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As teorizações sobre a fé perceptiva Esquema geral

No documento Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty (páginas 186-200)

Capítulo IV – O método indireto da ontologia madura de Merleau-Ponty

B) As teorizações sobre a fé perceptiva Esquema geral

Antes de oferecer sua resposta, Merleau-Ponty analisa o tratamento dado ao problema da fé perceptiva por diferentes empreitadas teóricas. No decorrer dessa análise, ao tornar claras as limitações dessas empreitadas, Merleau-Ponty delineia a forma de interrogação filosófica conveniente para investigar a fé perceptiva. Vamos acompanhar as linhas gerais dessa análise crítica contida nos três primeiros capítulos de

O Visível e o Invisível, para então finalmente expor a abordagem positiva do tema em

questão, contida no quarto capítulo desse livro.

Lembremos que a fé perceptiva impõe uma mistura entre uma tese de cunho objetivo (o mundo se apresenta tal como é) e uma de cunho subjetivo (o mundo se apresenta por meio das capacidades perceptivas). As duas primeiras empreitadas teóricas estudadas por Merleau-Ponty se caracterizam por romper essa tensão interna à atividade perceptiva e privilegiar apenas um dos aspectos da complexa experiência originária que se tratava de esclarecer. A primeira delas é a ciência objetivista, que faz

da experiência perceptiva o resultado de relações materiais determinadas causalmente. Por conseguinte, o paradoxo da fé perceptiva é dissolvido em favor da exposição do

mundo tal como ele é. A segunda delas é a filosofia reflexiva, que acentua em demasia o

papel das capacidades subjetivas na apresentação do mundo, o qual deve se conformar às possibilidades internas da subjetividade cognoscente. Não reproduziremos aqui todos os tópicos examinados por Merleau-Ponty quanto a esses dois métodos teóricos (o científico e o reflexivo). Interessa-nos somente mostrar os problemas de ambos em relação à fé perceptiva.

Análise da ciência

Para Merleau-Ponty, as pesquisas objetivistas (no sentido já especificado no quarto capítulo) tentam reconstruir a experiência perceptiva como efeito de processos causais puramente físicos. No entanto, essa reconstrução, julga o filósofo, longe de dissipar a importância da fé perceptiva como contato primordial com o mundo, pressupõe-na (Cf. VI, 31). Afinal, tais pesquisas, que tomam os dados fenomenais como meros índices de relações físicas, admitem que as operações matemáticas, pelas quais essas relações são descritas, são adequadas ao ser objetivo, quer dizer, se conformam a ele e o descrevem tal como ele é. Ora, essa admissão transporta de maneira acrítica a

crença perceptiva no contato direto com o mundo para a investigação científica (Cf. VI,

32, 35, 36-7)11. Haveria, assim, uma ambigüidade das pesquisas objetivistas em relação à fé perceptiva: ao mesmo tempo em que elas a reduzem a um efeito de relações causais objetivas, tais pesquisas se servem da crença fundamental veiculada por tal fé (atingir diretamente o ser), a qual é reproduzida no nível da relação entre aparato científico e ser objetivo.

Além de pressupor o modo pelo qual a atividade perceptiva se dirige para o ser, as pesquisas objetivistas deveriam reconhecer, sugere Merleau-Ponty, que a própria experiência perceptiva é, em alguma medida, uma condição para o entendimento dos sistemas físicos. Segundo o filósofo, a física contemporânea teria explicitado que as propriedades das partículas não são descritíveis em termos puramente objetivos, mas sim em relação à experiência do observador. Segue-se que tal experiência não é só efeito de relações exteriores a ela, mas parte indispensável do sistema natural físico a

11 Vimos no segundo capítulo que Merleau-Ponty defendera tese semelhante, em A Prosa do Mundo,

quanto à interpretação realista das entidades matemáticas. Essa interpretação, segundo a qual haveria um mundo de entes matemáticos independente de nosso conhecimento, reproduz a crença em um mundo independente da subjetividade, crença que se origina na atividade perceptiva (Cf. PM, 172-3).

188 ser compreendido (Cf. VI, 31-2)12. Dessa maneira, os resultados da física de partículas sugerem uma reforma ontológica que substitua as noções opostas de objeto físico e de interioridade psíquica por aquela de campo de experiência. Merleau-Ponty lamenta que tal reforma não tenha ocorrido plenamente, uma vez que os resultados experimentais inovadores são comumente traduzidos para a ontologia objetivista tradicional13. No entanto, importa notar, e não só no âmbito da física, mas também da psicologia14, a insuficiência da abordagem que supõe de antemão a antinomia entre um domínio objetivo e um subjetivo. Para Merleau-Ponty, a abertura perceptiva ao mundo repugna essa distinção e sustentá-la implica, assim, a recusa em compreender a complexidade pela qual o mundo se mostra para nós. Infelizmente, julga o filósofo, as abordagens científicas mais difundidas são aquelas que pressupõem tal distinção (e favorecem o ser objetivo como causa do subjetivo), e, desse modo, elas devem ser deixadas da lado na investigação da fé perceptiva. Por sua vez, a crítica às abordagens objetivistas não compromete Merleau-Ponty com uma perspectiva anti-científica, a qual, por exemplo, circunscreveria um conjunto de fatos que por princípio escaparia aos métodos científicos (Cf. VI, 40, 46). A fé perceptiva não é um tema por princípio alheio à análise científica; porém, uma vez que o objetivismo compõe a metodologia em voga na maior parte das investigações científicas, trata-se de um tema que não é adequadamente estudado por essas últimas15.

A filosofia reflexiva

Após a análise da ciência, Merleau-Ponty passa a expor as diferentes estratégias da filosofia ante a fé perceptiva. Vimos que a ciência, tal como exposta acima, tentava assimilar o caráter irremediavelmente subjetivo da apresentação do mundo a relações objetivas. Essa assimilação dissolvia o paradoxo da fé perceptiva, embora a perspectiva ingênua de atingir o mundo tal como ele é continuasse atuante ao menos na metodologia objetivista. Já a primeira variante filosófica examinada em O Visível e o Invisível, a

12 Vimos, no terceiro capítulo, que Merleau-Ponty já defendera, nos cursos editados em A Natureza, a tese

de que os conteúdos percebidos devem servir de modelo às teorias físicas.

13 Merleau-Ponty já explorara as dificuldades da ciência em aceitar uma nova ontologia em A Estrutura

do Comportamento (Cf. SC, 33, 84, 145).

14 Merleau-Ponty analisa a Gestalttheorie, a psicologia social e a psicofisiologia (Cf. VI, 37-47).

15 Lembremos, tal como expusemos no quarto capítulo, que o objetivismo não é um componente essencial

da ciência, mas uma opção metodológica com determinadas conseqüências ontológicas. Para Merleau- Ponty, “nenhuma ontologia específica é requerida pela investigação dos físicos” (VI, 34), tese que ao menos deixa em aberto a possibilidade de uma abordagem científica que pudesse estudar sem distorções a fé perceptiva.

filosofia reflexiva, se caracteriza por executar o movimento oposto: assimilar as relações

objetivas às capacidades subjetivas. Merleau-Ponty tem em vista o idealismo radical, que converte a atividade perceptiva em um modo de pensamento e interpreta a experiência do mundo como atualização de possibilidades internas do sujeito cognitivo (Cf. VI, 48-9).

Essa conversão idealista extingue o paradoxo da fé perceptiva ao reduzir o mundo percebido a possibilidades intelectuais do sujeito cognoscente. É verdade que mesmo a filosofia reflexiva não pode negar que as coisas percebidas parecem existir de maneira autônoma, independentemente dos poderes subjetivos (o que justamente gera o paradoxo da fé perceptiva). Porém, segundo tal doutrina, essa dificuldade superficial é superada pela tese da estrita correlação entre a estrutura das coisas (e do mundo em geral) e a estrutura do pensamento humano. Por trás da ingenuidade e das confusões do sujeito empírico vigoraria a clareza do sujeito transcendental, para quem o mundo fenomênico jamais extrapola as possibilidades de seu arcabouço intelectual. Assim, sob os equívocos da fé perceptiva, a filosofia reflexiva localiza um pensamento constituinte que delimita a amplitude da experiência e justifica a certeza ingênua de se estar em contato com as próprias coisas ao defender que tais coisas jamais escapam às capacidades cognitivas humanas.

Merleau-Ponty rejeita a estratégia pela qual a filosofia reflexiva pensa resolver o enigma da fé perceptiva, e apresenta ao menos dois argumentos para tanto. No primeiro deles, o filósofo mostra que a suposição de um pensamento ordenador sob a fé perceptiva está errada; no segundo, revela como os procedimentos reflexivos dependem da atividade perceptiva, a qual, então, é fundante em relação ao pensamento, conforme veremos a seguir.

No primeiro argumento (Cf. VI, 53-4), o filósofo nota, de início, que a filosofia reflexiva pretende descobrir um pensamento constituinte da experiência, o qual seria sempre ativo. No entanto, não é possível desvelar tal pensamento constituinte, pois todo pensamento é uma modificação de uma experiência irrefletida anterior. Portanto, deve- se reconhecer que o pensamento não é co-extensivo com a experiência, mas posterior a ela.

Segundo esse argumento, não é correto postular um pensamento constituinte que organiza e delimita a experiência, pois desse modo se perderia um dos principais aspectos dessa última: o seu caráter irrefletido. O que caracteriza a experiência perceptiva, ao menos na descrição de Merleau-Ponty, é a sua independência de atos

190 reflexivos ou pensamentos expressos16. O pensamento reflexivo nasce de um estado de ignorância inicial. Ao postular a identidade entre pensamento e experiência, a filosofia reflexiva torna incompreensível o surgimento do primeiro, um processo que pressupõe um estado irrefletido prévio.

O segundo argumento (Cf. VI. 58-9) conclui que a reflexão é dependente das estruturas perceptivas. Para tanto, Merleau-Ponty retoma o movimento argumentativo da filosofia reflexiva: trata-se de uma passagem da análise da percepção bruta para a análise do pensamento sobre a percepção. Nessa passagem, supõe-se que a coisa percebida na experiência em questão se mantenha a mesma. Essa convicção de que o

conteúdo da experiência vivida permanece idêntico na reflexão sobre tal experiência se

origina na atividade perceptiva. Afinal, o entrelaçamento espontâneo da duração da percepção bruta com aquela do exame reflexivo é da ordem da sensibilidade, é uma das estruturas da percepção corporal.

Nesse argumento, Merleau-Ponty mostra que a reflexão depende das virtudes da retenção temporal. E como o filósofo atribui essas virtudes à experiência corporal, fica claro que a reflexão supõe, como sua condição, a vivência irrefletida. Já havíamos notado a remissão das estruturas da temporalidade à experiência corporal ao analisar os cursos A Instituição e A Passividade, em nosso terceiro capítulo. Em O Visível e o

Invisível, o filósofo mantém esses resultados: é por meio das modificações do ponto de

vista corporal em relação às coisas percebidas (ou seja, por meio da duração corporal) que o sujeito aprende sobre a permanência dessas (ou seja, sobre uma duração inerente às coisas) (Cf. VI, 58). E a convicção irrefletida da permanência das coisas numa duração contínua está na base do esforço intelectual de manutenção de um mesmo objeto ante o olhar reflexivo. Assim, o funcionamento da reflexão decorre de uma estrutura intencional que se enraíza na vivência do corpo.

Contra a filosofia reflexiva, Merleau-Ponty sugere uma sobre-reflexão [surréflexion] (VI, 60, 69), ou seja, uma reflexão que se mantenha atenta às

modificações que ela mesma produz sobre a experiência irrefletida e que, dessa forma,

reconheça a autonomia dessa última ante os procedimentos reflexivos. Era apenas por ignorar essas modificações que a filosofia reflexiva assimilava a fé perceptiva a um pensamento constituinte. Como vimos, essa assimilação é falsa, uma vez que a atividade perceptiva somente fornece o solo sobre o qual a reflexão pode se erguer.

A atividade perceptiva envolve uma mistura, difícil de ser explicada teoricamente, entre uma tese “objetiva” e uma “subjetiva”. Vimos, nas duas últimas seções, que tanto a ciência quanto a filosofia reflexiva tentam submeter uma dessas teses à outra. O seu fracasso comprova a necessidade de respeitar os dois aspectos constituintes da fé perceptiva. No segundo capítulo de O Visível e o Invisível, Merleau- Ponty analisa uma estratégia que pretende considerar a fé perceptiva em sua real complexidade: a filosofia de Sartre.

A ontologia sartreana

Na primeira e maior seção do segundo capítulo de O Visível e o Invisível, intitulada “A fé perceptiva e a negatividade”, Merleau-Ponty expõe como Sartre, principalmente em O Ser e o Nada, lida com o problema da fé perceptiva. Dessa análise, bastante longa e detalhada, reproduziremos somente sua estrutura argumentativa geral, a qual é composta de três partes. Na primeira delas, consideram-se as aparentes virtudes da ontologia sartreana quanto ao tema da fé perceptiva (parágrafos três a sete do segundo capítulo). Na segunda, avalia-se o esquema lógico-conceitual dessa ontologia (parágrafos oito a doze) e, na terceira, a descrição da experiência provida por ela (parágrafos treze a quinze).

De início, Merleau-Ponty expõe como a ontologia sartreana parece preservar as características da fé perceptiva. Após definir o mundo como plena positividade (ser em- si) e desinflar a esfera da subjetividade ao concebê-la como pura negatividade (para-si), Sartre extrai algumas conseqüências das relações entre esses dois pólos, as quais aparentam exprimir o conteúdo da fé perceptiva. Como o mundo é absolutamente em-si, é possível afirmar que ele existe, de maneira independente da subjetividade. No entanto, como essa é um puro nada, não subsiste sozinha e sempre está preenchida por algum aspecto ou perspectiva do ser em-si. Daí surge o mundo fenomenal, para o qual a subjetividade se abre sem nenhum intermediário. Assim, por um lado, o sujeito é estrangeiro às coisas, já que é um puro nada. Mas por outro, está destinado a elas, e só existe envolvido pelo ser, de modo a lançar-se em um mundo fenomênico segregado sobre a pura positividade e plenitude do em-si.

Essas teses parecem reproduzir a abertura para o mundo (já que o nada é consagrado ao ser) e a possibilidade de encobrimento (já que o ser é exterior ao nada), propriedades pelos quais Merleau-Ponty caracterizara a fé perceptiva. Vale notar aqui que Merleau-Ponty explicita uma outra característica da fé perceptiva, a qual Sartre

192 aparentemente também teria respeitado: a abertura a um mundo intersubjetivo (Cf. VI, 83). No primeiro capítulo de O Visível e o Invisível a intersubjetividade não é, ao menos de início, parte das “crenças” veiculadas pela fé perceptiva. Na verdade, ali, apela-se à intersubjetividade somente como a um recurso tardio para tentar resolver o paradoxo da fé perceptiva (Cf. VI, Cap. I, § 6-7): a presença de outrem poderia confirmar que as coisas existem como tais mesmo se limitadas aos relatos dos poderes do corpo, já que

elas seriam percebidas não só por um sujeito, mas por vários. Contudo, o fato de que o

sujeito A possa perceber o sujeito B em contato com as mesmas coisas que ele (A) reconhece, não resolve o caráter paradoxal da fé perceptiva, mas somente o reitera. Afinal, B é percebido por meio das estruturas corporais de A, e a mesma proximidade e

distância instauradas por elas em relação ao mundo se repetem quanto a B, mais um

tema percebido que depende da fé perceptiva de A17.

Já no segundo capítulo, Merleau-Ponty admite explicitamente que o problema da fé perceptiva não se restringe ao contato entre sujeito e mundo, mas também abrange a relação entre os sujeitos: percebem-se outros sujeitos, os quais aparecem em sua existência autônoma, embora o acesso a eles seja limitado àquilo que se manifesta na experiência perceptiva.

Dissemos que em princípio Sartre também parece respeitar a experiência intersubjetiva tal como ela se manifesta por meio da fé perceptiva. De fato, é possível conceber, sob a terminologia sartreana, que diferentes subjetividades sejam preenchidas pela plenitude do em-si e se relacionem em um mundo comum. Contudo, Merleau- Ponty julga que Sartre não chega realmente a conceber um campo de relações efetivas entre sujeitos, mas que apenas propõe uma difícil convivência entre vários mundos privados. Ao definir cada sujeito como puro nada, Sartre implica que cada um se dirige ao ser em-si e é moldado pelas situações mundanas. Na condição de sujeitos situados, os para-sis deixam expostas a situação exterior em que cada um deles se torna reconhecível, conforme as determinações históricas e sociais do mundo. Assim, cada para-si só estabelece contato com a situação mundana que nega o puro nada constitutivo de outro para-si. Não há relação efetiva entre os sujeitos, mas somente a exibição dos aspectos situacionais passivamente cristalizados em cada para-si (Cf. VI, 99).

17 “A intervenção de outrem não resolve o paradoxo interno de minha percepção: ela acrescenta a ele esse

Segundo Merleau-Ponty, a experiência intersubjetiva, tal como descrita por Sartre, não acrescenta nenhum novo conhecimento aos sujeitos, ou seja, não é fonte de aprendizado sobre si próprio. Para a filosofia sartreana, a intersubjetividade ocorre principalmente por meio do olhar, o qual alcança somente os sujeitos enquanto cristalizados nas situações mundanas. Dessa maneira, o olhar apresenta outrem não como puro para-si, mas como sujeito objetivado pelas relações mundanas. Mas essa objetivação, cada sujeito a conhece interiormente, pois o preenchimento do nada pelo ser do mundo é decorrente da sua própria estrutura ontológica subjetiva. Por conseguinte, julga Merleau-Ponty, a intersubjetividade narrada por Sartre não vai além de uma confirmação empírica do envolvimento do nada subjetivo no ser mundano (Cf. VI, 99). Conforme vimos no segundo capítulo, para Merleau-Ponty a intersubjetividade fornece mais do que uma verificação de estruturas ontológicas independentes de e anteriores ao contato inter-humano. Que se considere, por exemplo, a inserção dos sujeitos no mundo por meio de suas vivências sensíveis. O exercício intersubjetivo da linguagem oferece as condições para que as experiências sensíveis realizem sua pretensão de validade universal. Assim, as relações intersubjetivas não apenas explicitam as estruturas ontológicas pelas quais os sujeitos se inserem em seu meio, mas

compõem essas próprias estruturas de maneira indispensável.

Ao expor o tema da relação entre os para-sis, começamos a acompanhar a

avaliação de Sartre por Merleau-Ponty. As limitações sartreanas quanto à

intersubjetividade decorrem da sua definição de sujeito como nada e de ser como em-si, a qual já delimita de antemão as relações intersubjetivas como exteriores, ou seja, mediadas por situações mundanas em que cada para-si jamais se mostra tal como é. Esse veredicto sobre a intersubjetividade sartreana está inserido em uma avaliação global da filosofia de Sartre por Merleau-Ponty, a qual examina, em primeiro lugar, o seu esquema lógico-conceitual (Cf. VI, Cap. II, § 8-12). Acompanhemos mais de perto essa análise.

Segundo Merleau-Ponty, Sartre parte da oposição entre ser e nada, e promete um ser mais amplo (que incluiria o nada) como resultado final de sua ontologia (Cf. VI, 93). Dadas as definições iniciais do nada como ausência de propriedades e do ser como plenitude absoluta, segue-se uma relação bastante rígida entre sujeito e mundo: o primeiro se abre imediatamente para o segundo, preenchendo-se do ser, o qual, por sua vez, nega a pureza da subjetividade ao torná-la sempre situada. No entanto, a relação entre ser e nada também é bastante frágil, uma vez que ambos são opostos absolutos que

194 jamais se confundem de fato. Essas relações ambivalentes entre ser e nada frustram, julga Merleau-Ponty, as pretensões sartreanas de apresentar uma noção ampliada de ser em geral. Uma vez que o ser é definido como oposto ao nada, não há passagem lógica que permita a incorporação desse último no primeiro. Seria necessário modificar as definições iniciais para obter o resultado esperado, o que Sartre não faz.

Merleau-Ponty considera uma possível objeção à sua análise: revelar a ambivalência do esquema conceitual sartreano seria insuficiente para criticá-lo, pois Sartre estaria na verdade oferecendo uma descrição da experiência (Cf. VI, 104). Quer dizer que Sartre tomaria como base para a sua filosofia certos fatos inegáveis da existência humana, de modo que seu esquema lógico-conceitual não seria senão uma decorrência da maneira como nossas vivências inevitavelmente ocorrem. A ambivalência do esquema lógico-conceitual não seria, assim, um problema, mas simplesmente a expressão da experiência, a qual, ela mesma, seria ambivalente.

Para responder a essa objeção, Merleau-Ponty passa a avaliar a qualidade

descritiva da filosofia sartreana (Cf. VI, Cap. III, § 13-15). Apresentar a experiência (tal

qual propõe Sartre) como relação entre um nada (exterior ao mundo) em contato direto com o ser pleno captaria somente a impressão subjetiva, gerada pela atividade visual, de se abranger o mundo inteiro pelo olhar sem se misturar com nenhum evento ou situação mundana (já que o sujeito seria algo oculto, atrás dos olhos). No entanto, essa impressão de que se pode sobrevoar o mundo sem estar nele envolvido não corresponde à totalidade da experiência visual. Merleau-Ponty defende que o exercício da visão supõe um sistema orgânico visual, o qual é visível: o sujeito vidente possui olhos, os quais estão inseridos em um corpo e funcionam de acordo com o equilíbrio sistêmico desse último em relação ao meio ambiente. Mais do que oferecer uma descrição naturalista do exercício da visão, importa a Merleau-Ponty acentuar que tal exercício

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