• Nenhum resultado encontrado

As satisfações substitutivas do mal-estar

No documento RODRIGO ALENCAR São Paulo 2012 (páginas 54-57)

3. DROGAS E PSICANÁLISE: PROBLEMATIZAÇÕES NECESSÁRIAS

3.1. As satisfações substitutivas do mal-estar

Portanto, ao considerarmos a imagem do usuário de crack como aquele que supostamente hospeda a ameaça à ordem social, recorremos a um afunilamento no qual às políticas de combate e enfrentamento concentram seu discurso. Ao dissertarmos sobre algo que ainda não tem reconhecimento internacional enquanto substância, visto que nos relatórios internacionais o crack é uma forma de uso da cocaína (UNODC, 2010), identificamos que aquém dos alardes feitos por campanhas e notícias veiculadas nas mais diversas mídias, esta é a substância que, neste momento, encarna a função de algoz. Esta ameaça sempre há de corresponder a algo na gramática do tempo no qual se vive, preconizando-o, sempre de modo falho ou postulando-o, nunca conclusivamente.

Curiosamente, se pensarmos o crack enquanto forma de uso da cocaína, temos uma reedição da polêmica na qual Freud se envolveu, quando este defendeu (1884) e posteriormente temeu a cocaína (GURFINKEL, 2008). Entretanto, se a cocaína teve seu surgimento enquanto medicamento, o crack, desde o início de sua existência, já nasce na ilegalidade, circulando com única

55

finalidade de entorpecimento, noticiado como flagelo entre aqueles de vida precária, causando temor na vizinhança.

Portanto, em consideração a este temor que buscamos avançar com outro escrito de Freud, para pensarmos à ameaça do crack, recorremos à Psicologia das massas e análise do eu (1921), texto que aborda o contágio do medo em um grupo e suas formas de organização diante de um inimigo:

Tomando a palavra 'pânico' no sentido de medo coletivo, podemos estabelecer uma analogia de grandes consequências. No indivíduo o medo é provocado seja pela magnitude de um perigo, seja pela cessação de laços emocionais (catexias libidinais); este

último é o caso do medo neurótico ou angústia33

. Exatamente da mesma maneira, o pânico surge, seja de um devido aumento do perigo comum, seja ao desaparecimento dos laços emocionais que mantém unido o grupo, e esse último caso é análogo ao da angústia. (FREUD, 1921, pág. 61).

A cessação de laços emocionais e o aumento de um perigo comum, não necessariamente devem ocupar lugares opostos. Uma sociedade pode se sentir unida tendo de enfrentar um inimigo. Isto ocorre quando seus membros em sua maioria, o reconhece enquanto tal. Diante do enfrentamento deste inimigo, posições de liderança podem ser reconhecidas, apontando por quais meios este inimigo deve ser atacado e o quão importante é a união do grupo. Deste modo, ainda que tal movimento opere de modo legítimo ou como mero joguete de manipulação, o que está em jogo neste caso, é a prática de escamotear o mal-estar inerente a qualquer grupo social.

Portanto, para que possamos trabalhar com a questão do crack na atualidade, teremos de compor a estas reflexões, outras proposições do próprio Freud sobre o uso das drogas frente ao Mal Estar na Civilização (1930).

33 O termo presente no livro consultado é 'ansiedade', aqui ele é substituído por angústia

devido a um problema de tradução da edição utilizada. A diferenciação de angústia e ansiedade (subtraída em traduções para o inglês) reside na relação direta com um objeto. Na passagem anterior quando se refere ao “medo [que] é provocado pela magnitude do perigo comum” Freud se utiliza da palavra Furcht. Quando Freud se refere a um estado de excitação onde não há objeto aparente, este usa a palavra Angst. Que do alemão para o português pode ser traduzida por angústia. (Souza, 2010)

56

Para que não se perda de vista o estatuto histórico do tema sobre o qual trabalhamos, por hora, iremos nos deter no que Freud denominou de “satisfações substitutivas”, (FREUD, 1930). Segundo o autor,

os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo. Em última análise, todo sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos como consequência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado. O mais grosseiro, embora também o mais eficaz, desses métodos de influência é o químico: a intoxicação. Não creio que alguém compreenda inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais, quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis (Ibidem).

Assim como

uma pessoa nascida com uma constituição instintiva especialmente desfavorável e que não tenha experimentado corretamente a transformação e a predisposição de seus componentes libidinais indispensáveis às realizações posteriores, achará difícil obter felicidade em sua situação externa, em especial se vier a se defrontar com tarefas de certa dificuldade. Como uma última técnica de vida, pelo que menos lhe trará satisfações substitutivas, é-lhe oferecida a fuga para a enfermidade neurótica, fuga que geralmente efetua quando ainda é jovem. O homem que, em anos posteriores, vê sua busca da felicidade resultar em nada ainda pode encontrar consolo no prazer oriundo da intoxicação crônica, ou então se empenhar na desesperada tentativa de rebelião que se observa na psicose. (Ibidem).

Ao lermos com atenção estas duas passagens, podemos notar que as drogas figuram como um método eficaz de suporte do mal estar. No entanto,

57

além dos tóxicos, Freud cita as enfermidades neuróticas como uma fuga que proporciona satisfação substitutiva. Assim como a intoxicação, a enfermidade neurótica, pensada por nós como presente nos fenômenos grupais, também figura dentre os métodos de tamponamento do mal estar. Deste modo, consideramos que o medo, ou a reação violenta ao uso e a existência das drogas comporta uma dimensão neurótica de defesa à angústia.

Este movimento, no qual o neurótico se lança, compõe um jogo pulsional. O que é vivenciado como um recalque pode passar a um avesso radicalmente superegóico, incidindo na repetição da tentativa de não lidar com o mal estar, visto que esta tentativa tende à falha.

Assim, seguimos para um maior esclarecimento sobre a toxicomania, considerando um espelhamento neurótico. De um lado, a tentativa de tamponar o mal estar pelo uso de substâncias tóxicas, de outro, a mesma tentativa pela via da condenação moral e violência aqueles que recorrem às drogas.

No documento RODRIGO ALENCAR São Paulo 2012 (páginas 54-57)

Documentos relacionados