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3.3 OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS

3.3.1 Princípios liberais

3.3.1.3 Força obrigatória dos contratos

Conforme já se afirmou anteriormente, o princípio da força obrigatória do contrato sempre informou que o negócio celebrado deve ser cumprido nos exatos termos em que são firmados. Materializa-se no brocardo romano conhecido como pacta sunt servanda, e

273 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005, p.57.

274 NALIN, Paulo. A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro. In: Nelson Nery Junior (coord.). Revista de Direito Privado. Ano 03. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.40. 275 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p.121.

traduzia-se na ideia de que o contrato tinha validade de lei entre as partes, já que somente a elas interessavam os seus efeitos.

Dessa forma, desde que preenchidos os requisitos legais de validade e existência, a avença tornava-se obrigatória, restando às partes providenciarem o seu devido cumprimento. Como informa Mariana Ribeiro Santiago, “existe uma regra moral segundo a qual o contrato deve manter o caráter sagrado que tira da palavra dada, do dever de consciência imposto ao devedor e da fé do credor na promessa feita”276.

Noutro compasso, Orlando Gomes já afirmava que não era bem assim. Na realidade, a inteligência da força obrigatória dos contratos não se apresenta como corolário exclusivo da regra moral de que todo homem deve honrar a palavra empenhada. Segundo o autor, na verdade, “justifica-se, ademais, como decorrência do próprio princípio da autonomia da vontade, uma vez que a possibilidade de intervenção do juiz na economia do contrato atingiria o poder de obrigar-se, ferindo a liberdade de contratar277.

Com bases nesses moldes, impossível não vincular a figura do contrato a uma força obrigatória que lhe é peculiar desde os tempos mais remotos, compondo inclusive a sua própria definição. Aliás, também foi a partir da noção de força obrigatória dos contratos que passou também a ser considerada a intangibilidade do instituto, proibindo às partes (bem como aos juízes, numa eventual demanda judicial) alterar unilateralmente as disposições contratuais.

Consta que, em face de algumas circunstâncias históricas que fatalmente submeteram o instituto dos contratos a algumas alterações quanto à absoluta obrigatoriedade do seu cumprimento, foi necessário compreender que o surgimento de um evento

extraordinário, superveniente e imprevisível, capaz de alterar radical e profundamente o equilíbrio da relação contratual tal qual inicialmente previsto, causando manifesta

desproporção econômica entre as partes, poderia justificar a revisão do conteúdo contratual ou mesmo, a depender do caso, a extinção deste vínculo278.

Foi nesse contexto em que primeiro se observou a ocorrência de algumas técnicas jurídicas apropriadas à solução dos casos especiais em que se notava completa impossibilidade de execução da avença contratada nos mesmos moldes acordados no

276 SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2005, p.37.

277 GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p.36.

278 Eugênio Kruschewsky, referindo-se ao esforço dispensado quando da eclosão da Primeira Grande Guerra, explica que houve uma modificação marcante das “condições existentes no momento da celebração do contrato em comparação com as verificadas quando da sua execução” e que, em consequência disso, “o preço de insumos úteis à fabricação de armamentos e munição, como carvão, ferro, pólvora aumentaram exponencialmente, o mesmo caminho percorrido pelos gêneros

alimentícios, em face da destruição de campos cultivados bem como de extrema dificuldade em viabilizar a distribuição desses produtos, em razão do fechamento de muitas estradas e vias férreas” (KRUSCHEWSKY, Eugênio. Teoria Geral dos Contratos Civis. Salvador: JusPodivm, 2006, p.15).

momento da celebração do negócio. A onerosidade excessiva e a teoria da imprevisão (até então, a cláusula rebus sic standibus) favoreceram a mitigação da pretensa intangibilidade dos contratos naquele contexto, diante do fato de que a inadimplência das partes não correspondia diretamente a sua vontade, mas ao evento imprevisível que influenciou as bases da execução contratual279.

É o que explica Rosalice Fidalgo Pinheiro ao sustentar que é com fundamento da função social do contrato que se promove necessária intervenção neste, revelando um

rompimento de sua intangibilidade, para promover a justiça contratual. Ainda com base nesse raciocínio, arremata a autora que “há, então, o ressurgimento de institutos como o da lesão, a cláusula rebus sic standibus, sob a forma da teoria da imprevisão e da base negocial e, especialmente, da teoria do abuso do direito”280. É inegável a elevação da importância do instituto do abuso do direito na esteira das relações contratuais, posto que, como se sabe, é mais fácil identificar um ato abusivo no contexto do direito de propriedade, enquanto que ainda é incipiente a adequada identificação deste no bojo de uma relação contratual.

Modernamente, como se sabe, a exemplo do princípio da relatividade dos efeitos do contrato, que dizem respeito – apenas relativamente, e não exclusivamente – às partes contratantes e são relativizados em face do princípio da função social dos contratos, a

obrigatoriedade contratual também é repensada em face dos ideais solidários e sociais que se impõem neste âmbito, repercutindo nos clássicos princípios liberais. Assim, todas as

modificações do princípio da autonomia da vontade refletiram-se também na visão atual do princípio da relatividade dos efeitos do contrato, “pois o interesse social passou a sobrepujar o interesse individual, de forma a permitir que a sociedade possa questionar a função de cada contrato particular”281.

Dessa forma, tornou-se ultrapassada a concepção de relatividade dos efeitos do contrato como princípio pelo qual ele só gera efeito para aqueles que o pactuaram, não

279 Pontua-se, fundamentalmente que, se o contrato faz lei entre as partes, também há que se recordar que na comparação da lei com o contrato, residem muitas semelhanças, mas também irradiam

diferenças fundamentais. Nesse raciocínio, Mariana Ribeiro Santiago, citando San Tiago Dantas, anota que “assemelham-se a lei e o contrato no sentido de que ambos são normas de conduta e normas de composição de conflitos, ou seja, possuem a dupla função de orientar o comportamento de pessoas e orientar o julgador no momento do litígio. Por outro lado, distinguem-se radicalmente do ponto de vista de que o contrato é sempre particular, deflui da vontade das partes, dirigindo-se à pessoas determinadas e inspirado em interesse particular, enquanto a lei é geral, deflui do Estado, dirigindo-se aos cidadãos e aos juízes para que estes apliquem-na, sendo inspirada num interesse social”

(SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2005, p.37-38).

280 PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Abuso do direito e as relações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.178.

281 Op. Cit. SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2005, p.60.

beneficiando nem prejudicando terceiros, impossibilitando outras pessoas, além dos próprios contraentes, questionarem o vínculo contratual.

Assim, o princípio da relatividade dos contratos já não pode mais ser elevado à condição de dogma, haja vista que dogmas são como verdades absolutas e incontestáveis, portanto, totalmente incompatível com o que se entende por Direito como uma ciência transformadora, que atua com apoio na experiência, sendo intolerante a posições imutáveis. De acordo com Paulo Luiz Netto Lôbo, os princípios sociais dos contratos, tais como o da função social e da boa-fé objetiva, não eliminam os princípios liberais como

o princípio da autonomia privada (ou da liberdade contratual em seu tríplice aspecto, como liberdades de escolher o tipo contratual, de escolher o outro contratante e de escolher o conteúdo do contrato), o princípio de pacta sunt servanda (ou da obrigatoriedade gerada por manifestações de vontades livres, reconhecida e atribuída pelo direito) e o princípio da eficácia relativa apenas às partes do contrato (ou da relatividade subjetiva); mas limitaram, profundamente, seu alcance e conteúdo282.

Intrigante, contudo, é a indagação sobre a razão que levou os juristas a não resistirem àquela realidade na qual prevalecia a autonomia da vontade, a força obrigatória dos contratos e a o princípio da relatividade dos seus efeitos como premissas absolutas.

É nesse contexto, enfim, que hoje se nota importância da teoria da imprevisão, a qual se condiciona ao preenchimento de alguns requisitos específicos para sua efetiva

aplicação: tratar-se de contrato de execução continuada ou diferida no tempo, ocorrência de um fato extraordinário e imprevisível; alteração radical da base econômico-substancial do contrato e onerosidade excessiva para uma das partes, de modo a acusar excessiva

desproporção quantitativa entre as partes envolvidas, tornando inviável a satisfatória execução do negócio.

De outro lado, o Código Civil atual também prevê a possibilidade de revisão contratual por onerosidade excessiva, com base nos artigos 478 a 480, cumprindo a mesma atuação da teoria da imprevisão e distinguindo-se, fundamentalmente, pela desnecessidade de verificação do requisito posto no evento imprevisível e extraordinário, bastando tão somente a existência da onerosidade excessiva pura. Inicialmente, era aplicada apenas às relações de consumo, cabendo a revisão contratual mesmo sendo causa originária do contrato celebrado, pois quase configurava como prática abusiva impor ao consumidor desvantagem exagerada ou exigir dele vantagem manifestamente excessiva. É o que explica Roxana Cardoso Brasileiro Borges, que arremata afirmando que já se percebe na jurisprudência o entendimento de que a

282 LÔBO, Paulo Luiz. Princípios sociais dos contratos no CDC e no novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n.55. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/2796> Acesso em 17 jan.2011.

revisão por onerosidade excessiva pode ser feita em relação a qualquer contrato, “seja consumeirista ou paritário, por uma exigência de justiça contratual”283.

Conclui-se, por estas razões, ter o princípio da obrigatoriedade do contrato sofrido grandes limitações devido às alterações ocorridas no seio da própria noção de

contrato, oriundas da evolução observada no âmbito econômico e social desde o século XIX, passando a tolerar, inclusive, mesmo que em situações de excepcionalidade, a revisão

contratual.