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2.1 DO SURGIMENTO À POSITIVAÇÃO DA TEORIA

2.1.4 As teorias subjetiva, objetiva e mista

Considerar a consistência ou inconsistência lógica da expressão abuso do direito ainda é assunto controvertido, razão por que se faz sempre oportuna a referência às correntes teóricas que nitidamente influenciaram no processo evolutivo da teoria correspondente.

88 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.314.

89 CARPENA, Heloisa. Abuso do direito no Código de 2002: relativização de direitos na ótica civil- constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 379.

Com efeito, as críticas lançadas pelos juristas que tentaram negá-la em muito contribuíram para a posterior afirmação de sua essência e deram-lhe fortes subsídios para que fossem delineados os seus exatos contornos por aqueles que insistiam em afirmá-la, sem olvidar a sua importância na imposição de limites ao exercício de qualquer direito.

Na lição de Luis Guilherme Loureiro, “o abuso do direito, portanto, representa um marco na história jurídica, uma vez que determina o ocaso do conceito tradicional de direito subjetivo”90.

O fato é que se fez presente e incontestável a participação da teoria do abuso do direito na operacionalização da solução de interesses em conflito, em especial nos países onde prevaleceu a tradição jurídica romanística91. Não à toa, algumas formulações marcaram a trajetória evolutiva da teoria do abuso do direito, a ponto de servirem, posteriormente, como critérios seguros para configuração do ato abusivo92. De um lado, desponta a teoria subjetiva a partir da qual se identificava o abuso do direito mediante investigação da intenção do agente ou identificação da sua conduta culposa.

Ao definir a teoria subjetiva como identificadora do exercício abusivo do direito com a única intenção de provocar danos a terceiros, Fábio Ulhôa Coelho assevera que “os limites ao exercício do direito são fixados pela intenção do titular, que não pode ser senão a de satisfazer interesse legítimo; o abuso se caracteriza pela emulação, pela vontade de prejudicar”93.

Também nessa linha, Inácio de Carvalho Neto ensina que, de acordo com essa teoria, que tem raízes na doutrina da emulação, três são os elementos do abuso do direito: “exercício de um direito, intenção de prejudicar e inexistência de interesse econômico”94.

Em um retorno à concepção da teoria subjetiva do abuso do direito à sua utilidade criteriosa de configuração de um ato abusivo, Luis Guilherme Loureiro ensina que “esse critério admite uma subdivisão em três categorias: a que se refere à intenção dolosa do

90 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos no novo Código Civil: teoria geral e contratos em espécie. 2. ed. São Paulo: Editora Método, 2004, p.94.

91 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Civil. v.1. São Paulo: Saraiva, 2003.

92 “A partir do processo de urbanização e industrialização, os tribunais franceses passaram a se ocupar não só de situações em que o direito era exercido com o manifesto propósito de prejudicar, sem utilidade própria, como também das hipóteses de exerccício anti-social do direito previsto em lei. Tanto a vertente subjetivista, caudatária da teoria da aemulatio, desenvolvida no direito romano e no direito medieval, como a vertente objetivista, inspirada nas concepções de solidariedade social, vigentes no século XIX, buscam no artigo 1382 do Código Civil francês o seu fundamento legal” (SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. Abuso de direito processual: uma teoria pragmática. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.25).

93 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Civil. v.1. São Paulo: Saraiva, 2003, p.363. 94 CARVALHO NETO, Inácio de. Abuso do Direito. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2005, p.59.

agente, o que vincula o abuso ao exercício culposo ou negligente dos direitos, e o que exige que exista um exercício sem utilidade ou interesse do direito”95. Segundo o autor, diversas legislações adotaram a fórmula subjetiva de identificação do abuso do direito, a exemplo do Código Civil mexicano, o qual condiciona a determinação do dever de indenizar à

demonstração da dupla exigência da tese subjetivista: intenção de causar o dano e não ter havido qualquer proveito próprio.

Em termos práticos, sugere o critério subjetivo, com base na teoria anterior que o nomina, que há abuso do direito quando o titular exerce o seu direito sem que isso lhe traga qualquer proveito próprio, ou seja, com a única intenção de prejudicar.

Entretanto, à medida que a noção de abuso do direito foi se distanciando da noção de ato emulativo, contrariando a tese subjetiva, eis que desponta a teoria objetiva como uma solução para o método intrínseco amplamente adotado pelo ordenamento, conforme se verifica na lição de Anderson Schereiber:

a intenção de prejudicar já não servia mais de fundamento exclusivo à coibição de todas as hipóteses de ato abusivo. Doutrina e jurisprudência empenharam-se na busca de critérios menos intimistas. A figura foi remetida à proteção aos bons costumes ou ao conteúdo moral do direito. Outras vezes, perdeu-se em referências mais etéreas aos princípios do direito natural ou ao espírito do ordenamento jurídico96.

Ainda segundo o autor, conseguiu-se, finalmente, certo consenso em torno da associação do abuso do direito ao próprio conceito de direito subjetivo, e da “definição do ato abusivo como aquele que supera os limites ou os fins econômicos e sociais do direito

subjetivo exercido”97.

À teoria objetiva, por seu turno, não interessa se o titular de um direito o exerce com ou sem proveito próprio, tampouco se existe da parte dele uma intenção de prejudicar terceiro a partir da prática daquele ato. Prescinde, portanto, do elemento culpa para

configuração do ato abusivo. Nas palavras de Inácio de Carvalho Neto, “para as teorias

95 Merece registro a explicação de Luis Guilherme Loureiro: “esses critérios subjetivos se fundam no princípio de que toda responsabilidade deve ser imputável e, portanto, atribuível ao agente por dolo (malitis hominum non est indulgendum) ou por culpa, já que a pessoa deve sempre agir com o dever de cuidado e com diligência. [...]. Para parte da doutrina, este critério de ‘intenção de prejudicar’ é

considerado como fórmula incompleta para caracterizar o ato abusivo. Josserand afirma que o critério subjetivo representa para a teoria do abuso do direito uma primeira etapa, que foi posteriormente aperfeiçoada graças à utilização de outros critérios mais amplos e fecundos. Para o jurista francês, a pedra do toque da teoria do abuso do direito não está na intenção de danar, mas na falta de motivo legítimo para o exercício do direito” (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos no novo Código Civil: teoria geral e contratos em espécie. 2. ed. São Paulo: Editora Método, 2004, p.96).

96 SCHEREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.110.

objetivas, o abuso do direito é consequência, pura e simplesmente, do exercício anormal do direito, sem indagação da intenção do agente”98.

Ou seja, de acordo com o que informa a teoria objetiva, configura-se abuso o exercício do direito sem a devida observância de sua finalidade econômica e social.

Dessa forma, passa a ser considerada como completamente desnecessária a investigação do elemento psicológico ou meramente emulativo, restando patente o abuso quando o ato for exercido de forma contrária aos limites sociais e econômicos. A teoria objetiva também é conhecida como teoria finalista ou funcional, já que no exercício do direito se deve buscar respeitar sua finalidade ou função.

Com propriedade, Pedro Baptista Martins enfrenta a distinção entre as teorias subjetiva e objetiva, levando em conta os critérios de interpretação para identificação do abuso do direito. Em verdade, segundo ele, a teoria subjetiva inverte os princípios em que se funda o método científico de interpretação, de tal modo que, ao invés de partir do ato exterior para qualificar a intenção e a vontade do agente, parte da intenção e da vontade para a

qualificação do ato exterior. O autor também explica que o “método subjetivo, partindo da investigação da vontade para qualificar o exterior, impossibilita a prova do abuso,

transformando-o em um conceito meramente psicológico”, enquanto o método objetivo, contrariamente, “faz decorrer a intenção do próprio ato danoso, das próprias circunstâncias em que foi praticada, isto é, de elementos materiais, de dados concretos, suscetíveis de uma demonstração imediata”99.

Assim, na contramão da teoria subjetiva, a tese objetiva revela um novo

elemento do ato abusivo, qual seja a sua causa100, o que acrescenta ao tradicional conceito de direito subjetivo um caráter de funcionalidade, já que uma eventual abusividade em seu exercício reflete um desvirtuamento da finalidade econômica e social. Nada mais claro, portanto, quando Pedro Baptista Martins afirma que, na lógica da teoria objetiva, os elementos da circunstância são suscetíveis de uma demonstração imediata101.

98 CARVALHO NETO, Inácio de. Abuso do Direito. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2005, p.59.

99 MARTINS, Pedro Baptista. Abuso do direito e ato ilícito. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1941, 123-124.

100 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos no novo Código Civil: teoria geral e contratos em espécie. 2. ed. São Paulo: Editora Método, 2004.

101 Na opinião de Orlando Gomes, a configuração de um ato abusivo depende do critério que se adote, seja ele objetivo, seja ele subjetivo. Em verdade, segundo ele, “essas divergências dificultam a caracterização do abuso o do direito” (GOMES, Orlando. Contratos. Atualizado por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.121), e completa: “a concepção do abuso do direito é construção doutrinária tendente a tornar flexível a aplicação das normas jurídicas inspiradas numa filosofia que deixou de corresponder às aspirações sociais de sua atualidade. Trata-se de um conceito amortecedor. Sua função precípua é aliviar os choques freqüentes entre a lei e a realidade. No fundo, técnica de reanimação de uma ordem jurídica agonizante, fórmula elástica para reprimir toda ação discrepante de novo sentido que se empresta ao comportamento social” (Ibidem, p.119).

Diante desse paradigma, a terceira teoria surge com base na constatação de que as duas primeiras preenchem pontos positivos e pontos negativos, sendo que a primeira erra em manter os resquícios de uma concepção antiga – construída na era da proibição dos atos emulativos -, e a segunda em provocar uma dissociação completa do ato abusivo ao elemento subjetivo.

A par disso, a crítica de Everardo da Cunha Luna tem lugar quando considera que “a tendência de conceber, objetivamente, o abuso do direito origina-se das doutrinas que querem, a todo transe, fazer o divórcio entre o direito e a moral”102. É neste passo que se destacam aqueles que sustentam a teoria mista, segundo a qual devem ser levados em conta os dois fatores sustentados pelas duas primeiras: o subjetivo e o objetivo103.

A teoria mista aponta o nome de Jorge Americano como um dos seus maiores expoentes. A sugestão é que se analise, objetivamente, a intenção do agente, de acordo com o que socialmente se espera que da conduta de um homem médio e, concluindo pela

anormalidade no exercício do direito, conclua-se pela obrigação de ressarcir o prejuízo causado. Nas suas palavras:

coordenado os elementos colhidos na observação de diversas hyphoteses, podemos reuni-los nos seguintes requisitos, pela co-existência dos quaes se caracteriza o abuso: a) limitação ao exercício de direito; b) ausência de utilidade que legitime o interesse; c) lesão que não resulte forçosamente da natureza do direito exercido104.

Segundo o autor em referência, portanto, deve-se evitar o radicalismo, seja qual for o critério utilizado, guardando, assim, a vantagem da teoria mista, que autoriza a análise objetiva do elemento subjetivo.

Em verdade, a combinação do fator psicológico com o critério objetivo,

inevitavelmente, vem alargar por demais o rol de requisitos necessários à configuração do ato abusivo, na medida em que passam a compor a teoria correspondente os seguintes elementos: a culpa (negligência, imprudência e imperícia), a intenção de prejudicar e, ainda, o exercício irregular do direito (contrário à função socioeconômica ou regra moral). A propósito, merece registro a crítica de Luis Guilherme Loureiro, que revela sua nítida predileção pelo critério desenvolvido a partir da teoria objetiva:

ao nosso ver, o critério finalista ou funcional já engloba o critério subjetivo. O exercício egoístico de um direito, com o só fim de danar, necessariamente viola as finalidades econômicas e sociais para as quais o direito foi criado,

102 LUNA, Everardo Cunha da. Abuso do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p.89-90. 103 MEIRELES, Edilton. Abuso do direito na relação de emprego. São Paulo: LTr, 2004.

104 AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. 2. ed. São Paulo: Saraiva & CIA Editores, 1932, p.35.

contraria a boa-fé e os bons costumes que devem pautar toda conduta humana105.

Em termos práticos, é fácil antecipar que a conduta do juiz passaria a ser

alternativa, vez que este, quando em sua análise sobre o caso em concreto, poderia optar pelo descarte da investigação do elemento subjetivo, passando a examinar se o exercício do direito estaria contrariando ou não a função socioeconômica exigida pelo ordenamento. Por outro lado, também poderia optar pelo inverso, insistindo que fosse demonstrado o elemento intencional presente na conduta do agente. Pior seria, ainda, se o magistrado optasse pela comprovação de ambos os fatores, situação na qual, sem sombra de dúvida, prejudicaria a própria vítima, a quem caberia a obrigação de comprovar o que havia alegado.

De fato, não pode ser esta a postura do ordenamento. Caso contrário, haveria uma lamentável regressão do Direito aos tempos remotos da Idade Média, quando o absolutismo dos direitos subjetivos colocava a vítimas dos atos emulativos na incômoda posição de conformação à sua realidade.