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Capítulo IV – O método indireto da ontologia madura de Merleau-Ponty

A) A fé perceptiva

A última filosofia de Merleau-Ponty

Neste capítulo, estudaremos O Visível e o Invisível a fim de esclarecer as linhas gerais do projeto ontológico final de Merleau-Ponty, além de acentuar algumas diferenças entre a reflexão aí esboçada e aquela desenvolvida na Fenomenologia da

Percepção. Vamos nos concentrar em alguns tópicos dos quatro capítulos e no pequeno

anexo do livro, sem nos deter nas notas de trabalho, as quais serão consideradas com mais detalhes no próximo capítulo. De início, é importante notar que a meta da investigação filosófica apresentada por O Visível e o Invisível é exprimir a experiência silenciosa, o contato perceptivo (anterior à atividade reflexiva) com o mundo (Cf. VI, 18, 164). Merleau-Ponty chega mesmo a retomar a famosa frase de Husserl que já guiava as análises da Fenomenologia da Percepção (“é a experiência ainda muda que se trata de levar à expressão pura de seu próprio sentido”1) e com ela encerra o terceiro capítulo de O Visível e o Invisível (Cf. VI, 169), como que resumindo a discussão precedente sobre a natureza da interrogação filosófica.

Buscamos diferenças entre O Visível e o Invisível e a Fenomenologia da

Percepção, e, no entanto, já admitimos de início que a meta filosófica de ambos é a

mesma: a Fenomenologia da Percepção almejava explicitar a experiência pré-reflexiva (Cf. PhP, XIII, 75), um mote reiterado por O Visível e o Invisível. Essa reiteração poderia sugerir que Merleau-Ponty retoma a análise fenomenológica em seu último livro. Mas isso só seria verdadeiro se a investigação da experiência pré-reflexiva

exigisse o método fenomenológico. É verdade que ao praticar a fenomenologia, nos

anos quarenta, Merleau-Ponty investigou a experiência antepredicativa, mas não se

1 Husserl, E. Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge. Hua I. Haag: Martinus Nijhoff, 1950,

178 segue daí que todo estudo de tal experiência implique a abordagem fenomenológica. Defenderemos que, embora o autor retome em O Visível e o Invisível alguns dos principais temas da Fenomenologia da Percepção, o resultado final oferecido pelos quatro capítulos esboçados daquele livro não é uma análise fenomenológica, e sim uma interrogação ontológica que chega mesmo a romper com alguns princípios da fenomenologia. A retomada dos temas fenomenológicos ocorre não porque Merleau- Ponty se dedica a uma nova análise fenomenológica, mas porque o filósofo se preocupa em recuperar algumas teses da Fenomenologia da Percepção no contexto de uma nova ontologia, cujos traços principais tentaremos delinear a seguir2.

Da percepção à fé perceptiva

O Visível e o Invisível se inicia com a exposição, ainda não filosoficamente

elucidada, da experiência da fé perceptiva. Por meio dessa noção, Merleau-Ponty tenta capturar a “crença” (independente de qualquer esforço reflexivo) pela qual normalmente os sujeitos acreditam estar em contato com o mundo tal como ele existe em si mesmo3. O filósofo parece simplesmente repetir o sentido que já atribuíra à noção de fé perceptiva na Fenomenologia da Percepção. Ali, Merleau-Ponty associava tal noção à consciência pré-reflexiva e à vida perceptiva em geral: a “fé perceptiva” apenas explicita o sentido de “percepção”, ao tornar patente o fato de que a atividade perceptiva adere ao mundo mesmo sem dispor de dados absolutamente certos e mesmo sem realizar verificações teóricas que atestassem a certeza de suas visadas (Cf. PhP, 344, 371, 395, 415, 468). Porém, o uso da expressão “fé perceptiva” em O Visível e o

Invisível veicula certas decisões filosóficas pelas quais o filósofo se afasta de suas

posições anteriores. É o que fica claro no anexo de seu último livro. Ali, Merleau-Ponty esclarece que pretende investigar o contato com o mundo bruto, e, para tanto, interroga a experiência ingênua tal como ela aparece para o “homem natural” (VI, 210), quer dizer, aquele que não reflete sobre sua vivência. Vimos em nosso primeiro capítulo que a Fenomenologia da Percepção também pretendia descrever a experiência ingênua, e que, desse modo, mais uma vez as semelhanças parecem se sobrepor às diferenças entre o início e o fim da obra do filósofo. No entanto, tais diferenças se tornam mais salientes quando Merleau-Ponty afirma, na seqüência do anexo, que os conceitos filosóficos ou

2 Segundo Merleau-Ponty, há a “necessidade de levar [os resultados da PhP] à explicitação ontológica”

(VI, 234, fev. 1959).

psicológicos tradicionais não são adequados para descrever a experiência ingênua, já que muitas vezes eles impõem sobre ela distinções teóricas artificiais. Esse seria o caso do termo “percepção”, que pressuporia a cisão do fluxo vivido em diferentes atos perceptivos, cada um em referência a coisas determinadas. Além disso, o termo “percepção” se aplicaria, no mais das vezes, a coisas materiais e espaciais, o que parece excluir qualquer relação de algo invisível com o mundo percebido (Cf. VI, 207). Para Merleau-Ponty, a experiência da abertura originária para o mundo desconhece tais restrições. Não é claro, de início, que a experiência bruta do mundo seja de coisas bem definidas em correlação com atos pontuais, ou que um domínio invisível não se mostre

indiretamente, por meio do que é dado aos sujeitos. Por julgar que o termo “percepção”

já decide esses pontos de maneira injustificada, Merleau-Ponty o abandona em favor de “fé perceptiva”, descrição pretensamente neutra em relação aos temas mencionados.

Surpreendente nessa análise terminológica é que Merleau-Ponty parecia utilizar o termo “percepção” sem implicar seja uma referência a coisas definidas seja a exclusão de um domínio invisível. A Fenomenologia da Percepção considera que jamais se percebe as coisas por inteiro, já que elas sempre se mostram de maneira parcial4. E não só as coisas não são percebidas como objetos bem definidos, mas também algo que não é “coisa”, o horizonte, (e, por meio dele, toda a amplidão do mundo) também é percebido5. Além disso, Merleau-Ponty considera que mesmo a ausência dos objetos também é percebida6. Não deixa, por conseguinte, de ser estranha a recusa de um vocábulo por atribuir a ele um sentido que a própria Fenomenologia da Percepção expusera que não lhe cabia exclusivamente. Porém, embora as razões apresentadas pelo anexo de O Visível e o Invisível não pareçam ser suficientes para o abandono do termo “percepção”, a idéia geral de que a “fé perceptiva” não está comprometida com certas decisões teóricas pelas quais a “percepção” era definida nos anos quarenta se confirma. Para explicitar tal confirmação, devemos retornar ao início de O Visível e o Invisível.

Conforme apontamos há pouco, O Visível e o Invisível se abre com a exposição da opinião injustificada (trazida pela experiência perceptiva) de que estamos em contato

4 “Ver é entrar em um universo de seres que se mostram, e eles não se mostrariam se eles não pudessem

esconder-se uns atrás dos outros ou atrás de mim” (PhP, 82).

5 “Quando eu olho o horizonte, ele não me faz pensar nessa outra paisagem que eu veria se eu lá

estivesse, essa em uma terceira paisagem e assim por diante, eu não me represento nada, mas todas as paisagens estão já aí no encadeamento concordante e na infinidade aberta de suas perspectivas” (PhP, 380).

6 “O percebido não é necessariamente um objeto presente diante de mim como termo a conhecer, ele pode

ser uma ‘unidade de valor’ que só me é presente de um modo prático. Se se retirou um quadro de um cômodo em que habitamos, nós podemos perceber uma mudança sem saber qual” (PhP, 371).

180 com o mundo tal como ele é. Em seguida, Merleau-Ponty indica que, embora vivida de maneira simples e convincente, essa fé perceptiva leva a um paradoxo quando

teorizada. Ocorre que a vivência da fé perceptiva admite de bom grado que o contato

com o mundo se dê por intermédio da atividade do corpo e dependa das capacidades desse último. Porém, o corpo porta uma ambigüidade insuperável: por meio dele se atinge as coisas mesmas mas também é possível se isolar em aparências fantasmáticas, eventos reveladores dos limites e da falibilidade da atividade corporal (Cf. VI, 21-23). O corpo, dessa maneira, é meio de acesso e de afastamento em relação ao mundo, e, mesmo assim, o sujeito perceptivo ingênuo crê atingir o próprio mundo por meio dele. Essa pretensão ou fé perceptiva não é problemática na experiência ingênua. No entanto, quando formulada em tese, tal como fizemos, gera um saber paradoxal. É como se uma tese de cunho objetivo (o mundo se apresenta tal como é) devesse ser compatibilizada com uma tese de cunho subjetivo (o mundo é o que se apresenta por meio das estruturas corporais). Trata-se de uma junção teoricamente difícil, uma vez que não parece ser possível atingir sempre o mundo tal como ele é por meio de estruturas corporais, as quais por vezes somente apresentam imagens subjetivas, a que nada de real corresponde. Um dos grandes desafios de O Visível e o Invisível, uma vez admitida a interrogação da experiência ingênua como tarefa da filosofia, é tornar teoricamente compatíveis essas características da fé perceptiva. Como veremos, será por meio do desenvolvimento das noções ontológicas sugeridas pelo método indireto que tal meta poderá ser cumprida. Esse desenvolvimento implica distinguir a fé perceptiva da consciência pré-reflexiva ou percepção tal como concebida nos anos quarenta.

Lembremos que na Fenomenologia da Percepção, a consciência perceptiva era o fundo silencioso de todos os atos subjetivos e a responsável (dado seu contato direto com o mundo) pela distinção entre realidade e sonho (Cf. PhP, XI). Além de definir a percepção como fonte de nossa relação com o ser, Merleau-Ponty, conversamente, definia o ser como aquilo passível de se manifestar de modo fenomênico (Cf. PhP, 455), ou seja, como o que é composto por propriedades subjetivamente apreensíveis. Todo ente ou evento que pareça escapar aos limites da experiência humana (como o passado do mundo, por exemplo) era reduzido a construções culturais, a significações tardias erigidas sobre a experiência pré-reflexiva (Cf. PhP, 494), a qual acaba por delimitar a amplitude daquilo que existe.

É exatamente essa delimitação subjetiva do ser que é rompida em O Visível e o

corpo e limitado ao domínio exploratório desse último, eis o duplo sentido da fé

perceptiva. O corpo tanto leva a subjetividade até o mundo como também pode afastá-la

dele, dadas as limitações das estruturas corporais (especializadas em apenas alguns aspectos do ser, tais como a visibilidade e a tangibilidade). Uma vez exposta essa dupla característica da fé perceptiva, Merleau-Ponty extrai a seguinte conclusão: o mundo não é só o que eu percebo em uma “proximidade absoluta” (VI, 23), ele também está numa “distância irremediável” (Ibid.), pois a sua presença depende de condições corporais que podem ser insuficientes para apresentá-lo em sua totalidade. Assim, a experiência perceptiva não implica, em O Visível e o Invisível, uma correlação exaustiva com o real, já que a abertura inicial ao mundo não exclui de direito uma ocultação possível (Cf. VI, 48). Como nota Merleau-Ponty, “a certeza que eu tenho de estar vinculado ao mundo por meu olhar me promete já um pseudo-mundo de fantasmas se eu o deixo errar” (VI, 47). Fé e incredulidade estão unidas na experiência perceptiva, assevera O

Visível e o Invisível. Daí que a abertura originária ao ser não possa mais ser identificada

à percepção, tal como descrita nos anos quarenta. Segundo O Visível e o Invisível, embora o mundo se revele ao sujeito pela atividade perceptiva, essa apresentação depende de estruturas que não abrangem a totalidade daquilo que existe. Há a possibilidade de que o ser se oculte à atividade perceptiva, ou seja, de que as estruturas corporais não apreendam a sua totalidade, ressalva ausente na Fenomenologia da

Percepção. Nesse livro, conforme vimos no primeiro capítulo, tudo o que escapa à

experiência atual do corpo era ainda concebido como estrutura perceptivelmente apreensível. O caráter autônomo do mundo era concebido como uma infinidade de relações expressivas entre os eventos, a qual jamais poderia ser apreendida de uma só vez pelo corpo e se reduzir, assim, a um mero correlato subjetivo (Cf. PhP, 373-4). No entanto, nenhuma dessas relações constitutivas do em-si mundano excediam por princípio as capacidades perceptivas, as quais dispunham da lógica total da organização dos fatos mundanos (Cf. PhP, 377).

Por sua vez, em O Visível e o Invisível, ao tratar da experiência perceptiva em termos de abertura e encobrimento do ser, Merleau-Ponty abandona a estrita correlação entre realidade e conteúdo perceptivo: a manifestação perceptiva do mundo não anula mas antes alimenta (dada a forma como se cumpre, por meio do corpo) a possibilidade de ocultação de ao menos parte do ser. Por meio dessa interpretação da fé perceptiva, Merleau-Ponty não mais se compromete com a tese de que tudo o que existe ou deve se conformar aos parâmetros perceptivos ou então deve ser considerado uma significação

182 cultural construída sobre esses parâmetros (Cf. PhP, 494). Em O Visível e o Invisível, uma tese semelhante é atribuída à filosofia reflexiva, para quem “é fora de questão que o mundo possa preexistir à minha consciência do mundo” (VI, 70). É para esse tipo de filosofia (a qual atribui ao pensamento humano o papel de organizador da experiência) que não há interrogação “sobre o que pode ser o Ser antes que ele seja pensado por mim” (VI, 72). Segundo a filosofia reflexiva, os objetos mundanos devem corresponder à atividade constitutiva do sujeito, ou seja, devem ser moldados segundo os poderes de síntese desse último. Na Fenomenologia da Percepção, esse tipo de limitação da amplitude do ser conforme as capacidades subjetivas de reconhecimento ainda continuava em vigor, embora não mais em relação ao pensamento e sim às estruturas

perceptivas do corpo. Por meio da atividade perceptiva, o corpo era responsável, nesse

livro, por atribuir uma estrutura ordenada ao mundo (Cf. PhP, 494). Desse modo, o sujeito perceptivo descrito por Merleau-Ponty repetia a função geral que o sujeito cognitivo exerce na filosofia reflexiva7. Em O Visível e o Invisível, o filósofo problematiza essa concepção: a abertura perceptiva apresenta o mundo, mas não em sua totalidade, pois o ser pode se encobrir ante as estruturas corporais, ou seja, pode não se doar diretamente como visível, tangível, etc., mas permanecer como aspecto ou dimensão invisível, que só se doa originariamente como ausência8.

7 Seguimos, quanto a esse ponto, a interpretação de Vincent Peillon (La Tradition de l’Esprit. Itinéraire

de Maurice Merleau-Ponty. Paris: Bernard Grasset, 1994, p.150-1). Esse autor defende que embora Merleau-Ponty sustente uma concepção de sujeito bem diferente daquela de Descartes ou Kant (filósofos tachados de intelectualistas na Fenomenologia da Percepção), seus resultados são convergentes com os desses autores. Merleau-Ponty censura Descartes e Kant por favorecerem o sujeito como constituinte das relações com o mundo. Entre sujeito e mundo deveria haver relações “rigorosamente bilaterais” (PhP, IV), isto é, esses autores deveriam considerar que ambos os pólos, subjetivo e objetivo, contribuem igualmente para a elaboração da experiência vivida. No entanto, dificilmente o próprio Merleau-Ponty sustentaria tal reciprocidade entre sujeito e mundo. Embora tente reconhecer uma transcendência inerente ao mundo, ou seja, uma densidade e autonomia que escapam aos poderes da consciência, Merleau-Ponty acaba por defender que é o próprio sujeito que atribui transcendência ao mundo (já que em seu movimento de existir, sempre se lança para fora de si e molda assim um campo ontológico exterior a si), e que as articulações e estruturas que compõem o mundo são aquelas que correspondem às capacidades perceptivo-motoras do sujeito (Cf. PhP, 491-2). É claro que para o fenomenólogo francês o sujeito da experiência é o corpo próprio, o qual não forja representações de objetos baseadas em categorias formais, mas se refere a situações que se perfilam gradualmente e jamais são possuídas por completo (Cf. PhP, 163, nota). Mas mesmo ao apresentar como sujeito da percepção não uma consciência conceitual e sim o corpo, Merleau-Ponty ainda defende na Fenomenologia da Percepção que é por meio de poderes subjetivos (no caso, não poderes intelectuais, mas perceptivo-motores) que o mundo recebe a sua estrutura geral (Cf. PhP, 494).

8 E essa dimensão invisível estrutural, que de direito escaparia aos poderes perceptivos, não se confunde

com os casos em que ocorre a percepção da ausência de determinados objetos (tal como Merleau-Ponty considerava na Fenomenologia da Percepção – cf. nota 6 supra). Nesses últimos casos, o ausente em questão poderia ser assimilado como presença, como algo que se doa positivamente; por sua vez, não há essa possibilidade em relação à dimensão invisível do ser.

Françoise Dastur resume de maneira bastante elucidativa esse ponto ao expor o que está implicado no uso da expressão “fé perceptiva” em O Visível e o Invisível: “esta abertura, que é a experiência, pode nos abrir a uma ausência originária e não somente a uma presença originária, de modo que não nos é mais possível opor estritamente presença e ausência, visibilidade e invisibilidade, mas nos é necessário, antes, analisar [faire l’épreuve de] seu mútuo entrelaçamento”9. Assim, ao tratar do contato com o mundo em termos de fé perceptiva em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty não retoma as virtudes da consciência perceptiva descrita pela Fenomenologia da

Percepção, mas considera a possibilidade de que o ser se encubra, e que, por

conseguinte, não se esgote em sua presença perceptiva. O problema da ilusão

Em O Visível e o Invisível Merleau-Ponty não descreve mais a experiência perceptiva apenas como abertura, mas também como encobrimento do ser. Essa última característica esclarece a especificidade do sentido de “fé perceptiva” ante o termo “percepção”, tal como usado pelo filósofo nos anos quarenta. Notemos que ao exemplificar o encobrimento inerente à fé perceptiva, Merleau-Ponty assevera que o corpo pode gerar um pseudo-mundo fantasmagórico (Cf. VI, 47). Esse tipo de exemplo pode nos levar a crer que todo o problema da fé perceptiva se restringe ao reconhecimento de que os poderes perceptivos não estão imunes a erros ou ilusões. Ora, não é nesse ponto que o projeto filosófico da Fenomenologia da Percepção e de O

Visível e o Invisível se distinguem. No primeiro desses livros, Merleau-Ponty já trata do

tema da ilusão sensível e oferece uma análise que, na verdade, O Visível e o Invisível retoma em seus termos gerais. No livro de 1945, o filósofo admitia que uma aparência perceptiva tomada isoladamente pode ser enganosa. Afinal, cada ato perceptivo apreende apenas dados parciais das coisas e situações, e adere a seu conteúdo (nele crê, poderíamos dizer) mesmo sem abarcar todos os componentes daquilo que se doa à percepção. No entanto, os dados parciais sempre envolvem espontaneamente outros dados co-percebidos, que instituem horizontes de verificações passíveis de exploração10 (por exemplo, se vejo uma face de uma caixa de papelão, “percebo” concomitantemente suas outras faces, as quais meu olhar busca de maneira espontânea como expectativas

9 Dastur, F. “La foi perceptive et l’invisible”. In: Chair et Langage. Paris: Encre Marine, 2001, p.115. 10 São dois os horizontes: o interno, referente aos aspectos que compõem a coisa percebida, e o externo,

184 que complementariam essa percepção da face isolada). É por meio da exploração desses horizontes (aos quais toda visada parcial se liga espontaneamente) que se pode reconhecer uma ilusão (por exemplo, ao procurar a face lateral da caixa e nada encontrar, meu olhar reconhece que se tratava somente de uma imagem bidimensional que imitava uma caixa). A ilusão se caracteriza, assim, como um dado aberrante, que destoa do encadeamento harmônico de aspectos percebidos. Há então uma relação cerrada entre a possível falha de percepções individuais e a sua substituição por apreensões perceptivas mais confiáveis (Cf. PhP, 343, 396). Quanto mais concordante a exploração dos horizontes co-percebidos, mais confiável se torna a percepção de uma certa coisa ou situação. E quanto mais confiável essa percepção, conhece-se as estruturas do mundo de maneira mais precisa, embora não de maneira absolutamente completa, já que em princípio toda percepção pode ser corrigida por visadas futuras. Acentuemos que em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty volta a definir a ilusão

sensível por seu contraste com a explicitação concordante dos horizontes perceptivos.

Esse processo de desilusão é apresentado como meio para uma “experiência definitiva do ‘real’” (VI, 63), a qual apreende de maneira confiável e precisa alguns aspectos do mundo.

É preciso cuidado ao correlacionar esse problema da diferença entre experiência verdadeira e ilusória com aquele da distinção, propiciada pela fé perceptiva, entre abertura ao mundo e encobrimento do ser. A compreensão errada desses temas nos levaria a perder a originalidade de O Visível e o Invisível ante a Fenomenologia da

Percepção. Consideremos um primeiro esquema do problema:

abertura: experiência verdadeira do mundo 1) Fé perceptiva

encobrimento: ilusão/engano

Sabemos que para Merleau-Ponty a fé perceptiva se compõe de duas dimensões,

No documento Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty (páginas 177-186)