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RODRIGO ALENCAR São Paulo 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP

Rodrigo Alencar

Porque a guerra às drogas? Do crack na política ao crack do sujeito

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP

Porque a guerra às drogas? Do crack na política ao crack do sujeito

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Social, sob a orientação da Prof.ª, Drª Miriam Debieux Rosa.

RODRIGO ALENCAR

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BANCA EXAMINADORA

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Agradecimentos:

À Miriam Debieux Rosa, por ter me acolhido no extinto núcleo de estudos nomeado Violências: sujeito e política. Também por sua paciência, atenção e carinho ao longo dos trabalhos para os quais me convidou.

À Caterina Koltai por seus comentários, suas indicações e alertas.

Ao Guillermos Milán Ramos, por suas indicações, seu interesse e valorização das alusões feitas no texto.

À Isabel Tatit, por partilhar os sonhos, o lar, a paixão pela psicanálise e, principalmente, por aceitar meu esforço em lhe dar aquilo que não tenho.

Aos membros do Núcleo Psicanálise e Política pelos debates e contribuições. À Marta Cerrutti, Miriam Pinho e aos demais que me ajudaram na escolha dos caminhos a serem percorridos neste texto.

Aos membros do Coletivo Desentorpecendo A Razão, pelos debates, reuniões e conversas agradáveis. Sou grato por terem me ensinado novas maneiras de lidar com velhos problemas.

À minha avó Lídia Radis, por me ensinar os limites da razão.

Aos meus pais, por me apoiarem e sustentarem o estranhamento diante de meus interesses e sonhos. À minha mãe por me ensinar o gosto pela leitura e pelo desconhecido. Ao meu pai pelos seus sábios silêncios e respeito aos diferentes modos de enfrentar às adversidades da vida.

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Ao querido amigo Bruno Muniz Reis por mais de dez anos de forte amizade mesmo com tantos períodos de ausência.

Aos amigos feitos durante o mestrado. Ao Patrick, Bruno e Alekssei, pelas longas conversas dentre inúmeros cigarros e debates políticos e filosóficos.

À Sandra Luzia Alencar, por ter acompanhado os primeiros anos de minha formação acadêmica e por compartilharmos as intempéries da dimensão política irredutível à vida.

À Sandra Letícia Berta, por suas preciosas supervisões que muito contribuíram para as análises presentes neste texto. Aos amigos de supervisão, Carolina Cardoso Tiussi e Roberto Propheta Marques pelo partilhar de experiências.

À Regina Facchini, por ter me transmitido a seriedade e implicação imprescindíveis ao fazer uso das palavras. Também a agradeço por ter se tornado grande amiga.

Aos autores das obras literárias presentes neste trabalho. Somente com a ajuda destas leituras pude me descolar da paranóia, do horror e do embrutecimento que revestem a temática do crack.

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Porque a guerra às drogas? Do crack na política ao crack do sujeito

RESUMO

As drogas, ainda que sob outras coordenadas simbólicas, ocuparam diversos lugares nas mais variadas sociedades e agrupamentos humanos. No entanto, desde a passagem do século XIX para o século XX, seu uso e circulação tem sido objeto de acordos internacionais. Tais acordos estabelecem aos países participantes medidas de combate e controle, aplicadas por meio da mobilização de aparatos militares em suas políticas sobre drogas. Esta mobilização opera por estratégias que entrelaçam os campos da saúde e da segurança pública, provocando certo obscurecimento entre quem deve ser tratado e quem deve ser combatido. Portanto, neste trabalho, nos lançamos à tarefa de identificar as operações inconscientes em jogo no discurso da proibição. Estabelecemos enquanto recorte de objeto o destaque dado ao crack nas políticas de atenção às drogas por o considerarmos o episódio mais recente sobre o tema no Brasil. Pautados nesta compreensão do problema, recorremos aos aportes da teoria psicanalítica e às suas interpretações sobre o funcionamento grupal, bem como aos recursos políticos que operam no escamoteamento da divisão do sujeito. Deste modo, analisamos que as políticas de combate ao crack negam o mal-estar inerente à vida cultural, recorrendo à apresentação desta substância como uma ameaça para o laço social.

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Why a war on drugs?

From crack in politics to the subject’s crack

SUMMARY

Drugs, albeit under other symbolic coordinates, have always been in the most varied places, societies and human groups. However, since the turn of the 19th century, drug use and trade has been object of international treaties. These agreements urge the signatory countries to take measures to control and combat drugs, through the mobilization of the military in their drug policies. As a result of this strategy, the fields of health and public safety intertwine, causing some blurring between who should be treated and who should be fought. Therefore, this work is dedicated to the task of identifying the unconscious operations at stake in the game of prohibition. We establish as object delimitation the highlight given to crack in the drug policies, since it is the most recent episode about the topic in Brazil. Based on this understanding of the theme, we draw on both the contribution of the psychoanalytical theory and its interpretations of group interaction, as well as the political resources that act to camouflage the subject’s division. Thus our analysis concludes that the policies to combat crack deny the discontent in the cultural life, insofar as they present this substance as a threat to the social bond.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1. SUBSÍDIOS PSICANALÍTICOS PARA O ENTENDIMENTO DA POLÍTICA E DA GUERRA. ... 19

1. 1. Aspectos metodológicos da pesquisa psicanalítica sobre os fenômenos sociais ... 21

1.2. A psicanálise e a política: diferenciações necessárias ... 23

1.3. Psicanálise e guerra às drogas ... 28

2. AS DROGAS NO SÉCULO XX: SUBSTÂNCIAS E HÁBITOS DELINEIAM O CORPO DE UM INIMIGO ... 32

2.1. O julgamento de Noriega ... 40

2.2. Políticas sobre drogas no Brasil ... 42

2.3. O Crack: observações sobre uma política de enfrentamento. ... 48

2.4. Da guerra às drogas ao combate ao crack ... 50

3. DROGAS E PSICANÁLISE: PROBLEMATIZAÇÕES NECESSÁRIAS PARA UM ESTUDO. ... 53

3.1. As satisfações substitutivas do mal-estar ... 54

3.2. Toxicomania e psicanálise ... 57

3.3. Toxicomania e laço social ... 60

4. O CRACK DO SUJEITO CONTRA A AMEAÇA IMPOSTA PELA POLÍTICA DO CRACK. ... 70

4.1. O objeto na cena ... 71

4.2. O proibido travestido de interdito ... 77

4.4. O sujeito e seu refinamento às avessas ... 85

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INTRODUÇÃO

As drogas, mesmo sob diversas coordenadas simbólicas, compõem parte indissociável da vida cultural. Seja em rituais xamânicos ou em momentos recreativos, o uso de substâncias que causam alterações sensoriais parece acompanhar a humanidade desde os seus primórdios. Assim, podemos considerar que cada sociedade atribuiu às drogas determinado espaço dentre as relações de seus membros.

Portanto, na história de nossa sociedade, substâncias de potenciais oníricos, como o vinho, participam do registro de momentos fundamentais que compõem as bases do pensamento ocidental. O Banquete, escrito por Platão, detém passagens de conotação cômica, visto que o diálogo travado sobre Eros ocorre justamente num dia posterior a uma forte embriaguez. Sob um contexto que hoje seria ordinariamente denominado de ressaca, Pausânias dá início a um diálogo que parece contemporâneo:

- Amigos, digam-me qual lhes parece a maneira menos nociva de beber. Devo confessar-lhes que a bebedeira de ontem não me fez bem. Na verdade, necessito de repouso. Passa-se o mesmo com vocês? Todos estivemos lá. Descobrir um jeito de suave degustação é do interesse de todos.

Soou a voz de Aristófanes:

- Acertaste, Pausânias, temos de descobrir o acesso a um bebericar raso. Sou um dos afogados de ontem.

Erixímaco, filho de Acúmeno, todo ouvidos, tomou a palavra: - Vocês estão cobertos de razão. Falta-me ainda a opinião do número um. Agaton, aguentas ingerir mais?

- De que jeito? Estou arrasado. (PLATÃO, pág. 31).

Assim, se iniciam os debates sobre Eros, visto que entre os presentes, poucos suportariam outra jornada alcoólica, resta-lhes enaltecer e explanar as origens do amor e suas ascendências mitológicas.

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passa por alguma adversidade em decorrência do uso de uma substância, o diálogo sobre usar ou não usar possui um tom predominante, pouco se ouve, sobre quais maneiras este uso poderia ser mais qualificado e menos danoso ao corpo, assim como almejado por Aristófanes: “descobrir um acesso a um bebericar raso” (Ibidem).

Estas transformações em nossas relações com as drogas integram um desenvolvimento histórico no qual o estatuto que conferimos ao termo droga, como uma substância externa que a ser introduzida em um organismo interfere no seu funcionamento, já pressupõe uma longa trajetória de construções e convenções sobre corpo, exterioridade e principalmente: funcionamento. Cabendo a este último a atribuição de normalidade.

Assim, podemos afirmar que as drogas nem sempre foram um objeto regulamentado por um regime político. Conforme desenvolveremos neste trabalho, a história nos mostra que em determinado momento, as drogas passam a ser assunto central dentre as políticas de governo. Isto implica na demarcação de uma pauta no ato de governar e no foco que esta pauta obtém em determinados momentos.

Das convenções internacionais sobre controle do ópio à proibição das chamadas drogas sintéticas, no que diz respeito à regulação das drogas, existem verdadeiros enodamentos de interesses comerciais e políticos. Sua proibição, assim como os conflitos que envolvem sua comercialização, mantém um constante Estado de Exceção sobre as classes mais baixas, em que o porte e a circulação destas substâncias podem ser motivos para a prisão ou até mesmo a morte. A luta contra o tráfico de drogas, bem como o pouco esclarecimento sobre o que demarca a diferença entre tráfico e uso mantém diversas práticas que podemos considerar como extremamente onerosas para a vida de uma população. Tortura, extermínio, encarceramento em massa e corrupção permeiam um cotidiano de violência e descaso, orquestrados pelo combate às drogas.

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que a sustenta. Portanto, ao lidarmos com esta operação, lançamos mão da teoria freudiana e suas investigações sobre a vida inconsciente. Deste modo, podemos desconfiar do apelo por controle e comedimento, bem como sua pretensão de administrar as mais variadas formas de gozar.

Portanto, temos como proposta viabilizar uma leitura sobre o perigo das drogas e suas intercorrências até o advento do crack e suas repercussões. Através de materiais oriundos das Ciências Sociais, História e Relações Internacionais, esta pesquisa tem por objetivo delinear e dissertar acerca do discurso que circunscreve o crack enquanto ameaça para o laço social. Deste modo, o recorte feito por este trabalho pretende trazer elementos para elucidar a política de combate as drogas.

Para percorrer este caminho, delineamos a seguinte questão: porque determinadas substâncias com suas propriedades ditas “avassaladoras”1 receberam o status de inimigo público a ser combatido?

Para a abordagem desta questão, iniciaremos com ponderações metodológicas sobre a psicanálise e sua articulação com a política e a guerra. Portanto, recorremos a teóricos que estabeleceram marcos para a compreensão do que é a guerra, como o general prussiano Carl von Clausewitz (2010). Também lançaremos mão do diálogo sobre a guerra estabelecido entre Freud e Einstein (1932), cotejando este diálogo com psicanalistas que discutem a história e os posicionamentos nesta relação, dentre os quais destacamos Plon (2002), Goldenberg (2006) e Rosa & Domingues (2010). Acreditamos que com esta fundamentação possamos localizar o modo como trataremos a questão da guerra às drogas, articulando a guerra e a política a partir da perspectiva psicanalítica, assim como tecendo considerações sobre a política de drogas internacional e seus combates.

Depois de realizarmos as primeiras considerações necessárias aos aportes teóricos, nos implicaremos em uma melhor compreensão do que constitui a guerra às drogas. Deste modo, trabalharemos com um ordenamento de histórias surreais, gafes políticas, respostas truculentas, armadilhas e claudicações presentes neste processo. Estes elementos foram levantados

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através de diversos trabalhos que concentram seus esforços em registrar, compreender e analisar as abrangências sociais, políticas, e históricas da

Guerra às Drogas (RODRIGUES, 2003; ARBEX & TOGNOLLI, 2004;

LABROUSSE, 2010; VARGAS, 2008; CARNEIRO, 2008).

No entanto, é de suma importância que se considere o objeto desta pesquisa enquanto construído e refinado no próprio corpo deste texto. É com base nos meandros descritos no segundo capítulo que reconhecemos um material a ser tratado e analisado. Portanto, a questão sobre a qual nos debruçaremos diz respeito aos movimentos que se reproduzem a cada nova e “perigosa” substância.

O problema, para além do seu entrelaçamento no jogo político e institucional encontra eco no silêncio e na repercussão do estabelecimento de uma política do medo, na qual todos em contato com a questão das drogas2 são afetados. Portanto, diversos apelos se entremeiam nos pormenores das políticas de assistência social, saúde e segurança pública, tecendo um embromo. Neste processo, a seletividade entre aqueles que devem ser cuidados e aqueles que devem ser combatidos, se restringe ao planejamento de políticas públicas, muitas vezes, alheias às práticas executadas no cotidiano (ALENCAR, 2008).

Portanto, ao condensarmos tal problemática, o foco de nossa atenção recai sobre a produção discursiva da ameaça do crack. A princípio,

compreendemos esta ameaça sob a hipótese de um obscurecimento dos objetivos políticos em jogo, visto que o planejamento e a execução de ações sobre esta questão se constituem de modo lento e ineficaz.

Deste modo, ao atentaremos para a racionalidade que compõe todo esse processo de consolidação e fortalecimento de tais políticas, buscamos o ponto de não sentido que passa a operar na racionalização de ações truculentas, assim como suas repetições irrefreáveis.

Esta repetição trágica, também será abordada no capítulo dois, que descreve como a transformação de determinadas substâncias em produtos

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ilícitos desarticula os circuitos simbólicos que poderiam sustentar esta prática. Assim, não focamos nossa compreensão sobre a gramática dos usuários com sua droga. A repetição metódica que está sob foco é a repetição da moral proibitiva. Desse modo, valorizamos o alerta feito por Conte (2003) de que a abstinência deve ser do analista, portanto, pensamos que para tratar da problemática do crack, é necessário que a moral proibitiva se abstenha, pois, na medida em que ações de repressão são empregadas sobre o uso de drogas, o primeiro resultado alcançado é mais violência e desamparo.

Portanto, reforçamos que a repetição da qual tratamos é a repetição da terrorificação e da propagação do medo. Assim, classificamos os resultados deste modo de abordagem da questão das drogas com a mesma palavra usada para nomear certas situações decorrentes do uso de uma substância, a saber, uma viagem fracassada. As consecutivas tentativas de proibição,

eliminação e repressão ao uso de drogas produzem com frequência, verdadeiras bad trips3.

Cabe reconhecermos que de modo geral, os problemas decorrentes do abuso de substâncias e da dependência química estão longe de obterem uma solução4

, seja pela via farmacológica; pela via repressora, ou pelas diversas vias de atenção psicológica ou psicanalítica5 (ROSA, 2006), as negociações entre o uso e abstinência costumam se configurar em um jogo erotizado (MELMAN, 1992) que conhece bem o fracasso. Já o comedimento, solução proposta por Freud frente ao gozo tóxico (FREUD, 1930) como um meio de

aliviar o peso do mal-estar na cultura (1930), só pode se constituir enquanto tal, tendo por referência o que está do outro lado de seus contornos, a saber: o excesso.

Portanto, não é objetivo deste trabalho apontar quais os melhores e

3 Termo usado para nomear consequências adversas de uma incursão à fantasia que se mostrou malfadada, talvez por isso acessível a uma nova tentativa, ou a uma nova a-versão. Neste trecho há uma proposta de deslocamento do termo bad trip, usado enquanto gíria para se referir aos efeitos aversivos e/ou persecutórios da droga, para o campo político, dos efeitos violentos e marginalizadores da política proibicionista, considerando a fantasia de um ordenamento social completo e eficaz.

4 Atentemos para o deslizamento deste significante: solução enquanto resposta/ solução química.

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mais promissores meios de lidarmos com a questão das drogas, mas apontar a modalidade de discurso que generaliza, classifica e descontextualiza os modos de uso destas substancias.

Deste modo, este trabalho visa diferenciar e destacar a imagem do

crackeiro presente na mídia impressa e televisiva dos problemas dos usuários

de drogas em suas particularidades. O que há de delicado nesta diferenciação é o lugar de onde se observa. Caso nossos objetivos fossem os problemas decorrentes do uso de drogas, discutiríamos as construções e articulações presentes na fala referente aos modos particulares de seu gozo, as formas de uso e obtenção da droga, assim como as relações sociais que entremeiam ou circulam em torno de seu uso. No entanto, este não é o nosso objetivo.

Frente às questões a serem debatidas, é necessário certo rigor por parte do uso da teoria psicanalítica, bem como de seu diálogo com os saberes oriundos da sociologia, história ou relações internacionais. Assim, é de suma importância destacar que o objeto deste trabalho é recortado pela via da leitura e interpretação de dados históricos e sociais, com interlocução da psicanálise, buscando a dimensão inconsciente na motivação e nas declarações de guerra e combate, nas formações discursivas estruturadas abaixo.

No entanto, não podemos realizar tais análises sem uma decantação de possíveis termos que nos sirvam de ferramenta para compreender o fenômeno pela lente da psicanálise. Esta preocupação nos levou a estruturar uma compreensão necessária do uso do termo toxicomania no campo psicanalítico.

A justificativa da escolha de não utilizar este termo como eixo analisador neste tema é trabalhada no capítulo três. Neste capítulo focamos a categoria

toxicomania no esforço implicado em um posicionamento ético e metodológico

necessários para seguir adiante.

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consequentemente do crack. Assim como trabalhado por Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1923), trabalharemos com a noção de contaminação de pânico e sua relação com a angústia. O uso destes conceitos deslocados do contexto trabalhado por Freud exige um trabalho a ser feito nesta dissertação para pensarmos o efeito de contaminação de pânico para além das instituições militares e religiosas, transladando esta compreensão para um uso político mais amplo. Esta tarefa será realizada com a ajuda de reflexões presentes no texto “O mal-estar na civilização” (1930), visto que é no trabalho com este mal-estar que a psicanálise detém sua chave interpretativa do fato social.

Concomitante à compreensão da contaminação de pânico consideraremos outro movimento, a saber, o da produção por meio de traços identificatórios de um inimigo em comum a um grupo social e a premissa de que este inimigo deve ser combatido. Tal inimigo, como é trabalhado nesta pesquisa, comporta as características de um mal epidêmico, de tal maneira que aqueles que ingerem, produzem ou portam determinadas substâncias tendem a ser tratados como doentes ou combatidos como criminosos.

Assim como assinalado acima, este processo se desenvolve enquanto efeito de uma formação discursiva e é para compreensão desta formação que lançamos mão do Seminário: livro 17, o avesso da psicanálise (1969-1970). Tal obra nos serve para conceituação de discurso e elucidação da operação lógica do mesmo. Entretanto, vale ressaltar que este trabalho não irá operar com os quatro discursos expostos neste seminário. Dentre os quatro discursos abordados elegemos o discurso do mestre, que será utilizado para que possamos pensar o paradigma de controle e governabilidade operados pelas campanhas de prevenção e combate.

Por último, O seminário: livro 10, a angústia (1962-1963), foi escolhido com a finalidade de subsidiar nossas análises sobre o estranhamento humano diante das substâncias psicoativas, bem como seu fascínio, interesse e até mesmo horror a uma verdade que habita a contradição inerente à condição de sujeito.

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1. SUBSÍDIOS PSICANALÍTICOS PARA O ENTENDIMENTO DA POLÍTICA E DA GUERRA.

Eu preferiria não.

Herman Melville (Bartleby, o escriturário)

Neste capítulo discutiremos a psicanálise em sua articulação com a política. Assim, recorremos a teóricos que firmaram marcos para a compreensão do que é a guerra. Em seguida abordaremos o diálogo sobre a guerra estabelecido entre Freud e Einstein (1932). Deste modo viabilizaremos maior esclarecimento metodológico para a abordagem da guerra às drogas, articulando a guerra e a política a partir da perspectiva psicanalítica.

Consideremos a afirmação de Clausewitz na qual “a guerra é uma simples continuação da política por outros meios” (1832, pág. 27). Para que possamos estabelecer alguma compreensão sobre esta frase recorremos à definição que nos remete à compreensão da política enquanto prática de negociação. Assim como afirmado por Lacan:

qualquer um, a todo instante e em todos os níveis é negociável, pois o que nos dá qualquer apreensão um pouco séria da estrutura social é a troca. A troca de que se trata é a troca de indivíduos, isto é, de suportes sociais, que são ademais o que chamamos de sujeitos, com o que eles comportem de direitos sagrados, diz-se, à autonomia. Todos sabem que a política consiste em negociar e, desta vez, por atacado, aos pacotes, os mesmos sujeitos, ditos cidadãos, por centenas de milhares. (LACAN, 1963-1964, pág. 13).

Justificadamente, Paul Laurent Assoun denomina o tópico sob o qual discute a noção de política segundo Lacan, por “A política ou o sujeito negociável” (2003, pág.24).

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a política como operação de troca e negociação, podemos considerar que a guerra tem sua função dentro da política como estratégia e prática que define qual será este poder de negociação. É por meio dos territórios conquistados que aquele que se favorece da guerra adquire maior poder nas relações de troca. Desta forma, aquele que se impõe pela via das armas pode ditar aos seus aliados e inimigos quais são os termos que regem as operações comerciais.

Assim, o aforismo de Clausewitz é seguido pela seguinte afirmação “vemos, pois que a guerra não é só um ato político, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma realização destas por outros meios” (1832, pág. 27). Portanto, o entendimento da guerra enquanto instrumento político fortalece nossa definição.

Iniciado nosso trabalho de clarificação do entendimento da guerra, podemos adentrar com mais segurança na troca de cartas entre Einstein e Freud sob a pergunta “Porque a guerra?” (1932).

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meios para atingir determinados interesses nem sempre declarados.

Então, consideraremos as práticas bélicas como estratégias permeadas de objetivos políticos que mesmo em tempos de conflito se mantém em processo de negociação. Onde alguns interesses de seus participantes podem ser declarados e outros não (FREUD, 1932; CLAUSEWITZ, 1832).

1. 1. Aspectos metodológicos da pesquisa psicanalítica sobre os fenômenos sociais

Sustentamos a metodologia deste trabalho na tese de Freud sobre a impossibilidade da total separação entre uma psicologia individual e uma psicologia social. Segundo o autor:

O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para seus impulsos instintuais; contudo, apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social. (FREUD, 1921).

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Apesar de não trabalharmos com casos clínicos, quando tratamos de um desenvolvimento histórico e político, não podemos esquecer que este desenvolvimento se dá pela ação humana. Deste modo, trabalhamos com alguns posicionamentos e declarações que nos permitem dissertar sobre como estes sujeitos se posicionam e articulam o jogo político. Frente a estas informações não é descabido identificarmos os mecanismos inconscientes que operam neste jogo.

Portanto, em nosso objeto de estudo escolhemos um recorte que se apoia nas construções da linguagem apresenta na bibliografia levantada. Para reforçar tal posição metodológica, citamos Rosa e Domingues que afirmam:

no caso da contribuição da psicanálise ao estudo do campo social e político, não lhe cabe a pretensão de esgotar, por si só, o fenômeno: cabe-lhe esclarecer uma parcela dos seus aspectos, ainda que uma parcela fundamental. Sem pretensão de substituir a análise sociológica, cabe à psicanálise incidir sobre o que escapa a essa análise, isto é, sobre a dimensão inconsciente presente nas práticas sociais. (ROSA E DOMINGUES, 2010).

Cabe lembrarmos que Freud, nunca recuou frente às questões sociais, além de se mostrar assíduo leitor de pesquisas etnográficas e antropológicas, adentrou ao campo político com certa cautela, sem bradar bandeiras ou desferir ataques a qualquer funcionamento econômico. Parece-nos, ao considerarmos suas discussões sobre os impasses no campo social, que seu compromisso e sua crítica tenham se pautado sobre o desenvolvimento civilizatório. Esta prioridade de pauta em Freud é considerada por nós como uma fé ou militância com relação a este desenvolvimento. Esta promessa moderna ocupa um importante espaço em sua obra. No entanto, apesar do compromisso de Freud com sonho moderno, e inevitavelmente com o mal-estar. Este não se furtou a solapar a crença de que o homem é senhor de si. Deste modo, ao deitar o desenvolvimento civilizatório em seu divã e apontar seu mal-estar, Freud leva a psicanálise até a política. Devemos ressaltar que isto é feito sem qualquer prejuízo de sua proposta: a clínica do inconsciente.

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bem longe do que seria um analfabeto político. Ao contrário, ao longo de sua obra, possibilitou que seu trabalho clínico, comportasse uma significativa dimensão política de seu tempo, fecunda de debates realizados até os dias de hoje.

1.2. A psicanálise e a política: diferenciações necessárias

Para um melhor posicionamento da psicanálise, consideramos que, metodologicamente, os questionamentos por parte da psicanálise não surgem de lugar evanescente. Deste modo, Freud, ainda que sem erguer uma bandeira e entoar palavras de ordem, reconhece a impossibilidade de ficar indiferente à barbárie. Em sua carta a Einstein, explorando os impasses do ato de questionar a guerra, afirma algo que caracteriza seu método: “poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento”. Reconhecemos nesta passagem, um esforço de Freud frente à identificação da necessidade de alheamento ao objeto de pesquisa, desde o princípio imposto pela tradição acadêmica, tem seu lugar real denunciado pelo “suposto” (Ibidem), visto que nem mesmo uma máscara, enquanto representação egoica, pode significar indiferença. Aqui se exprime a contraditória relação da psicanálise com a ciência e seu compromisso com a condição de sujeito. Esta condição, assim como no diálogo entre Freud e Einstein, tende a ser interrogada pela política, ou, na ocasião deste diálogo: pela guerra.

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pouco mais generosa via Marx “[o leão] nunca salta duas vezes do mesmo jeito” (pág.183), Plon fala sobre o momento certo de uma intervenção. Para um melhor esclarecimento, atentamos para a seguinte passagem, destacada da obra de Lacan por Ricardo Goldenberg:

não é por se referirem a algum saber organizado que os práticos da política realizam uma ação suscetível de levá-los a serem considerados ou consagrados como 'grandes' pelo fato dessa ação vir a responder a uma espera ou acalmar uma angústia, e sim porque são portadores da verdade de um momento, ou de uma conjuntura, verdade de um momento que escapa ao saber estabelecido e que reconhecem como tal aqueles que se referirão a ela como uma idealidade (2006, pág. 55).

Devemos considerar que a referência feita por Lacan, sobre os “práticos da política” (Ibidem) não pode ser transposta integralmente ao trabalho do psicanalista. Se o homem da política lança mão da boa hora6

para ascender ao poder, o psicanalista usa desta mesma estratégia justamente para se manter alheio à idealização. Frente a tal contraste, encontramos esta constatação na figura do herói político como aquele que põe tudo a perder na expectativa de alcançar a glória, leia-se: o reconhecimento de seus súditos ao seu lugar de mestre.

Assim, por meio do veni, vidi, vici7 o herói se predispõe a sacrificar a si e

aos demais com o dispendioso jogo da guerra, onde a princípio, quanto mais destruição e morte, mais valor e reconhecimento da força, se obtém, consagrando o jogo político da troca como explica Bataille:

6 Lacan trabalha sobre a bonheur, termo em francês que seria traduzido ao pé da letra como

boa hora, sua tradução usual é apresentada como felicidade e no seminário 17 de 1968/1969 encontramos outra formulação que pode ter a mesma conotação, no caso Il fait jour que foi traduzida por “faz bom tempo” (1969-1970 , pág 62). Neste último é importante

apresentarmos um alerta articulado por Lacan: “Justamente não digo que tenha uma razão, continuo seguindo minha dedução, e integro o faz bom tempo, na condição de falácia – mesmo que seja verdadeiro -, à minha incitação, que pode ser a de aproveitar para fazer alguém acreditar que poderá ver minhas intenções claramente já que o tempo é bom”. Ainda que a tradução literal de jour seja dia, podemos considerá-la em sua conotação no termo.

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A variação das formas [de despesa] não acarreta alteração alguma dos caracteres fundamentais destes processos cujo objetivo é a perda. Uma certa excitação, cuja soma se mantém ao longo das alternativas numa estiagem relativamente constante, anima as coletividades e as pessoas. Sob sua forma acentuada, os estados de excitação, que são assimiláveis a estados tóxicos, podem ser compreendidos como impulsos ilógicos irresistíveis, no sentido de rejeição dos bens materiais ou morais que teria sido possível utilizar racionalmente (em conformidade com o princípio do equilíbrio de contas do equilíbrio das contas). Às perdas assim realizadas encontram-se ligadas – tanto no caso da “rapariga perdida” como no da despesa militar – a criação dos valores improdutivos dos quais o mais absurdo, e ao mesmo tempo que engendra maior avidez, é a glória. Completada pela degradação, a glória, sob formas sinistras ora fulgurantes, não parou de dominar a existência social e continua a ser impossível empreender seja o que for sem ela, ao mesmo tempo que ela é condicionada pela prática cega da perda pessoal ou social. (BATAILLE, pág 47, 1967).

O que Bataille traça em seus estudos sobre a noção de despesa serve como uma linha de diferenciação entre o trabalho analítico e o que Maquiavel (2010) chamava de virtude na política. Na psicanálise, a glória possibilita, se muito, se enredar nas malhas de um narcisismo voraz e “condicionado pela prática cega da perda pessoal ou social” (Ibidem). O trabalho do psicanalista não se guia pela glória, muito menos sobre o sacrifício alheio. Ao contrário, no trabalho analítico não é a pessoa do analista que detém o foco.

Lacan ao listar como o analista deve pagar por sua profissão, destaca três modos:

− pagar com palavras, sem dúvida, se a transmutação que elas sofrem pela operação analítica as eleva a efeito de interpretação;

− (...) pagar também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência;

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numa ação que vai ao cerne de seu ser. (1958, pág. 593)

Esta listagem nos permite afirmar que ao contrário do grande líder, o analista é objeto do engano da fala de seus pacientes. Assim como, o ato de pagar com seu juízo, nos remete a máscara de suposto alheamento ao qual Freud faz referência em suas respostas a Einstein, já citadas neste trabalho.

Deste modo, vamos demarcando o distanciamento do herói político da posição do psicanalista. Se os grandes ditadores da história se utilizam do momento propício para governarem por cem anos, o psicanalista não. O trabalho deste último, não é ornado de honrarias, e o seu lugar não é o de um Deus encarnado. Quando seu trabalho acontece, o psicanalista faz justa homenagem ao autor de quem faz a boa hora, a saber: o inconsciente do analisante.

Portanto, na tentativa de ocupar um lugar de suposto alheamento, a posição do analista frente à demanda tende a uma posição paradoxal. Nesta posição, o analista não se deve deter à resolução de um problema, mas operar em uma mudança de posicionamento do sujeito. Quando alguém vai ao analista por não se sentir amado por seu parceiro, este não encontra uma receita para que seu paciente seja mais amado, não lhe é recomendado se vestir melhor, armar um jogo de sedução ou qualquer coisa do gênero. É comum nestas circunstâncias, o candidato a analisante se deparar com um pedido para que ele continue a falar, no qual o analista em uma espécie de “preferiria não”8

(MELVILLE, 1853), suspende a resposta à demanda neste momento. Transpondo para o campo da política, temos o exemplo de Slavoj Zizek frente aos conflitos na antiga Iugoslávia, ao ser questionado por um jornalista se a OTAN9

deveria bombardear determinadas regiões, Zizek responde: “As bombas chegam tarde, e ainda assim, não são suficientes” (ZIZEK, 2003). De certo modo Zizek se recusa ser utilizado pelo jornalista em seu jogo de opinião. Da mesma maneira que não se limita a ser complacente com as atrocidades que acontecem em seu recém extinto país, o filósofo esloveno encontrou sua maneira de dizer que preferiria não fazer parte deste

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jogo. Uma recusa ao apelo, sob a indeterminação do verbo, “preferiria” (Melville, 1853), autoriza a suspensão da demanda para que se apresente a articulação de seus significantes, assim como os efeitos sobre o narrador deste conto de Wall Street, tal resposta, se é que pode ser chamada assim, passa a fazer enigma, possibilitando ao interlocutor indagar o próprio desejo.

Ora, não é desta maneira que Freud responde a Einstein? Refutando as rotas que Einstein apresenta para chegarmos a uma proposta para o fim da guerra: o amor ao próximo, a educação e o poder. A psicanálise em relação com a política mantém uma posição que pode ser ilustrada com a de Bartleby. Quando o narrador tenta expulsá-lo de seu escritório e lhe diz para que lhe deixe, Bartleby lhe responde: “preferiria não deixar o senhor!” (Ibidem). Assim, o saber articulado pela psicanálise não envolve consagrar ou enaltecer a política. No entanto, não a abandona. Permanece em seu encalço, pela via que esta produz sofrimento.

Portanto, cabe lembrar que a psicanálise tende a implicar o sujeito em sua ética na medida em que este se responsabiliza por si no laço social e neste vetor, toca a política em seu ponto de tensão. Segundo Goldenberg:

Sustentar que a política nada tem a ver com a ética equivale a esquecer que a política é o lugar mesmo da escolha; e o que seria a ética senão as escolhas que alguém pode bancar? Está aqui talvez o maior ponto de atrito com o psicanalista, já que para o político o sujeito é negociável em massa ou no varejo e raramente prevalecem nas suas decisões as diferenças particulares, abolidas por princípio sob a razão do Estado (o “doa a quem doer” é um modo de dizer isso). Para o psicanalista, ao contrário, não existe cálculo coletivo da boa satisfação, como opera com o inegociável de cada um, com aquilo que em hipótese nenhuma, cairia sob o interesse geral da nação. (2006, pág. 39).

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posição, apontou com firmeza seus entraves. Isso diz da estranheza da psicanálise com os ditames políticos de um tempo sob o qual podemos reconhecer os efeitos no sujeito. Assim como fez Lacan frente ao discurso universitário e ao poder cada vez maior exercido pela ciência. Portanto, reconhecemos que é delicado ao psicanalista o lugar de militante orgânico, e talvez, se o seu lugar está dentro da militância, está mais pra militante inorgânico, estranho à natureza do sonho político, sem que necessariamente, isso deixe de colaborar com uma sociedade que tenha meios mais éticos de se fazer política. Novamente, retorna a imagem de Bartleby, o escriturário, se negando em deixar o escritório em Wall Street, fazendo enigma com seu silêncio e com a radicalidade de sua negativa.

1.3. Psicanálise e guerra às drogas

Ao trabalharmos com as aproximações e diferenciações entre psicanálise e política, nos detivemos sob a figura do herói político em contraste com o trabalho do psicanalista. Cabe agora, nos perguntarmos como o homem da política paga pela sustentação de seu poder?

Assim como um comandante exerce fascínio sobre seu exército, devemos considerar que um governante também pode exercer certo encantamento sobre seus governados. No entanto, a coesão de um grupo ou uma sociedade, exige determinada cota de sacrifício. Para além do sacrifício da capacidade de julgamento da parte de quem cede a tais encantamentos, devemos considerar que a existência de um inimigo, seja interno ou externo ao grupo, se faz imprescindível para que este funcionamento se mantenha. Deste modo, consideramos que se um governo não se mostra eficaz em manter seus governados satisfeitos, pode se mostrar eficaz em compensar sua falta com o sangue do inimigo e colateralmente o sangue de alguns governados. De uma maneira irônica, quem governa por esta via, pode provar a seus governados que ainda possui algum poder.

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descendência, seja expurgado por encarnar um mal que ameaça a todos. Deste modo, se reproduz uma lógica sacrificial: para que se alcance o bem de todos há aqueles que sob os ditames do bem serão submetidos ao pior.

Para uma melhor compreensão deste funcionamento, devemos visitar o texto Totem e Tabu. O exaustivo estudo sobre o tabu realizado por Freud detém uma série de elementos etnográficos que resultam em um mito construído pelo próprio autor, esse nos possibilita um melhor entendimento no funcionamento social. Dentre esses elementos podemos destacar a interdição cultural, lida como interdição ao incesto nas mais variadas formas que são compreendidas como correspondentes da estrutura familiar e a fidelidade aos membros do clã, que consideramos como a condenação do assassinato entre estes membros. Assim, só podem ser mortos os membros que desrespeitam suas interdições ou em sacrifício a alguma figura totêmica sob qual a tribo está alicerçada e o respeito ao totem, compreendido como correspondente da figura paterna, assimilada como detentora da Lei da interdição e do pertencimento dos membros da comunidade enquanto semelhantes perante uma ordem maior.

Segundo o mito freudiano, esta Lei que instaura a ordem na comunidade, tem sua origem no assassinato do Pai da horda primeva. Este Pai, detentor de poder ilimitado sobre os recursos e as mulheres, em um dado momento, é assassinado em um ato de revolta dos filhos. Estes últimos percebem que para que continuem a existir, devem viver sob uma Ordem, esta Ordem determina a partilha de recursos, as restrições sexuais familiares e o respeito ao lugar vazio deixado por este Pai morto.

Segundo Lacan, o Pai morto é o que faz o agenciamento desta comunidade (1969-1970). Deste modo, a horda passa do regime do poder da força bruta à organização social formada entre seus membros. No entanto, assim como escrito por Freud

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humanidade que as pessoas só podiam aproximar-se dele através de um intermediário — o sacerdote. Ao mesmo tempo, os reis divinos fizeram seu aparecimento na estrutura social e introduziram o sistema patriarcal no Estado. Devemos reconhecer que a vingança tomada pelo pai deposto e restaurado foi rude: o domínio da autoridade chegou ao seu clímax. Os filhos subjugados utilizaram-se da nova situação para aliviar-se ainda mais de seu sentimento de culpa. Não eram mais, de maneira alguma, responsáveis pelo sacrifício, tal como agora se fazia. Era o próprio Deus que o exigia e regulamentava. Esta é a fase em que encontramos mitos apresentando o próprio Deus matando o animal que lhe é consagrado e que, na realidade, é ele próprio. Temos aqui a negação mais extrema do grande crime que constituiu o começo da sociedade e do sentimento de culpa. (1912).

Portanto, ao nos referirmos à Lei com “L” maiúsculo, nos referimos a aceitar a morte deste Pai sem tentar substituí-lo, se responsabilizando pela vida comunitária. Compreendemos esta formulação, como a comunidade que se organiza para que não se repita a barbárie. Porém, o diagnóstico de Freud nos parece certeiro e a história mostra que a Lei acordada entre os semelhantes, não se sustenta ad infinitum. A recolocação de instituições políticas e religiosas

que repetem ditames paternalistas e, por efeito colateral deixa transparecer suas facetas obscenas, convoca à fratria a um novo festim totêmico num esforço de atualização da Lei por meio do ritual parricida.

Talvez a fratria, agenciada sob a Lei do pai morto enquanto organização social, detenha sua existência enquanto mítica. Costa (2007), ao discutir Totem e tabu, produz uma valiosa reflexão ao destacar que para que a horda dita primeva se organize para matar o pai, já é necessário o uso de um repertório cultural, dado a exigência de organização para tal prática. Assim, vale ressaltar o mito freudiano enquanto um evento que serve à atualização inconsciente, emergindo enquanto marcação de um tempo.

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inerente aos falantes. Deste modo, compreendemos o mito freudiano do assassinato do Pai como algo universal do humano. Entretanto, este universal não se encontra nas formulações sobre complexo de Édipo. Mas, assim como trabalhado por Lacan, se há uma universalidade, esta corresponde à função de interdição como condição inerente do sujeito na cultura (KOLTAI, 2010).

Esta interdição institui a divisão do sujeito, colocando-o na condição de sujeito do inconsciente. Desse modo, o sujeito não é senhor de si, dotado de plena consciência. Visto que para se constituir enquanto tal depende da passagem por um processo de alienação no desejo do Outro. Esta alienação se dá pela identificação com a imagem de si reconhecida pelo Outro, reconhecimento que institui uma demarcação imaginária do corpo como um todo. Assim, somente em um processo de separação, no qual o sujeito não se reconhece sob os contornos que o Outro lhe atribui se instaura sua divisão (LACAN, 1949). Esta condição se impõe enquanto corte intransponível ao abordarmos o campo da política, já que este sujeito opera em suas relações com este saber faltante. Falta que é comumente capitalizada pela promessa política.

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2. AS DROGAS NO SÉCULO XX: SUBSTÂNCIAS E HÁBITOS DELINEIAM O CORPO DE UM INIMIGO

E a peste cada um a traz consigo,

porque ninguém, sim, ninguém no

mundo, está imune.

Albert Camus (A Peste)

Para que possamos situar o que denominamos de “guerra às drogas”, recorremos a elementos históricos que possam nos dar subsídios à utilização da questão das drogas enquanto um problema social.

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impõe sua sobretaxa10.

Conforme apontamos no início desse trabalho, desde a Grécia antiga encontram-se atribuições sobre o uso excessivo de álcool como responsável por experiências de “tentação ou de loucura divina” (CARNEIRO, 2008, pág.67). Isto não necessariamente nos revela a existência de um elemento chamado droga já nesta época, mas sim a uma atenção quanto aos excessos e as alterações de consciência. Nas navegações comerciais em que europeus buscavam especiarias no oriente encontramos registros de uma busca por “substâncias exóticas que teriam o gosto do paraíso” (VARGAS, 2008, pág. 44). Dentre estas substâncias exóticas estão diversos temperos. Por exemplo: o açúcar e suas propriedades energéticas devido a seu alto grau de calorias. Já entre os séculos XVIII e XIX encontramos as drogas presentes em nossa sociedade como ferramenta de dominação social e instrumentalização para o trabalho. Em um período de capitalismo emergente

o tabaco e as bebidas alcoólicas tornam mais suportáveis a crescente (o)pressão disciplinar e as precárias condições de vida que se abatem sobre os mais pobres ao entorpecê-los. Enquanto isso, o açúcar, rico em calorias, além de fornecer energia indispensável para o trabalho, adoça tudo aquilo com que ele se mistura (VARGAS, 2008, pág. 48).

Ainda no século XIX missionários ingleses passaram a problematizar o uso de ópio feito por chineses e nos Estados Unidos, grupos denominados

Prohibition Party e Liga Anti-Bares são os predecessores do que

posteriormente vem a ser uma das maiores forças proibicionistas nos EUA. O grupo denominado WASP11

foi um dos protagonistas na reivindicação de aplicação da Lei Seca (RODRIGUES, 2003), medida que é registrada como

10 “O economista da Universidade boliviana Mayor San Andrés, Jaime Vilela, ensina que a ilegalização não evita nem a produção nem o consumo nem a circulação das drogas; pelo contrário, o crescimento é mantido, o que se gera é o incremento dos preços para o “consumidor, de forma extravagante. A transformação de seu comércio em tráfico, assim como a violência e a corrupção que acompanham esse negócio rendem lucros extraordinários aos capitalistas encarregados de realizá-los. A dívida lançada ao tráfico eleva o valor da droga, que tem seu preço incrementado” (ROSA, 2006, pág. 7)

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uma das ações políticas mais desastrosas direcionada à população norte americana. Estas associações perduraram por um longo período e ainda hoje, podemos encontrar estes empreendedores morais12 (BECKER, 2008) sob

outros nomes.

Neste mesmo período – passagem do século XIX para o século XX – inicia-se como parte constituinte do desenvolvimento social, uma medicalização dos corpos e da vida (FOUCAULT, 2008), impulsionada pelos novos modelos disciplinares da sociedade após a revolução industrial surgem às experimentações com opiáceos na área medicamentosa e a implementação de diversas terapêuticas. Suas propostas curativas buscavam o prolongamento da vida através de uma gama de substâncias fossem elas psicoativas ou não (VARGAS, 2008). Esta época foi denominada por Foucault como “invasão farmacêutica” (2008).

Em 1909, os EUA, país que abrigou a força pioneira do proibicionismo no mundo, impulsiona uma conferência voltada para o controle do ópio. Esta conferência ocorreu em Xangai e teve por principal objetivo: estabelecer acordos internacionais em que o uso do ópio fosse restrito às recomendações e manuseios médicos, bem como sua produção e comercialização deveria ser rigorosamente controlada (RODRIGUES, 2003).

Neste período, o ópio já havia causado significativo furor na Europa, Charles Baudelaire, na segunda metade do século XIX, relata no prefácio escrito para sua tradução de “Memórias de um comedor de ópio”13

de Thomas Quincey, sobre homens que pela via do ópio apresentavam suas fraquezas e causavam constante embaraço dos farmacêuticos. Baudelaire relata que “o número de amadores de ópio é imenso e a dificuldade em distinguir as

pessoas que fazem com essa substância uma espécie de higiene das que obtém para fins condenáveis é para eles [farmacêuticos] fonte de embaraços cotidianos” (BAUDELAIRE, 1860, pág. 75).

12 Howard S. Becker usou o termo para designar grupos que buscavam impor seus preceitos morais à população como um todo, além dos empreendedores, há a classificação dos impositores morais, que no caso seriam compostos pelas forças repressoras que entram em ação para inibir atos moralmente condenáveis, por exemplo: policiais, juízes e etc. 13 Texto presente no livro “Paraísos articiais: o ópio, o haxixe e o vinho”, a escrita deste

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Já a cocaína sem dúvida alguma antecede brevemente o processo de gênese das ideias psicanalíticas, Sigmund Freud a enaltece dentre seus primeiros escritos (FREUD, 1889) e suas cartas pessoais também dão o tom do clamor que o fundador da psicanálise tem sobre tal substância 14 (PACHECO FILHO, 1998). Numa época que antecede brevemente sua regulamentação e proibição, os princípios ativos da coca integravam uma gama de medicações e usos recreativos. Assim, as explorações sobre este “fármaco milagroso” (2004) renderam a Freud severas críticas por parte da comunidade médica, tornando-se, posteriormente um ponto de debate e exploração em suas biografias (GURFINKEL, 2008; SANTIAGO, 2001).

Este furor em torno de substâncias vistas como milagrosas, não pode ser dissociado do ideal moderno de um sujeito uno e indivisível. Neste sentido, podemos dizer que as aspirações de Freud sobre a cocaína buscavam, nesta substância, a sutura do sujeito e um estancamento de seu sofrimento. Este ideal do homem enquanto unidade pertencente ao todo social, corresponde à política fundada na revolução francesa. As aspirações iluministas requerem justamente que por meio do saber, o homem seja senhor de si. Segundo Saint-Just, pensador integrante dos jacobinos durante a revolução francesa e defensor ardoroso do sufrágio universal, a liberdade moderada é a alma da democracia (1971-1972), ao contrário da política antiga, que “queria que a riqueza do Estado voltasse para os particulares; a política moderna quer que a felicidade dos particulares volte para o Estado” (Idem, pág. 35). Deste modo “não existe poder legítimo; nem as leis nem o próprio Deus são poderes, mas somente a teoria do bem. O espírito da igualdade consiste em que cada indivíduo seja uma porção igual da soberania, isto é, do todo” (Ibidem, pág. 37). O posicionamento de Saint-Just aponta justamente para a fissura pela qual a psicanálise entrou na política, visto que este ideal político até os dias de hoje não se mostrou possível.

Portanto,

o fato de que a ideia de que o saber possa constituir uma totalidade é, por assim dizer, imanente ao campo político como tal. (…) A

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ideia imaginária do todo tal como é dada pelo corpo – como baseada na boa forma da satisfação, naquilo que, indo aos extremos faz esfera –, foi sempre utilizada na política, pelo partido da pregação política. (LACAN, 1969-1970, pág. 31).

Assim, podemos considerar a ideia imaginária do corpo pautada na boa forma da satisfação como um dos vértices do início da regulamentação e controle da circulação e uso das drogas, visto que o aumento de circulação de determinadas substâncias em detrimento de outras diz, justamente, de um ideal de longevidade e de produtividade que circunscreve o indivíduo15 enquanto útil ao Estado e ao empreendimento privado.

Passando a atentar estritamente ao campo da política institucional, não poderemos tratar de tal tema, sem dar devido destaque às manobras nacionais e internacionais da política norteamericana. Em 1933 cai a Lei Seca nos Estados Unidos, mas isso não indica um afrouxamento da política de proibição e controle, pois em 1937, Franklin Roosevelt enrijecia as restrições e sanções ao uso de cocaína e proibia o uso e a comercialização de Cannabis com a lei denominada “Marijuana Tax Act” (RODRIGUES, 2003, pág. 36). Tal estratégia

impulsiona a destruição maciça de plantações de cannabis e a abolição de seu uso para fins industriais. Poucos anos depois, logo após a segunda grande guerra temos o boom dos antidepressivos estabelecendo um

curioso contraponto à proibição dos fármacos psicodélicos também sintetizados na mesma década. Ambos agem sobre certos neurotransmissores – serotonina, dopamina, noradrenalida – cuja identificação e início de suas novas funções e atividades vem sendo descobertas em concomitância com as criações e usos dessa nova moléculas psicoativas (CARNEIRO, 2008, pág. 79).

Durante todo este processo, notamos duas principais frentes que impulsionam as políticas proibicionistas: uma se configura por parcelas conservadoras da população que por meio de associações de forte cunho

15 Usamos a palavra indivíduo quando fazemos referência ao ser historicamente determinado.

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religioso pregavam a abstenção do uso de substâncias psicoativas, pois estas submeteriam os homens ao descontrole e a uma aptidão para praticar o mal, enquanto as mulheres estariam sujeitas à uma conduta lasciva, imoral e suscetível ao contato com raças diferentes (MOUNTIAN, 2006). Já a outra frente se configura por representantes da indústria médica e farmacêutica que passam a regulamentar o que é recomendado e proibido para um adequado prolongamento da vida e operacionalização para o trabalho (VARGAS, 2008). Por meio da moralidade e de políticas que passam a manejar os direcionamentos do consumo de suas populações, determinadas substâncias e formas de uso vão encarnando o lugar do mal, desencadeando estratégias que por meio de um imaginário social possibilitam a ação de identificar o inimigo

(MOUNTIAN, 2006). Portanto, esta identificação é facilitada pelos traços vibrantes e escandalosos que passam a contornar o tema das drogas na política internacional na década de 70. Nesta década, diversas estratégias de conquistas territoriais e interesses econômicos se obscurecem em meio à truculência de práticas militares, submetendo populações inteiras a uma alternância de rígidos poderes em que o inimigo, assim como uma peste, pode

ocupar o corpo de qualquer um.

Portanto, a cocaína, enquanto substância proibida, tem o seu boom e

neste período podemos testemunhar a América Latina protagonizando sua difusão pelo mundo (LABROUSSE, 2010). Deste modo, os oligopólios16 se tornaram empresas que movimentaram bilhões. Estima-se que estas organizações obtiveram significativa importância para a economia mundial, porém, os números correspondentes, não são facilmente identificados devido à lavagem de dinheiro. Labrousse afirma que segundo agentes da célula antilavagem de dinheiro da Interpol “se fossem apreendidas aproximadamente 10% das drogas em circulação, somente 1% do lucro dos criminosos seria confiscado” (CALLAMAND APUD LABROUSSE, 2010:57). Não é difícil supor

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que, com o boom dos oligopólios colombianos, diversas organizações

internacionais ligadas ao negócio das drogas17 firmaram sede na América

Latina e mais especificamente no Brasil, devido à extensão de sua costa marítima e as possibilidades de inserção na política institucional (ARBEX & TOGNOLLI, 2004; RODRIGUES, 2003).

Este período é marcado por intensas movimentações políticas e militares nesta região, visto que não podemos ignorar o fato de que tal processo foi concomitante com o estabelecimento de diversos golpes de estado18. Estes golpes foram iniciados por militares para conter a ameaça

comunista consolidada enquanto tal após a revolução cubana19. Sob os golpes

de Estado, alguns países terão regimes de poder que chegaram a ser denominados narcocracias (RODRIGUES, 2003), dentre as mais fortes

destacamos a de Hugo Banzer Suárez20 que enquanto ditador da Bolívia entre 1971 e 1978 possibilitou um aumento de mais de 6 mil hectares de plantações de coca voltadas para refinamento e produção de cocaína (LABROUSSE, 2010). Em seguida, após a saída do ditador Banzer, Luis García Meza Tejada provocou um crescimento de 10 mil hectares de plantações de coca para 50 mil (Ibidem). Estes governos eram caracterizados por proteção a determinados grupos e ataque a outros desafetos através do aparelhamento do estado (RODRIGUES, 2003).

Já no Peru o presidente Fernando Belaúde Terry criava pacotes de incentivos econômicos para o desenvolvimento da agricultura peruana ao leste de seu território. Tais planos foram aplicados pouco antes de Terry sofrer o golpe militar. Automaticamente, logo após o golpe, bruscas mudanças na política de subsídio agrário abandonam à própria sorte agricultores que passaram a atender traficantes americanos e seus apelos por remessas de coca. Já no fim dos anos setenta, devido à brutal repressão e a falta de

17 Dentre estas organizações figuram algumas máfias italianas e a Yamaguchi Gumi, subdivisão da já conhecida Yakuza.

18 Em 1964 no Brasil, 1966 na Argentina, 1973 no Chile e Uruguai, dentre outros países citados neste capítulo.

19 1º de janeiro de 1959.

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amparo de tais comunidades, surgem grupos políticos de esquerda21 que ligados aos agricultores, passam a militarizar a região e usufruir de parte da produção para o financiamento de guerrilhas de enfrentamento ao Estado (ARBEX & TOGNOLLI, 2004; LABROUSSE, 2006). Cabe diferenciar aqui, movimentos como o de Pablo Escobar, que possuía uma estratégia de aproximação e cooptação de agentes do Estado, em contraste a países nos quais ocorreu o movimento inverso, a saber, o Estado gerir o crime organizado articulando sua estrutura de funcionamento. Assim ocorreu no México sob comando do Partido Revolucionário Institucional. Segundo Labrousse (2006), neste país, o crime organizado foi gerido e articulado por agentes pertencentes ao Estado, administrando o que estava na legalidade e na ilegalidade, conferindo grande campo de atuação e fortalecimento para os negócios ilícitos.

Dificilmente atribuível à mera coincidência, é também, na década de setenta, que fica declarada a guerra contra as drogas, movimentando milhões

em serviços e equipamento bélico na América Latina. De 1970 a 2010, apesar do forte investimento em campanhas públicas voltadas para prevenção, repressão ao uso e ao tráfico de drogas, poucos resultados podem ser apresentados como eficazes (LABROUSSE, 2010; RODRIGUES, 2003). Os efeitos e as continuidades desta guerra se fazem sentir até o momento, empresas de paramilitares, popularmente conhecidos como mercenários da guerra22 já possuem contratos principalmente no México e na Colômbia,

prestando serviços de repressão e apoio às relações internacionais.

No relatório do departamento de drogas e crime da ONU lançado em 2010, uma discussão é feita acerca do fracasso da guerra às drogas, porém é ressaltada a importância de que o combate continue, fazendo com que as alternativas à proibição sejam descritas como irresponsáveis por não considerares os milhões de mortes decorrentes do abuso e dependência de substâncias ilícitas (UNODC, 2010). Cabe a nós, o questionamento de tal postura irredutível, quando se pode notar que tal preocupação não pode e nem é amenizada pelos resultados pouco expressivos do combate bélico a usuários

21 Estes grupos são: Movimento Túpac Amaro e Sendero Luminoso.

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e produtores.

Ao atentarmos para este breve levantamento acerca do uso e proibição das drogas na sociedade ocidental, lembremos que há cerca de pouco mais de um século, “praticamente nenhuma droga, de uso medicamentoso ou não, era objeto de controle, quanto mais, sujeita à criminalização” (VARGAS, 2008, pág. 54). É ao decorrer da segunda metade do século XIX e ao longo do século XX que se iniciam as regulamentações quanto ao lícito e ilícito, sendo o debate sobre o que é socialmente nocivo e a delimitação de suas estratégias de combate pertencentes às justificativas de um vasto campo de manobras políticas.

2.1. O julgamento de Noriega

Para maior clareza da breve trajetória que conduz às drogas ao status

de inimigo público, recorremos a um episódio que consideramos como um marco da guerra às drogas a nível internacional. Após diversos trâmites políticos para conter a ameaça comunista, o governo dos Estados Unidos rompe com alguns de seus colaboradores e mira seu arsenal bélico no perigo das drogas. Em meio a este processo, destacamos este episódio como o que melhor ilustra as drogas no lugar de ameaça internacional. Neste contexto, o destaque dado ao tráfico de cocaína, apresentou esta substância como uma verdadeira arma de destruição em massa, conforme veremos mais abaixo.

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financiamento do golpe nicaraguense com narcodoláres23. Tal episódio gerou

grande embaraço para o governo Reagan, no qual Bush era vice-presidente e posteriormente para o próprio governo Bush (RODRIGUES, 2003). A operação que possibilitou o desfecho desta trama foi desencadeada em 1989 sob o nome de Operação Justa Causa.

Acusado de comandar uma das maiores operações de tráfico de drogas disseminando grandes quantidades de sua mercadoria nos Estados Unidos, Noriega aguardou o seu julgamento por vinte meses em um presídio em Miami, sendo o primeiro chefe de Estado a ser julgado em território americano.

Noriega não era americano, não havia cometido crimes em território americano. E o pior: quem o acusava eram criminosos condenados nos Estados Unidos e que recebiam milhares de dólares e comutação de penas para denunciarem o que sabiam sobre o tráfico de cocaína (TOGNOLLI, 2004, pág. 157),

Ainda de acordo com Tognolli (2004), o que foi a julgamento em vinte e nove de agosto de mil novecentos e noventa e um, não foi simplesmente um ditador e ex-agente da CIA, mas o narcotráfico como “o maior mal do mundo” (Ibidem) após a ameaça comunista (Ibidem). Em um julgamento que teve ao menos setenta e oito testemunhas, sessenta delas de acusação, figura o importante papel cumprido pelo chefe mais alto do cartel de Medellín, Carlos Lehder Rivas. Após negociar seu depoimento para diminuição de sua pena, o ex-chefe do Cartel De Medellín fez a seguinte afirmação: “meritíssimo, por muitos anos os Estados Unidos exploraram os povos pobres da América Latina. Mas nossa vingança chegou, senhor juiz: a cocaína é a bomba atômica da América Latina” (ARBEX & TOGNOLLI, 2004). Tal afirmação gerou grande polêmica midiática e, ainda que Lehder Rivas possa ter tido a intenção de chocar a opinião pública ou se proteger sob um argumento demagógico alegando opressão política por parte dos EUA, não podemos ignorar sua declaração. Assim, Rivas colocou as drogas ilícitas no mesmo lugar que Richard Nixon o fizera em 1972, no lugar de “inimigo número 1 da América”

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(RODRIGUES, 2003, pág. 42).

A partir daqui não é difícil recorrermos à Freud e seu clássico texto denominado “Psicologia de grupo e análise do eu” (1923). Segundo o autor, “quem quer que deseje produzir efeito sobre ele [o grupo], não necessita de nenhuma ordem lógica em seus argumentos; deve pintar nas cores mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma coisa diversas vezes” (FREUD, 1923), e talvez devamos endossar as palavras de Freud, que além de repetir e exagerar, seja de suma importância arrancar da boca do inimigo, as palavras que confirmem o seu lugar, fazendo reluzir os quão afiados sejam suas garras e dentes.

2.2. Políticas sobre drogas no Brasil

No Brasil, uma grande parcela da política de atenção às drogas, seguiu a cartilha internacional de abordagem do problema optando pelo foco na questão das drogas pela lente da segurança pública.

Porém, no início do século XX, assim como nos EUA, boa parte da preocupação relacionada ao uso de substâncias e segurança pública estava relacionada ao abuso de álcool. No Brasil as organizações: Liga Antialcoólica de São Paulo, Liga Paulista de Profilaxia Mental e Sanitária, Liga Brasileira de Saúde Mental e União Brasileira Pró – Temperança davam o tom das ações assistenciais e higienistas frente aos problemas relacionados com o consumo de álcool (MACHADO & MIRANDA, 2007).

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