o entorno de quem as habita. Elas têm uma função simbólica e educativa entre os sujeitos daquele local, devida à materialização das relações sociais que ali acontecem (CONTE E FERNANDES, 2010). Considere-se as questões desenvolvidas no debate deste capítulo acerca das perspectivas teóricas: gênero, empoderamento e relações de poder. Iniciou-se conceituando o empoderamento, para em seguida caracterizá-lo em duas perspectivas, sendo uma a individualizada e a outra coletivista, sendo estas as opções deste estudo. Deu-se prosseguimento com a operacionalização do conceito empoderamento privado, nas dimensões privada e econômica, e empoderamento público nas dimensões política e social; com a discussão de diversas perspectivas relacionadas a gênero e ao poder. Encerra-se esta etapa do estudo com a abordagem das questões do gênero na sociedade brasileira relacionada ao legado patriarcal e o tipo de colonização brasileira, fatores estes que influenciaram profundamente as questões do gênero em nossa sociedade até os tempos atuais. Apontamos ainda que, embora a discussão tenha apresentado perspectivas que nos remetem à relevância da mulher agricultora e o seu real papel no meio rural brasileiro, ela trouxe também para o debate a questão da injustiça social contra a mulher, a disparidade entre sexos, a exclusão das mulheres do âmbito público, a invisibilidade histórica do trabalho da mulher e as alternativas alcançadas pelas agricultoras na área da saúde e da alimentação saudável. Com isto, o capítulo foi encerrado, para dar lugar ao debate acerca do processo de redemocratização política do Brasil e as políticas públicas contemporâneas direcionadas para o campo,

19

Portaria nº 648, de 28 de março de 2006, que se propõe a revisar a organização da Atenção Básica no país. O Cap. II trata das estratégias do Programa de Saúde da Família (CONTE E FERNANDES, 2010, p. 88).

principalmente o Programa de Aquisição de Alimentos e como este se relaciona com a mulher das comunidades rurais, podendo atuar nas raízes das desigualdades entre sexos apresentadas neste capítulo e com isto favorecer o acesso das mulheres às diferentes oportunidades de participação e fortalecendo assim sua busca por autonomia e cidadania plena.

3 A REDEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA DO BRASIL E AS POLÍTICAS