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Percepção e linguagem

No documento Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty (páginas 75-84)

Capítulo II – Investigações sobre a linguagem

C) Percepção e linguagem

A percepção enformada culturalmente

Em diversos textos, Merleau-Ponty assimila a idéia do sentido lingüístico como fruto de relações opositivas entre vocábulos formados arbitrariamente. No artigo “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, o filósofo afirma: “o que aprendemos em Saussure, é que os signos um a um não significam nada, que cada um entre eles menos exprime um sentido que marca um desvio de sentido entre ele mesmo e os outros” (S, 49). Em A Natureza, Merleau-Ponty admite que a linguagem se opõe “a toda predestinação dos signos a um significado: o laço não é dado (imitação), ele é criado por um princípio interno de diferenciação dos signos em uma língua” (N, 289). Essa assimilação da idéia da linguagem como sistema diacrítico implica alterar o papel da atividade perceptiva (tal como defendido pela Fenomenologia da Percepção) no funcionamento da linguagem. Afinal, longe de traduzir ou registrar uma realidade

autonomamente percebida, conforme esse livro parecia defender com a tese do sentido

emotivo, as línguas, segundo a concepção diacrítica, fornecem os instrumentos pelos quais determinados eventos ou coisas podem ser referidos, de modo a direcionar as capacidades discriminativas inerentes à percepção.

Merleau-Ponty chega a reconhecer essa modelação das capacidades perceptivas pela linguagem em raras passagens da Fenomenologia da Percepção. Ele afirma, por exemplo, que “a denominação dos objetos não vem depois do reconhecimento, ela é o próprio reconhecimento (...), a palavra traz o sentido e, impondo-o ao objeto, tenho

76 consciência de atingi-lo” (PhP, 207). Em seguida, retoma um exemplo de A Estrutura

do Comportamento (Cf. SC, 184) ao defender que “para a criança o objeto só é

conhecido quando é nomeado, o nome é a essência do objeto e reside nele do mesmo modo que sua cor e que sua forma” (PhP, 207). No entanto, de modo geral, o filósofo apresenta, na Fenomenologia da Percepção, o campo percebido como um conjunto de fenômenos organizado “segundo regras próprias” (PhP, 46), as quais, por decorrerem de capacidades naturais (Cf. PhP, 59), produziriam conteúdos partilháveis por todos os sujeitos independentemente da língua ou cultura (Cf. PhP, 505).

Por sua vez, nos anos cinqüenta, Merleau-Ponty admite um certo nível de

enformação cultural do campo perceptivo, em concordância, como veremos logo a

seguir, com a tese saussuriana do caráter arbitrário dos signos lingüísticos. As considerações mais claras do filósofo a respeito dessa enformação se referem à pintura. Em “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, Merleau-Ponty critica a idéia de que a perspectiva planimétrica, muito utilizada na pintura clássica, se impõe aos artistas por meio da percepção. Na verdade, tal perspectiva não seria a apresentação direta do

mundo sensível, mas uma certa maneira, determinada culturalmente, de apreendê-lo,

maneira que não é necessariamente exigida pelo mundo percebido, já que esse também faculta outras decodificações do campo fenomenal (expressadas, por exemplo, pelos trabalhos de Matisse, Klee e outros pintores modernos que, em muitos casos, dispensam a perspectiva planimétrica). Por conseguinte, a percepção não se limita a veicular padrões naturais de organização do campo fenomenal, mas atualiza determinados parâmetros de manifestação fenomênica culturalmente carregados (Cf. S, 61). Desse modo, mais do que revelar conteúdos universalmente partilháveis, a atividade perceptiva “projeta no mundo a assinatura de uma civilização” (PM, p.97). Quer dizer que os poderes discriminativos do aparato perceptivo não fornecem, ao menos de

imediato, dados idênticos para todos os seres humanos, já que tais poderes, pelo menos

até certo grau, favorecem certas discriminações no campo fenomenal decorrentes do meio cultural em que se desenvolvem. Dado que a linguagem é um dos componentes mais marcantes da cultura humana, podemos inferir que Merleau-Ponty admite, nos anos cinqüenta, que as línguas intensificam diferenças nas capacidades discriminativas de sujeitos perceptivos de contextos histórico-culturais diversos31.

31 Ao expor o caráter diacrítico das línguas, Merleau-Ponty usa o seguinte exemplo: “há em certas línguas

A articulação entre vida perceptiva e atividade lingüística

Vimos que Merleau-Ponty reconhece a importância da linguagem e da cultura em geral na organização do campo fenomenal. No entanto, conforme relatam as atas do Colóquio de Bonneval (1960) sobre o inconsciente, para Merleau-Ponty “a abertura ao ser não é lingüística: é na percepção que ele vê o lugar natal da fala” (PII, 274). Dessa maneira, mesmo em seus anos finais, o filósofo não considera que a linguagem é a responsável pela inserção do sujeito no mundo, mas sim que ela se estabelece sobre

uma abertura originalmente perceptiva. Essa posição, antes de se opor, na verdade complementa aquela defendida nos anos cinqüenta, exposta há pouco: Merleau-Ponty

havia reconhecido que a vida perceptiva sempre veicula a marca de uma civilização, marca que provavelmente incluía certos padrões discriminativos favorecidos por determinados vocábulos ou expressões lingüísticas. No entanto, tal como o filósofo acentua em 1960, essa veiculação não é absolutamente autônoma e depende da abertura perceptiva ao ser. Vamos tentar esclarecer o que significa tal dependência e, no geral, como vida perceptiva e vida lingüística se articulam.

É preciso notar, de início, que Merleau-Ponty sempre considera a linguagem um tipo de intencionalidade corporal. Essa tese, exposta já na Fenomenologia da

Percepção, permanece no decorrer dos anos cinqüenta32. Lembremos do exemplo da passagem do latim para o francês. Não se trata de um decreto dos sujeitos falantes, pois tais eventos são por demais hesitantes para assim se definirem. Porém, são também muito sistemáticos para que se reduzam a uma justaposição de acontecimentos aleatórios. Ocorre que os diversos acasos pelos quais uma língua se desarticula, tais como a queda da última sílaba das palavras, organizam-se como elementos de um novo sistema expressivo (no caso, a tônica na última sílaba das palavras), que restabelece ou mesmo amplia as possibilidades comunicativas ameaçadas pela decadência da primeira. Ora, a retomada de acasos factuais e sua transformação em um campo significativo é o modo como Merleau-Ponty descreve a atividade corporal (Cf. PhP, 226). O corpo responde às situações mundanas projetando uma forma significativa sobre os estímulos.

(PPE, 83). Assim, certas línguas contribuem para a percepção do sol como um fator agente sobre o planeta, enquanto outras favorecem sua apreensão como um objeto.

32 Cf. S, 111. Assim, mesmo com a apropriação da lingüística de Saussure, Merleau-Ponty mantém o

enraizamento corporal da linguagem. (Cf. Thierry, Y. Du corps parlant. Le langage chez Merleau-Ponty. Bruxelles: Ousia, 1987, p.34).

78 Do mesmo modo, a intencionalidade expressiva responde aos acasos lingüísticos ao constituir novas maneiras de se comunicar.

Apesar de a linguagem ser considerada por Merleau-Ponty uma intencionalidade corporal, tal qual a percepção, não é possível afirmar que ambas forneçam conteúdos homogêneos. Surge daí o problema da articulação entre vida perceptiva e expressão lingüística. Certamente é preciso haver dados perceptivos, uma experiência do mundo, para que o princípio discriminativo da fala atue de modo a elaborar um sistema de oposições lingüísticas. No entanto (conforme ensina a lingüística saussuriana, que Merleau-Ponty, ao menos nesse ponto, parece seguir33), a experiência perceptiva não

determina quais signos serão formulados e nem o seu significado. Se se aceita a tese do

arbitrário do signo, então as vivências sensíveis (e mesmo afetivas) não condicionam os significados lingüísticos e a articulação entre esses e as primeiras não ocorre como simples tradução ou registro dessas vivências nos vocábulos, conforme a

Fenomenologia da Percepção parecia propor por meio da tese do sentido gestual das

palavras. A auto-organização do campo fenomenal e as vivências corporais não determinam o sentido das palavras, pois essas se formam segundo um princípio de mútua oposição que é indeterminado em relação aos conteúdos percebidos. Não há, assim, homogeneidade entre conteúdo percebido e falado, já que as diferentes línguas instituem diferentes possibilidades referenciais em relação ao campo perceptivo. O problema é então esclarecer como a vida perceptiva e a vida expressiva do sujeito podem se conciliar. A dificuldade, como Merleau-Ponty admite até em seus textos finais, é que por meio de um simbolismo arbitrário, a linguagem instaura um contato com o mundo aparentemente heterogêneo àquele instituído pela percepção34. No entanto, embora os sistemas lingüísticos não sejam determinados pela organização dos conteúdos do campo fenomenal, eles pressupõem essa última (conforme a fala de Merleau-Ponty no colóquio de Bonneval), de modo que alguma relação de continuidade entre ambos deve haver.

Uma vez rejeitada que a articulação entre percepção e linguagem se dê por um tipo de tradução direta dos conteúdos da primeira pela segunda, como esclarecer a relação entre ambas? Mauro Carbone defende que a relação entre percepção e

33 Tal como a citação de A Natureza nas páginas setenta e cinco confirma.

34 Segundo as notas de O Visível e o Invisível, é o mesmo sujeito encarnado “que percebe e que fala” (VI,

252, set. 59). No entanto, as diferenças entre ambas as funções levam Merleau-Ponty a afirmar o seguinte: “o que é preciso esclarecer: a perturbação introduzida pela fala no Ser pré-lingüístico” (VI, 252, set. 59).

linguagem é aquela de uma homogeneidade formal entre ambas35. Progressivamente, Merleau-Ponty teria interpretado que a estrutura figura/fundo, pela qual a percepção se organiza, funciona tal qual uma série de oposições diacríticas. Analogamente aos vocábulos, cada figura percebida só se delimitaria por sua relação opositiva com os elementos do fundo do qual ela é segregada. Segundo Carbone, essa interpretação “é o que permite [a Merleau-Ponty] abandonar a tendência (...) de conceber a vida irrefletida e silenciosa da consciência como fundo positivo de sentido em relação ao qual a linguagem se apresenta como segunda e derivada”36. Na verdade, haveria uma “forma diacrítica comum”37 à experiência silenciosa e à linguageira; ambas organizam similarmente os seus dados, de modo a constituir uma experiência significativa por meio de relações opositivas entre seus respectivos dados38.

A tese de uma homologia estrutural entre percepção e linguagem garante que a primeira não funciona de maneira completamente diferente da segunda. Ambas atualizam um modo típico pelo qual o corpo organiza uma experiência significativa, a saber, não por atribuição direta de sentido a conteúdos autônomos, mas por um princípio de diferenciação relacional de dados que atua seja nas habilidades perceptivas seja na cadeia verbal. Tal tese revela, assim, a unidade formal de diferentes intencionalidades corporais. No entanto, ela não esclarece como percepção e linguagem

de fato se relacionam. A homologia estrutural entre ambas por si só não explica como os conteúdos percebidos são exprimidos lingüisticamente. Que a percepção se organize

indiretamente, por um conjunto de oposições entre tema percebido e fundo, pouco elucida o funcionamento da linguagem em relação a ela, já que as diferenciações arbitrárias da cadeia verbal não correspondem exatamente a nenhum padrão de diferenciações perceptivas. O simples fato de que há diferentes línguas cujas oposições internas não são equivalentes revela que elas não seguem alguma diferenciação

diacrítica fundante supostamente oferecida pela percepção. Assim, mesmo que se

admita que a atividade lingüística e a perceptiva signifiquem por meio de conjuntos de

35 Cf. Carbone, M. “La dicibilité du monde. La période intermédiaire de la pensée de Merleau-Ponty à

partir de Saussure”. In: VV.AA. Merleau-Ponty – le philosophe et son langage. Paris: Vrin, 1993.

36 Ibid., p.98. 37 Ibid., p.99.

38 A interpretação de Carbone é consistente com os textos de Merleau-Ponty. O filósofo afirma, por

exemplo, que “a análise saussuriana das relações entre significantes e das relações de significantes à significados e de significações como diferenças de significações confirma e reencontra a idéia da percepção como desvio em relação a um nível” (VI, 252, set. 59). Assim, para Merleau-Ponty, a percepção é “sistema diacrítico, relativo, opositivo” (VI, 263, out. 59), e, nesse sentido, como afirma em A Natureza, “a vida da linguagem reproduz em um outro nível as estruturas perceptivas” (N, 274).

80 oposições, não se segue que tais conjuntos se recubram perfeitamente ou se co- determinem harmoniosamente. Resta ainda esclarecer como o campo perceptivo e a atividade lingüística efetivamente se articulam.

A fixação dos dados sensíveis pela linguagem

Como notamos na subseção anterior, Merleau-Ponty caracteriza a ordenação própria à vida perceptiva como diacrítica. Quer dizer que a experiência sensível não é a assimilação de significações silenciosas positivas. Concebida como estrutura diacrítica, a experiência não fornece senão um conjunto de desvios, de intervalos e de descontinuidades entre os componentes sensíveis dos objetos percebidos, e entre esses e o horizonte sobre o qual se perfilam. Assim, os dados percebidos não portam em si mesmos um sentido, mas o constituem por mútua oposição. Essa tese traz conseqüências para a investigação ontológica pretendida por Merleau-Ponty: a experiência perceptiva não oferece um acesso direto ao ser sensível que motiva a percepção, tal como a Fenomenologia da Percepção parecia supor. Nesse livro, Merleau-Ponty admite que a percepção reconstitui o ser exterior que a motiva (Cf. PhP, 240). Tal reconstituição manifestava de maneira bastante satisfatória as propriedades e estruturas do mundo. Com a interpretação diacrítica da percepção, Merleau-Ponty parece admitir que a reconstituição do ser pela experiência não expõe diretamente as propriedades do ser, mas depende de relações opositivas entre os dados sensíveis. Essas relações, por sua vez, não são sempre as mesmas para todos os sujeitos em todos os

tempos, já que podem ser favorecidas por hábitos culturais não partilhados

universalmente, tal como sugerimos há pouco.

Vimos que a percepção ordena a apresentação do mundo sensível de modo indireto. Além disso, deve-se considerar que os conteúdos percebidos não são simplesmente traduzidos pela linguagem, mas expressos por esse outro sistema

diacrítico, ou seja, pelas oposições lingüísticas (responsáveis pelas significações

linguageiras). Como essa expressão ocorre? Para Merleau-Ponty, a relação efetiva entre percepção e linguagem é de fixação da última pela primeira. “Falar ou escrever é bem traduzir uma experiência, mas que só se torna texto pela fala que ela suscita” (RC, 41), afirma o filósofo no resumo do curso O Problema da fala, ministrado em 1953-4. Quer dizer que embora a linguagem suponha a abertura perceptiva originária, essa última não deve ser concebida como um núcleo de vivências duráveis e diretamente disponíveis aos sujeitos perceptivos. Afinal, a própria percepção, conforme já acentuamos, se ordena

como sistema de significações indiretas. Os conteúdos percebidos não são significações silenciosas simples às quais se aplicaria rótulos verbais; tais conteúdos só são delimitados enquanto tais por meio de sua expressão em signos lingüísticos partilháveis e sedimentáveis. Assim, não basta afirmar que a linguagem é fundada pela experiência perceptiva; é preciso também acentuar que a linguagem é um poder intencional que

transfigura as fugidias experiências sensíveis (que estão em sua base) em idealidades culturais. A expressão da experiência sensível por meio de vocábulos sedimentados e

partilhados torna possível a um sujeito tanto desvelar a sua vida silenciosa particular aos demais sujeitos que comungam do mesmo código lingüístico quanto apreender a experiência sensível dos outros falantes (Cf. PM, 122).

É só dessa maneira que a universalidade do sentir, admitida por Merleau-Ponty em A Prosa do Mundo (conforme mencionamos no início deste capítulo), de fato se realiza. Por meio das palavras, um sujeito transmite a outros a sua experiência perceptiva e desperta nesses a partilha sensível daquilo que é comunicado. A descrição verbal de uma paisagem longínqua, por exemplo, expõe a um ouvinte que a desconhece uma experiência que ele mesmo poderia ter se diante dela estivesse. O caráter eminentemente partilhável da visão de tal paisagem é confirmado por meio do diálogo. Em si mesma, como evento silencioso, a vivência sensível da paisagem se confundiria com a perspectiva individual, aparentemente intransferível, que cada sujeito apreende do mundo. Porém, por meio da linguagem, tal como afirma Merleau-Ponty, “a totalidade privada fraterniza com a totalidade social” (PM, 202), quer dizer, a perspectiva subjetiva em que cada sujeito está confinado se revela não como ponto de vista inacessível, mas como um foco de experiências eminentemente partilháveis. Destarte, o exercício da linguagem permite que a universalidade tácita do sentir (o fato de que todos os sujeitos de mesma constituição psicofisiológica experimentam perspectivas intercambiáveis do mesmo mundo) seja reconhecida como verdadeiramente universal (Cf. PM, 197, 202)39.

39 Em nossa leitura, a universalidade do sentir pode ser reconhecida explicitamente apesar das diferenças

culturais e lingüísticas que favorecem determinadas maneiras de apreender os dados fenomênicos. Afirmamos, na subseção “A percepção enformada culturalmente” que, dada a enformação cultural da atividade perceptiva, os conteúdos sensíveis não são de imediato diretamente partilháveis. Porém, supomos que por meio do aprendizado de uma língua e de uma cultura diferente, um sujeito pode confirmar em sua própria experiência uma maneira de discriminar certos dados no campo fenomenal a qual não era possuída de início por ele. Assim, embora não haja um só modo de apreender os dados perceptivos, os diferentes parâmetros culturais de discriminação de dados fenomênicos são potencialidades que todo sujeito perceptivo, como portador de uma função universal, a saber, o sentir, em princípio poderia atualizar.

82 Deve-se notar que a linguagem comunica a experiência por palavras gerais, que não foram talhadas para exprimir essa ou aquela vivência particular. Por exemplo, as cores e as formas figuradas no campo fenomenal são apresentadas por vocábulos públicos (verde, cônico, etc.), que, em princípio, não se referem a nenhuma experiência em particular. A linguagem explicita o caráter geral da vivência sensível, e ao fazê-lo, parece que as vivências perdem qualquer conteúdo singular e se explicitam apenas em seus aspectos abstratos. No entanto, para Merleau-Ponty, essa aparente limitação pode ser compensada pelo fenômeno da expressividade. Segundo o filósofo, “a linguagem pode ser tratada como uma gesticulação de tal modo variada, precisa, sistemática e capaz de recortes tão numerosos, que a estrutura interna do enunciado só pode finalmente convir à situação mental à qual ela responde e dela se torna o signo sem equívoco” (PII, 43). Não se trata de defender que haja, de início, vocábulos que

diretamente traduzem a particularidade de cada experiência. Mas, indiretamente, por

meio de torções expressivas impostas às palavras, ao menos existe a possibilidade de que o caráter único das experiências silenciosas seja comunicado40.

Essa capacidade de fixação e desvelamento indireto da experiência silenciosa será um dos principais recursos pelos quais Merleau-Ponty elaborará a sua ontologia final. Como veremos em nosso sexto capítulo, a investigação do ser bruto pretendida por O Visível e o Invisível não se realiza como uma designação simples dos componentes da realidade, como se se pudesse enumerar diretamente as propriedades do ser. Conforme vimos, dois sistemas diacríticos impedem o acesso direto ao ser: primeiramente, a percepção já ordena os dados como uma série de oposições, as quais podem ser motivadas por fatores culturais particulares. Em seguida, a linguagem fixa a experiência perceptiva de maneira indireta, servindo-se de um sistema de oposições de termos arbitrários em relação aos conteúdos percebidos. Ante a impossibilidade de um acesso direto ao ser, Merleau-Ponty, em sua investigação ontológica madura, tenta aplicar o potencial indireto da linguagem para explicitar a camada ontológica da qual o próprio sujeito surgiria. Dessa maneira, as longas reflexões sobre o tema da linguagem não só ampliam o escopo das análises fenomenológicas iniciais, mas também instituem a orientação metodológica pela qual a investigação ontológica futura deve se cumprir:

40 Para Merleau-Ponty, na literatura essa expressão extremamente refinada da experiência ocorre

regularmente. Afinal, para ele, o escritor é justamente alguém que tenta “colocar em circulação não apenas os aspectos estatísticos e comuns do mundo, mas até a maneira pela qual [o mundo] toca um indivíduo e se introduz em sua experiência” (RC, 39).

expressão indireta, por meio de capacidades expressivas lingüísticas, do ser silencioso que funda tal expressividade.

Mas não se deve pensar que os dados sobre os quais a ontologia, de uma maneira indireta, será formulada, provenham somente da percepção. É verdade que neste capítulo acentuamos o problema da articulação entre vida perceptiva e atividade lingüística. Mas a solução oferecida por Merleau-Ponty (reconstrução expressiva da experiência), a qual fornece a diretiva principal do uso da linguagem na empreitada ontológica, não se aplica somente aos dados obtidos pelas descrições da percepção ingênua. No geral, com as reflexões sobre a linguagem do início dos anos cinqüenta, Merleau-Ponty reconhece que não há via de acesso imediato ao ser e que a percepção,

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