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O proibido travestido de interdito

No documento RODRIGO ALENCAR São Paulo 2012 (páginas 77-85)

4. O CRACK DO SUJEITO CONTRA A AMEAÇA IMPOSTA PELA

4.2. O proibido travestido de interdito

Talvez figure como um dos principais pontos da proibição das drogas, o jogo erotizado que se dá nas repetições de ultrapassamento. Portanto, para realizarmos nossa análise, buscamos a compreensão das campanhas anti- crack na conclusão de Eduardo Leite sobre das campanhas de prevenção às drogas em geral:

quando uma proibição é sustentada com o recurso da demonização, tanto há acomodação imaginária do proibido, para aqueles que já o aceitam e recebem uma confirmação, como também, ao mesmo tempo e contrariamente, para outros, constituem melhores condições de consistência imaginária da crença de que a quebra do proibido em questão reserva uma cota maior de gozo que equivaleria à superação do interdito. (2005, pág. 95).

Nesta passagem, identificamos algo do jogo identificatório já descrito no capítulo anterior. Assim como descrito por Leite, aquele que busca gozar da transgressão pode recorrer às drogas como recurso oferecido pela própria campanha antidrogas.

Deste modo, se constituem duas dimensões de uma prática de administração de gozo. Uma acontece pela via oficial, circula por propagandas e oferece diversos produtos em lojas de rua ou por meio da internet. A outra circula via contrabando, ao invés de impostos, mantém esquemas de corrupção e vende produtos tão cobiçados quanto os primeiros. Assim, o consumidor, ser supostamente soberano em uma democracia capitalista, detém uma identidade de acordo com o que consome, via compras legais ou contrabando.

O filósofo esloveno Slavoj Zizek descreve um interessante paradoxo para pensarmos tal situação: “Se Deus está morto, o supereu nos ordena

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desfrutar da vida, mas cada prazer determinado é já uma traição ao prazer incondicional e deve, portanto, ser proibido. A versão substancial disto consiste em desfrutar diretamente da Coisa: Porque se incomodar com café? Injete cafeína diretamente nas veias!” (ZIZEK, pág. 36, 2003). O que se apresenta na colocação de Zizek é uma suposta passagem paradoxal da barreira do interdito. O prazer incondicional é justamente o que se deve obter a partir do momento em que se ultrapassa a linha na qual fica para trás o julgamento referente a um solo simbólico que permita escolhas e hesitações. Portanto, quando esta linha é atravessada, tudo que se obtém, se obtém ao máximo, sem ressalvas ou mediações, na obrigação de fazer valer aquilo que lhe teria sido privado.

Para um aprofundamento da questão, recorremos à definição que Lacan faz acerca da lei no seminário 17,

É certo, por exemplo, que a lei – entendamos a lei como lei articulada, a própria lei em cujos muros encontramos abrigo, essa lei que constitui o direito – não deve certamente ser considerada homônima do que pode ser enunciado em outro lugar como justiça. Pelo contrário, a ambiguidade, a roupagem que essa lei recebe ao se autorizar na justiça é, precisamente, um ponto em que, nosso discurso talvez possa indicar melhor onde estão os verdadeiros propulsores, quero dizer, aqueles que permitem a ambiguidade e fazem com que a lei continue sendo algo que está, primeiramente e sobretudo, inscrito na estrutura. Não há mil maneiras de fazer leis – estejam ou não animadas pelas boas intenções e inspiração da justiça – porque há, talvez, leis de estrutura que fazem com que a lei seja sempre a lei situada nesse lugar que chamo de dominante no discurso do mestre. (1969-1970, pág. 44).

A conclusão da passagem citada por nós, as “leis de estrutura que fazem com que a lei seja sempre a lei situada nesse lugar que chamo de dominante no discurso do mestre” (Ibidem), nos convida a refletir sobre como as noções de justiça tendem a um movimento neurótico de tamponamento da falta em sua ligação com a mestria. A afirmação do protagonismo do discurso do mestre neste processo possibilita a nós a compreensão do papel da política

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governamental frente ao inconsciente, assim como, o laço entre o senhor e o escravo pode se assentar, não necessariamente na força bruta, mas no submisso reconhecimento desta relação como regida por supostas leis naturais, assim positivadas legislativamente em um processo histórico.

Portanto, estas leis comportam em sua função um manejo com o que a psicanálise considera irredutível na vida social: o mal-estar. Porém, em um aspecto específico em meio a tantos outros, as leis tem por efeito colateral a ambiguidade, “a roupagem que essa lei recebe ao se autorizar enquanto justiça” (Ibidem). Este processo é o que compreenderemos como passagem do simbólico ao imaginário durante o trabalho do discurso do mestre. Visto que a Lei, ao invés de possibilitar o relançamento do desejo do sujeito enquanto interdição, passa a ser a lei50 de uma operação burocrática, possibilitando ao sujeito a ultrapassagem imaginária descrita por Leite (2005). Esta cota maior de gozo, se olhada enquanto efeito do discurso da proibição, é efeito de rechaço (LACAN, 1969-1970), ou seja: “o que se apresenta como mais opaco” (ibidem), a saber, gozo de transgressão.

Portanto, o objeto a, que Lacan situará como mais de gozar, habita uma consequência análoga às definições de gozo localizadas no mesmo seminário. Lacan afirma que “o caminho para a morte nada mais é do que aquilo que se chama gozo” (Ibidem, pág. 17). Deste modo, este nada mais dito por Lacan é o que podemos situar como uma operação de extração, a saber, uma tentativa de subtração fantasmática da negatividade da experiência da morte, tentativa de ludibriar a castração por meio do recurso imaginário. Como conseqüência, podemos considerar esta fantasia de ultrapassagem do interdito como suposto acesso ao objeto em si. Entretanto, não há objeto em si, o que faz com que esta operação claudique para o pior. “O crack causa dependência e mata” (BRASIL, 2010a), eis aí a verdade de um objeto no qual estaria impedido o relançamento do desejo sobre outro objeto, o que “causa dependência e mata” só pode mesmo viabilizar o gozo do pior. Neste movimento, campanha e legislação operam sobre o comando de uma só voz: a da proibição, traçado tentador de um limite, convertendo algo inanimado ao mundo dos homens

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enquanto suposto objeto de desejo. Assim “o que nos ensina aqui a experiência sobre a angústia em sua relação com o objeto do desejo, senão que a proibição é uma tentação? Não se trata da perda do objeto, mas da presença disto: de que os objetos não faltam” (LACAN, 1962-1963, pág.64). É através do ultrapassamento desta linha que se corre esse risco de não faltar nada.

Para uma melhor ilustração desta definição, recorremos a outro conto de Stevenson. Este ao narrar uma velha lenda escocesa nomeada “O demônio da garrafa” (1983) nos apresenta uma bela metáfora para esta problemática no que toca a questão da angústia sob a temática das drogas. Nesta lenda, um demônio que habita uma garrafa, realiza qualquer desejo de quem a possui. No entanto, quem porta a garrafa tem de vendê-la antes da própria morte, caso morra portando a garrafa terá a alma levada pelo diabo. Para que a venda da garrafa seja realizada, só existe uma regra: tem de ser vendida por um preço mais baixo em relação ao preço pago no ato da compra. Outro aspecto não menos interessante é que se livrar da garrafa fisicamente, sem recorrer à transação comercial é impossível, quando o herói a lança ao mar, ou a enterra, esta reaparece entre os pertences do dono em cenas dignas do retorno do recalcado. Ora, a garrafa, como um objeto maldito que realiza seus desejos, não seria como as drogas são apresentadas na contemporaneidade? Merece destaque sua cotação, ao invés de ficar cada vez mais cara, fica cada vez mais barata, assim como a recente história das drogas, da cocaína, droga mais refinada e mais cara, para o crack, mais potente e mais barato. O ritmo do conto de Stevenson impõe um suspense justamente em sua cotação decadente, quanto mais barata a garrafa, mais o demônio se aproxima da alma de quem a possui. De modo curioso, o herói do conto mantém um fort da51 com

seu objeto maldito, vendendo-o para salvar sua alma e comprando-o novamente para realizar mais um novo desejo. Assim, vemos que a trajetória deste herói não é muito diferente de diversos usuários. Para não ter sua alma

51 Jogo trabalhado por Freud, onde a criança lança um carretel para um espaço onde não há

visibilidade e depois, puxa o carretel pela linha, pegando-o e relançando-o novamente. Freud trabalha este jogo como atualização da vivência de alienação e separação com o objeto de amor.

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sugada pelo cachimbo, passa a vender daquilo que antes parecia realizar os seus desejos revesando entre consumidor e comerciante ou mantendo os dois papéis em paralelo.

Este fort da das drogas já é bem conhecido, não se costuma fazer estoque, mas sempre há de fazer alguns corres52

até a boca para que isso se ajeite. Assim como afirmado por Melman (1992), nesta relação goza-se de uma falta, sendo necessária a assunção de uma identidade, como apontado por ROSA (2006), para que a coisa entre em cena. Esta cena da qual nos referimos, já citada no capítulo anterior, não é sem enquadramento, não por menos, este foi o esforço de nosso recorte. O crackeiro, na medida em que se agrupa, transforma a praça pública em um quadro já conhecido e ainda assim com potencial de estranhamento, trazendo a possibilidade de reconhecermos algo como epidêmico. Assim, os seres aos farrapos passam facilmente a serem vistos como hospedeiros deste não-sei-o-quê de gozo que parece negar seu entorno engajado em desenvolvimento.

Assim como no caso de Dr Jekyll, a angústia surge enquanto um hóspede, seja no corpo ou na garrafa53. Mr. Hyde no movimento de se esgueirar pela soleira da porta, passa a ser o frequentador noturno do templo da ciência do médico respeitado, assim como Jekyll descreve: “passei às escondidas pelos corredores, como um estranho em minha própria casa; e, ao chegar ao meu quarto, vi pela primeira vez a aparência de Edward Hyde” (Stevenson, 2011, pág. 85). Esta visão no espelho, a produção deste retrato no qual não se reconhece o próprio olhar, esta relação com o estranho em si é descrita por Lacan (2005), quando este fala acerca de um hóspede, estranho e ao mesmo tempo familiar,

“A angústia é quando aparece nesse enquadramento o que já estava ali, muito mais perto, em casa, Heim. É o hóspede, dirão vocês. Em certo sentido, sim, é claro, o hóspede desconhecido, que

52 Gíria que é uma abreviação da palavra correria, utilizada para indicar um procedimento para conseguir algo.

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A garrafa pode ser considerada como uma das versões do vaso trabalhado por Lacan.

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aparece inopinadamente, tem tudo a ver com o que se encontra no unheimlich, mas é muito pouco designá-lo desta maneira, pois, como lhes indica muito bem o termo em francês, assim, de imediato, esse hóspede [hôte], em seu sentido comum, já é alguém bastante inquietado pela espera.

Este hóspede é o que já passou para o hostil [hostile] com que iniciei este discurso sobre a espera. No sentido corriqueiro, este hóspede não é o heimlich, não é o habitante da casa, é o hostil lisonjeado, apaziguado, aceito. O que é Heim, o que é Geheimnis [segredo, mistério], nunca passou pelos desvios, pelas redes, pelas peneiras do reconhecimento. Manteve-se unheimlich, menos não habituável do que não habitante, menos inabitual do que inabitado.” (LACAN, 1962-1963, pág. 87).

Se acompanharmos o raciocínio de Lacan, no caso do conto de Stevenson, não é propriamente Hyde54

que serve como representante de uma angústia, mas sua imagem dotada da crueza de um olhar não reconhecível, enquadrada pelo espelho daquele que é bem aceito e bem adaptado, o médico. Portanto, Lacan afirma que, diferente do que Freud elaborou, a angústia não é sem objeto. Assim, o objeto da angústia é descrito como o objeto pequeno a.

4.3. As drogas e o discurso do mestre

Para um trabalho de análise mais pormenorizado de nosso objeto de estudo, perfilemos o discurso do mestre:

Conforme a fórmula apresentada acima, S1 é a representação do significante-mestre, ocupando no discurso o lugar de agência, lugar que abriga

53 Que detém em sua pronúncia e escrita, semelhança com a palavra inglesa: hide, que

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a função do enlaçamento do discurso. Já o S2 está como a representação do saber, ocupando o lugar do trabalho, que é o que está submetido ao ordenamento da mestria. Já abaixo da barra55 está o a. O pequeno objeto a nesta operação representa o gozo e é produção realizada por S1 e S2. Por último o $, que representa a condição do sujeito do inconsciente. Este lugar, onde está o $, é o lugar da verdade, sob recalque do agente, como exposto, do significante mestre (LACAN, 1969 - 1970).

Nesta operação, o S1, significante mestre, tem por função, definir todo um sujeito a outro significante. Entretanto, o sujeito está representado e não está, sendo o inconsciente prova disso (Ibidem). Não é irrelevante, que o S1 se situe sobre a barra e abaixo dela, o $, no caso, o que está em jogo nesta primeira coluna, é a verdade recalcada, a saber, o mestre também é castrado.

Ao trabalharmos com este discurso, pensando sua operação como a governabilidade por meio da estratégia de combate às drogas, temos a seguinte fórmula:

Assim, a agência é realizada pelo medo, compreendido por nós como significante mestre das drogas enquanto ameaça, por isso, em primeiro o perigo das drogas. Já o saber, S2, é trabalhado por meio do combate e prevenção, que são as ações pautadas em um saber do malefício das drogas. Abaixo da barra da segunda coluna, a figura do noia, atualmente representado nas ruas pelo crackeiro56

. Este ocupa o lugar do produto do trabalho feito por S2, produzindo enquanto forma de gozo, o noia, alienado na identidade de resto que lhe é conferida por este discurso. Por último e enquanto verdade

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A barra detém a significação de recalque para a psicanálise

56 Optamos por deixar a gíria “nóia” por este movimento ser compreendido como algo que se repete na questão das drogas. Hoje é o “crackeiro”, amanhã pode ser representado por um usuário de outra substância.

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recalcada, o mal-estar, que diz respeito a cada um em sua condição de sujeito, tamponado pelo discurso das drogas enquanto ameaça a ser combatida.

Esta operação detém uma ambiguidade: a droga não é necessariamente aquilo que é propagandeada, ou seja, aquilo que é construído pelo trabalho do saber. Portanto, pode ser experimentada. Ainda assim, aquele que é visto como drogado por fazer uso da droga, não é somente um drogado. Por mais que o tratem desta maneira57

, o objeto que passa por dejeto é trabalhado de modo que operações governamentais possam tentar justificar suas ações, capitalizando votos, e por meio do medo e da insegurança, abastecer de crédito a máquina da governabilidade. Portanto, nesta operação que retratamos, ocorreria um giro no discurso, e do discurso do mestre, passaríamos ao discurso da histérica, neste próximo discurso entraria em jogo a denúncia, onde a castração do mestre se tornaria explícita.

No entanto, em relação às drogas, este giro parece não se apresentar, e se retomarmos a história das políticas de drogas, já traçadas neste trabalho, podemos indicar que a cada momento em que uma substância se aproxima de perder a sua áurea obscura e vertiginosa, outra surge em seu lugar, reforçando novamente seu status de alta periculosidade e ameaça à ordem social, fazendo do medo um elemento paralisante, o que torna impossível o giro do discurso em um âmbito político e, por consequência, as transformações sociais sobre o tema.

Ao resgatarmos a afirmação de que “é no primeiro efeito [de discurso] que surge a causa como pensada” (LACAN, 1962-1963, pág. 167), que podemos considerar esta operação como uma das estratégias características de governabilidade. Assim como trabalhado no capítulo três, a não demarcação da questão das drogas enquanto saúde, ou mesmo questão cultural, e sua insistência enquanto assunto de segurança pública, é um dos fatores que colabora para tal estagnação. Visto que a precária situação de vida dos usuários e o alto nível de impacto da droga no organismo são identificados como a causa da miséria na qual se encontram. Deste modo, se ocultam as

57 As ações tomadas no início de 2012 pela prefeitura de São Paulo atesta perfeitamente este

tratamento, com um policiamento ostensivo que por meio de agressões físicas, obriga usuários de drogas a sairem de seus abrigos improvisados, pouco importando para onde vão e como irão sobreviver.

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questões referentes à situação econômica, habitacional e até mesmo dos efeitos da proibição sobre a precarização na produção das substâncias, fazendo com que estas cheguem aos usuários cada vez mais prejudiciais à saúde.

Assim, para prosseguirmos com nossa análise, resta explorarmos a demarcação do objeto a enquanto objeto da angústia e suas incidências na história do sujeito com as drogas. Deste modo, demarcamos o apelo às substâncias tóxicas como um importante capítulo na história da humanidade, caracterizado pela tentativa insistente de domar as contradições inerentes ao sujeito da era moderna.

No documento RODRIGO ALENCAR São Paulo 2012 (páginas 77-85)

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