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Novos dados indiretos para a ontologia Fenomenologia e ciências humanas

No documento Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty (páginas 164-177)

Capítulo IV – O método indireto da ontologia madura de Merleau-Ponty

B) Novos dados indiretos para a ontologia Fenomenologia e ciências humanas

Em meados dos anos cinqüenta Merleau-Ponty aborda a fenomenologia à luz de um questionamento explicitamente ontológico. Segundo o artigo “Sobre a Fenomenologia da Linguagem”, de 1951, “o que me é ensinado pela fenomenologia da linguagem não é somente uma curiosidade psicológica” (S, 110). As análises fenomenológicas revelam um poder de expressão inerente à fala, o que implica reconhecer a centralidade do sujeito falante no estudo da língua. E como esse poder é um caso da intencionalidade corporal (Cf. S, 111), a produtividade da fala deve ser remetida ao sujeito encarnado, o qual, como sabemos desde a Fenomenologia da

Percepção, está em correlação com o mundo pré-reflexivo. Todos esses temas

envolvem uma “concepção do ser” (S, 118) e não se limitam a relatos psicológicos31. Merleau-Ponty sustenta que esse teor ontológico da fenomenologia já se encontra nos textos do próprio Husserl. A fim de comprovar essa tese, o filósofo francês retoma um argumento exposto na Fenomenologia da Percepção: é verdade que Husserl considerava as análises do mundo da vida como meramente preparatórias para a

30 Tal como notamos em nosso primeiro capítulo, Merleau-Ponty chega, ao menos em uma passagem, a

considerar essa hipótese (Cf. PhP, 250-1).

31 Vimos, em nosso primeiro capítulo, que Merleau-Ponty já pretendeu extrair uma concepção de ser das

verdadeira análise transcendental; no entanto, ao se investigar tal mundo, revela-se a vida encarnada, a qual não pode ser absorvida pela consciência transcendental pura (Cf. S, 115-6). Dessa maneira, o projeto idealista husserliano dá ocasião a uma investigação ontológica do mundo percebido.

Merleau-Ponty desenvolve esse tema do rompimento com o idealismo, que direciona até então a sua leitura de Husserl, de maneira a exibir uma aproximação entre os resultados da fenomenologia e aqueles das ciências humanas. Esse é o tópico principal do curso “As ciências do homem e a fenomenologia” (1951). Nesse curso, o filósofo retoma alguns elementos da perspectiva interpretativa assumida na

Fenomenologia da Percepção, segundo a qual a problemática husserliana se inicia com

tensões entre psicologismo e logicismo, as quais se resolvem por uma redução fenomenológica concebida de maneira idealista (retorno à consciência pura como fonte de todo sentido) (Cf. PPE, 404). Além disso, o filósofo francês também defende que, em sua última fase, Husserl não mais apelaria a uma consciência fundante dos fenômenos, mas buscaria “reencontrar um sujeito já engajado nos fenômenos” (PPE, 405). Desse modo, haveria um rompimento mais ou menos explícito com o idealismo da segunda fase e o reconhecimento da prioridade da experiência concreta em relação às essências pelas quais a estrutura dos fatos seria conhecida.

Essa reabilitação da experiência concreta aproxima a fenomenologia de várias ciências humanas. Merleau-Ponty expõe as relações entre o pensamento de Husserl e a psicologia, a lingüística e a história. O filósofo francês assevera que, num primeiro momento, Husserl julgaria que por meio de ontologias eidéticas regionais circunscrevem-se as noções fundamentais a que as disciplinas positivas deveriam se dedicar. Por exemplo, para estudar o psiquismo, os psicólogos precisam saber de antemão o que se entende por um fenômeno psíquico, e isso só é possível se se dispõe da essência dessa região em questão, a qual se revelaria para uma intuição eidética (Cf. PPE, 408). Husserl reconheceria desde cedo que essa intuição eidética depende da apreensão de fatos, dos quais se buscam justamente as estruturas gerais. O fenomenólogo alemão teria admitido mais tardiamente que os mesmos fatos também estão disponíveis para a psicologia empírica, a qual os estuda não por meio de variações imaginárias, mas por comparações efetivas propiciadas pelos métodos indutivos. Assim, Husserl não negaria haver um paralelismo geral entre fenomenologia e psicologia empírica, e rejeitaria a estrita fundação da primeira pela segunda (Cf. PPE, 412). Essa progressão do pensamento de Husserl se repetiria na questão da linguagem: o filósofo

166 alemão passaria de uma eidética dos modos de significação (a qual revelaria a fonte de toda língua possível) à consideração de um sentido inerente às falas empíricas, o qual a lingüística, à sua maneira, também explicitaria. Tal progressão também seria reconhecível no que concerne ao tema da história: Husserl passaria da busca por uma filosofia fundada numa evidência atemporal para a valorização da sedimentação histórica do sentido filosófico. Assim, de modo geral, haveria um esforço de Husserl para instaurar uma complementaridade entre facticidade e reflexão transcendental, entre as ciências positivas e a filosofia (Cf. PPE, 415-20). Esse esforço seria, segundo Merleau-Ponty, mais radical do que aquele de Scheler, defensor da existência de certas essências eternas (Cf. PPE, 421), e do que aquele de Heidegger, defensor, tal como expusemos no capítulo anterior, da filosofia como um poder irrestrito de exploração do mundo, poder independente de qualquer recurso às ciências humanas (Cf. PPE, 422).

No artigo “O filósofo e a sociologia”, publicado em 1951, Merleau-Ponty salienta que um dos méritos de Husserl é ter elaborado um “domínio e uma atitude de pesquisa em que a filosofia e o saber efetivo poderiam se encontrar” (S, 128). Essa aproximação das investigações cientifica e fenomenológica reforça o projeto de renovação ontológica adotado por Merleau-Ponty nos anos cinqüenta. Vimos que em “Sobre a fenomenologia da linguagem” o filósofo defende que aos resultados das descrições fenomenológicas se deve atribuir um teor ontológico. A convergência desses resultados com os temas das ciências humanas ratifica essa conclusão, pois, segundo Merleau-Ponty, certos estudos científicos (que pesquisam as estruturas concretas, conforme o capítulo anterior) sugerem uma renovação ontológica, a qual vai ao encontro das teses fenomenológicas. As pesquisas lingüísticas, por exemplo, revelam “a mediação do objetivo e do subjetivo, do interior e do exterior que a filosofia procura” (PPE, 87). Assim, a explicitação de um ser anterior à cisão entre subjetividade e objetividade estaria prefigurada seja em algumas pesquisas científicas seja em algumas descrições da fenomenologia.

O ser anterior à constituição

À medida que a investigação ontológica de Merleau-Ponty avança, altera-se seu interesse pela fenomenologia. O filósofo abandona a interpretação segundo a qual haveria três fases distintas na obra de Husserl, e passa a sustentar somente que no decorrer da maturação do pensamento husserliano ocorre uma oscilação entre projeto e resultados. Merleau-Ponty expõe como compreende tal maturação no curso “A filosofia

hoje” (1958-1959). De início, Husserl pretenderia formular uma filosofia rigorosa e baseada em princípios apodíticos, a qual se contrapõe ao psicologismo e ao historicismo. Para tanto, o filósofo alemão buscaria atingir as essências necessárias dos temas tratados, ou seja, os princípios invariantes pelos quais se pode, por exemplo, reconhecer um fato como pertencente a uma determinada classe de eventos. As essências seriam obtidas por uma redução eidética, quer dizer, pela explicitação das características definidoras dos fatos particulares, aquelas sem as quais eles deixariam de ser o que são. Nas Investigações Lógicas, Husserl não defenderia que tais essências existem de maneira autônoma, mas sim que elas são postas por atos de intuição e vigoram, assim, como correlatas da atividade subjetiva (Cf. NC, 67). Em seguida, no período das Idéias e de Meditações Cartesianas, Husserl estenderia o anti-realismo referente às essências para toda relação com o mundo. Nesse período, com a assunção do idealismo transcendental, o filósofo alemão examinaria de que maneira as intencionalidades subjetivas condicionam não só o acesso às essências dos fatos, mas mesmo aos objetos da percepção, os quais se doam como conjuntos de fenômenos em correlação com atos doadores de sentido (Cf. NC, 68). Husserl se encaminharia, assim, para a explicitação da consciência transcendental, responsável pelo estabelecimento do sentido das experiências vividas. No entanto, tal como já notara na Fenomenologia da

Percepção, Merleau-Ponty sustenta que ao investigar a experiência em suas diversas

camadas (as quais deveriam ser remetidas ao poder constituinte da consciência), Husserl acabaria por desvelar um sentido sensível fundante da atividade subjetiva. Mas tal desvelamento é apresentado pelo filósofo francês, nos anos cinqüenta, como um

resultado que convive com a perspectiva idealista, e não (tal qual expunha em algumas

passagens da Fenomenologia da Percepção) como o advento de uma fase existencialista, em que Husserl encerraria sua carreira.

Importa a Merleau-Ponty, nos anos cinqüenta, tomar esse resultado da filosofia husserliana como índice de uma ontologia a se realizar. Em seu primeiro curso sobre a natureza (1956-1957), por exemplo, conforme tratamos no terceiro capítulo, Merleau- Ponty expõe como Husserl mostra alguns pressupostos pré-reflexivos da atitude teórica, ou seja, da formulação de conhecimento científico. A noção de coisas objetivas, independentes da subjetividade, supõe, em primeiro lugar, a atividade corporal. O sujeito toma consciência das coisas em correlação com os movimentos do corpo próprio (Cf. N, 108). Em segundo lugar, para que os resultados da percepção não se limitem a fenômenos privados, é preciso considerar o caráter intersubjetivo da experiência. É a

168 confirmação de que uma coisa se manifesta publicamente (confirmação que exige o assentimento de vários sujeitos) o que atribui solidez aos temas da experiência individual, inconfundíveis então com aparências meramente particulares (Cf. N, 109). Além disso, Merleau-Ponty nota que, em seus textos finais, Husserl apresenta um

terceiro elemento condicionante das idealizações da atitude teórica: um solo ou meio ambiente em que a existência humana se desenvolve. Esse é o tema do manuscrito “A

Terra como arca originária não se move”, texto que o filósofo francês provavelmente conhecera já em 1939 e que ganha destaque nas reflexões de seus últimos anos de vida. Husserl reconhece, nesse texto, que a Terra não se reduz a um objeto qualquer no universo objetivo, mas é a base que sustenta todo pensamento humano, uma camada

concreta que torna possíveis as idealizações criadas pela subjetividade (Cf. N, 110-1).

Merleau-Ponty retoma essas conclusões em seu curso “Husserl nos limites da fenomenologia” (1959-1960), no qual se dedica a traduzir e analisar alguns textos do filósofo alemão, principalmente “A origem da geometria como problema histórico- intencional”, famoso anexo de A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia

Transcendental, além de retornar ao manuscrito “A Terra como arca originária não se

move”. A escolha desses dois textos não é arbitrária. Ao expô-los, Merleau-Ponty pretende mostrar que, seja em relação à superestrutura ideal (no que tange aos objetos geométricos) seja no que concerne à base terrena do ego, Husserl vislumbraria temas que não poderiam ser tratados pela análise constitutiva estrita, pois sua organização significativa não surgiria de atos de consciência. Segundo o filósofo francês, Husserl, em “A origem da geometria”, apela para a facticidade da escrita a fim de tornar compreensível a permanência dos objetos geométricos para além da sua descoberta. É preciso que as invenções geométricas sejam registradas materialmente para que se tornem idealidades universalmente disponíveis e independentes dos episódios subjetivos em que foram criadas. Desse modo, a aparente validade atemporal dos objetos geométricos supõe os instrumentos culturais de comunidades humanas localizadas espaço-temporalmente. Por conseguinte, “o mundo ideal [está] apoiado sobre o mundo sensível” (OG, 69), quer dizer, a validade objetiva das significações geométricas decorre de processos de instituição de sentido que envolvem condições factuais. Além disso, nesse mesmo curso, Merleau-Ponty volta a acentuar o estudo husserliano da Terra como base para o pensamento humano. A Terra seria a arca originária, a qual (assim como a arca de Noé salvaguardou a vida em meio ao oceano) assegura toda a possibilidade de existência humana em meio ao universo material (CF. OG, 90). Ao

investigar a Terra assim concebida, Husserl teria explicitado uma condição sensível para a própria reflexão transcendental.

No artigo “O filósofo e sua sombra”, de 1959, Merleau-Ponty continua as reflexões acerca do reconhecimento de camadas pré-reflexivas pela fenomenologia husserliana. Tal reconhecimento não teria ocorrido de maneira explícita; porém, sua presença inegável em alguns textos indica haver um impensado na obra husserliana, quer dizer, um conjunto de teses que excede o quadro teórico no interior do qual o autor conscientemente pretende se mover. Como excesso aos próprios instrumentos teóricos de um autor, o impensado não é obviamente analisado por quem o cria; no entanto, sugere uma direção a ser explorada pelos leitores (Cf. S, 203). Essa direção, no caso de Husserl, é exatamente aquela rumo ao mundo pré-reflexivo, cujo sentido não se reduz àquele constituído pela subjetividade cognoscente. Ao estudar o papel do corpo, da intersubjetividade e da Terra, Husserl teria desvelado tal mundo como “um inverso das coisas que nós não constituímos” (S, 227), mas que alimenta a vida subjetiva.

Esse inverso dos atos constituintes não se confunde nem com o em-si objetivista (já que ela se compõe de significações sensíveis, que se manifestam ao sujeito) nem com as puras representações subjetivas (já que tal sentido justamente não é constituído pelo sujeito) (Cf. S, 209). Nas notas do primeiro curso sobre a natureza tomadas por Xavier Tilliete e publicadas com o título “Husserl e a noção de natureza”, o mundo pré- reflexivo é “um modo de ser original, um ser em estado selvagem” (PII, 229). Trata-se daquilo que é denominado carne do sensível (Cf. S, 211), ou seja, arranjos inerentes ao próprio ser por meio dos quais o mundo se prepara de seu interior para uma apreensão subjetiva (embora não dependa de tal apreensão para se ordenar como tal)32.

Ao explicitar tais arranjos, a fenomenologia, que pretendia afirmar o caráter ativo da subjetividade em todas as experiências, termina por exibir uma camada ontológica de que a própria reflexão depende (Cf. NC, 84). Nesse sentido, a fenomenologia, tal como ocorre com as ciências e as artes (cf. Capítulos III e IV), sugere uma investigação ontológica do ser primordial, o qual não se confunde com aquilo que é fruto da atividade subjetiva, sem com isso se identificar a um tipo de em-si incognoscível. Os resultados da empreitada husserliana são, assim, outra fonte de dados

indiretos para Merleau-Ponty desenvolver sua ontologia. Por conseguinte, em seus anos

finais, mais do que se servir dos conteúdos diretamente fornecidos pelas descrições

170 fenomenológicas, importa a Merleau-Ponty desenvolver aquilo a que tais descrições apontam como seu limite: um ser que excede o papel de correlato dos atos subjetivos e fornece a base para tais atos.

Os limites da fenomenologia

Nos anos quarenta, Merleau-Ponty expunha que os resultados não idealistas da fenomenologia husserliana facultavam a exploração da existência encarnada como tema básico de uma análise transcendental renovada, da qual, conforme a seção passada, a

Fenomenologia da Percepção seria exemplo. Por sua vez, nos anos cinqüenta, Merleau-

Ponty encontra nesses mesmos resultados uma ocasião para investigar o ser bruto ou

primordial, alheio às categorias clássicas. Essa dupla utilização dos temas husserlianos

se deve ao fato de que Merleau-Ponty, em ambos os casos, os assimila segundo projetos filosóficos próprios. No primeiro caso, seu projeto era o de extrair conseqüências filosóficas do estudo da percepção tal como conduzido pela Gestalttheorie. No segundo, trata-se de conceber uma noção ampliada de ser, que não se limite à manifestação subjetiva (tal como expusemos nos capítulos anteriores). Assim, as teses husserliana são ora apropriadas no contexto de uma investigação da existência humana ora no contexto de uma investigação do ser primordial33.

33 Esse procedimento de apropriação de temas filosóficos à luz de uma problemática própria se repete em

relação a Descartes. Em A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty elogia a radicalidade da intenção filosófica de Descartes: questionar as justificativas do conhecimento baseadas na existência do mundo exterior e investigar a estrutura interna da experiência para aí encontrar a base de todo saber (Cf. SC, 210). No entanto, Descartes não seguiria essa via de maneira satisfatória; a experiência revelada pelas Meditações Metafísicas, por exemplo, é abstrata. Ali, Descartes consideraria somente o pensamento de ver, e ignoraria que o fato da visão envolve um contato com os eventos mundanos (Cf. SC, 212). Para corrigir a perspectiva cartesiana, é preciso investigar não só a atividade subjetiva inerente à percepção, mas também o contato do sujeito com as existências concretas, de maneira a rejeitar uma posição estritamente idealista. Eis a tarefa que Merleau-Ponty pretende cumprir ao elaborar uma fenomenologia da percepção. Já em seus últimos anos, interessa a Merleau-Ponty explicitar a ontologia de Descartes, a fim de contrastá-la com a concepção contemporânea do ser. Merleau-Ponty toma Descartes como “alguém que teve uma certa experiência do Ser exprimido nessa prioridade oficial do conhecimento” (NC, 233), tema que tanto marca a obra do autor clássico. No entanto, Merleau-Ponty crê que, mesmo se privilegia o conhecimento, Descartes entrevê o ser pré-reflexivo, e oferece, assim, sugestões proveitosas para a ontologia contemporânea. Nos primeiros textos de Descartes, tal como Regras para a Direção do Espírito, a presença do pré-reflexivo no seio da esfera epistêmica seria reconhecível pelo uso de metáforas sensíveis para as capacidades cognitivas (tal como luz natural para o entendimento humano), as quais indicariam a prioridade do contato perceptivo com o mundo, contato que se torna modelo da empreitada do conhecimento (Cf. NC, 224-6). E mesmo nos textos tardios de Descartes, como Meditações Metafísicas, em que se criticam entre tantos outros prejuízos os dados recebidos pela percepção, o ser pré-reflexivo ainda seria ali reconhecível. O advento do cogito estaria fundado em uma experiência irrefletida da subjetividade como campo de manifestação de todos os fenômenos possíveis: tudo o que aparece deve se conformar às estruturas da consciência humana. É esse projeto silencioso de todo ser, “essa constatação ou experiência de que eu sou inalienável para mim” (NC, 249), que possibilita a posterior formulação reflexiva do cogito como natureza intelectual inata e universal. Merleau-Ponty conclui, assim, que em ambas as fases da filosofia cartesiana é possível encontrar uma referência

No interior desse último contexto, Merleau-Ponty julga, como vimos na subseção passada, que Husserl teria antevisto o ser primordial anterior às cisões entre propriedades subjetivas e objetivas. Nesta subseção, vamos questionar se a análise ontológica de tal ser pode se realizar no quadro teórico da própria fenomenologia ou se exige alguma ruptura com seus procedimentos.

A primeira nota de trabalho publicada em O Visível e o Invisível testemunha a favor da importância dos temas husserlianos na elaboração da ontologia de Merleau- Ponty. Ali, em referência a “O filósofo e sua sombra”, o autor planeja “dar um quadro do Ser selvagem prolongando meu artigo sobre Husserl” (VI, 217, jan. 1959). Será que a referência ao filósofo alemão indica que o estudo desse ser selvagem (anterior aos atos de constituição) ocorrerá por meio de um tipo de fenomenologia? A seqüência da nota desfaz essa impressão: o desvelamento do ser selvagem entrevisto pela fenomenologia permanece “letra morta enquanto nós não desenraizamos a ‘filosofia objetiva’ (Husserl)” (Ibid.). A fenomenologia husserliana se limitaria a tratar de objetos, e, desse modo, restringiria as possibilidades de avançar na investigação do ser pré-reflexivo anunciado sob seus marcos. Merleau-Ponty também acentua outra limitação da fenomenologia: essa doutrina envolve “uma ontologia que submete tudo o que não é nada a se apresentar à consciência por meio das Abschattungen e como derivando de uma doação originária que é um ato, isto é, um Erlebnis entre outros” (VI, 293, abril 1960). A fenomenologia delimitaria o ser como aquilo que pode se manifestar à consciência e que, assim, se submete às capacidades sintéticas subjetivas. Veremos que Merleau-Ponty rejeita essa concepção ontológica, a qual não vigoraria somente na obra husserliana mas mesmo na fenomenologia praticada por ele mesmo nos anos quarenta. Antes, porém, vejamos como essas duas censuras (filosofia objetiva e limitação do ser àquilo que se apresenta à consciência) se complementam, ao menos no que se refere à Husserl.

Em vários momentos de sua obra, Husserl indica que, para aplicar a redução fenomenológica, deve-se suspender as crenças referentes à existência do mundo objetivo tal como considerado pelas ciências e pelo senso comum34. Desse modo, revelar-se-ia o mundo fenomênico anterior às idealizações objetivantes (mundo implícita a um ser pré-reflexivo, e julga que “Descartes é o mais difícil dos autores” (NC, 264), porque tal referência é difusa e alimenta inúmeros mal-entendidos.

34 Cf. Husserl, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie I. Ed.

172 chamado por Husserl, em A Crise das Ciências européias, de Lebenswelt)35. No

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