• Nenhum resultado encontrado

As terminologias da época: pardos, crioulos, cabras e pretos

No documento Download/Open (páginas 151-155)

3. A constituição familiar e a mestiçagem na freguesia

3.2 As terminologias da época: pardos, crioulos, cabras e pretos

Como podemos observar, o casamento tridentino proporcionou a formação de inúmeras famílias diferentes. Homens e mulheres pertencentes a grupos somáticos nem sempre iguais casaram-se, formando novas linhagens ou dando continuidade a sua origem. No entanto, as classificações dadas dentro do assento de casamento nos revelam uma variedade de nomes para designar pessoas de cor: pardos, cabras, crioulos, pretos, afora os brancos e as trocas existentes ocasionalmente quando são referidos os índios, algo que já referimos anteriormente.

Para entendermos melhor como eram dadas essas atribuições, buscamos no dicionário de Bluteau o significado que existiria na época para cada uma dessas designações e encontramos algumas semelhanças que persistem até hoje.

De acordo com o dicionarista o termo pardo era considerado uma cor, algo entre o branco e o preto, e tinha uma associação curiosa com uma fera, o

leopardo304. Neste caso o homem pardo teria uma associação ao mulato, filho ou filha originada a partir do intercurso sexual entre um “branco e uma negra ou entre negro e branca”. A origem do nome mulato, advinha de um animal, chamado Mu ou

Mulo, gerado pelo cruzamento de dois outros animais de espécie diferentes305,

seriam espécimes mestiços, conforme Bluteau.

A determinação dos mestiços306, apesar de não ser designado nos registros eclesiásticos, pode ser trazida ao contexto, pois conforme Bluteau, na época, os frutos das espécies diferentes seriam considerados híbridos ou mestiços, como exemplo também é dado o leopardo. Contudo, não seriam somente animais irracionais classificados de tal forma, o homem também pode ser colocado neste círculo, principalmente quando era fruto de uma relação com pessoas de nações diferentes como um filho de português com uma índia, ou um pai índio e uma mãe portuguesa.

Uma outra classificação encontrada em alguns registros é a de cabra307. No dicionário da época significava um termo que os portugueses usaram para com os índios, por os acharem “rumiando, feito cabras308”, e não estaria referido a uma cor ou a um grupo de pessoas, nos fazendo cogitar que o termo pode ter sido usado para caracterizar alguns homens com um aspecto indígena. Atualmente, o termo está ligado a uma forma de mestiço indefinido de índio, negro ou branco de pele morena clara309, algo que na designação de Bluteau estaria mais próximo do pardo.

Por fim, os crioulos310

, que são os mais recorrentes entre os assentos

juntamente com os pardos. O crioulo seria o escravo nascido na propriedade do seu senhor, o que pode ser colocado em destaque junto aos demais, pois é o único em que existe uma ligação direta com a escravidão, assim, ser considerado crioulo na sociedade, marcava o indivíduo por ser associado a um cativeiro, como propriedade de alguém.

Em relação à condição civil deste grupo, Sheila de Castro Faria afirma: “era impossível haver crioulo livre311”. Tal afirmativa também pode ser feita para o Recife

304 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino – (1712-1727). Coimbra: 1712. v. 5, p. 265. 305 Idem. p. 628.

306 Idem. p. 455.

307 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino – (1712-1727). Coimbra: 1712. v. 2, p. 21. 308 Idem.

309 HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro S. Dicionário Houaiss de língua portuguesa. Lisboa: Debate e Temas, 2003. p. 546.

310 BLUTEAU, op. cit., 1712. p. 613. 311 FARIA, op. cit., 2004. p. 68.

a partir dos registros matrimoniais. Todas as vezes que aparece o termo crioulo, e não faz referência a um escravo, encontramos a designação de forro, e nunca a de

livre. Como ficou registrado no casamento realizado em 10 de maio de 1790 na

Matriz do Santíssimo Sacramento, quando “se casaram por palavras de presente Ignácio de Santa Anna, crioulo forro, com Margarida de Mello, crioula forra” 312. A autora ainda assevera que quando o escravo era nascido no Brasil, sendo filho de africana, “filho de mãe liberta, sua indicação era de pardo” 313 e não de crioulo. Pelos indicativos de nossa amostra não podemos usar para o Recife as designações de Sheila Faria, pois, a maior parte das mães dos crioulos de nossos acentos não possui indicativos de nação ou condição civil, para tal somente seus filhos, homens ou mulheres, qualificados como crioulos forros e em caso de mães pretas forras, seus filhos não são designados como pardos. Demonstrando, mais uma vez, a necessidade de pesquisas pontuais para alcançarmos uma compreensão mais densa da realidade colonial brasileira.

Ainda segundo o dicionarista, a palavra preto seria o mesmo de negro, o que também é colocado muito próximo da escravidão, já que o pretinho era associado à mesma coisa que um escravo pequeno314; contudo, nos registros analisados, encontramos um documento onde os nubentes, são considerados como pretos, mas não existe indicativo de escravidão como o nome do antigo dono ou nação de origem. Conforme o registro, aos 20 de maio de 1793, na Igreja Matriz, sendo os nubentes “naturais e moradores” da freguesia, casou-se “por palavras de presente Diogo de Freitas, preto, filho legitimo de Maximo Roriz Seixas e de sua mulher, Eufrazia Roriz de Freitas com Mariana das Virgens, preta, filha legitima de João de Araújo Alves e de sua mulher Luiza Maria das Virgens, todos forros” 315. É possível perceber pelo registro que mesmo não existindo referência à cor dos pais dos consortes e sendo os nubentes naturais da freguesia, estes são qualificados como

pretos, algo não comum, já que preto designava quase sempre escravos nascidos

na África, e não na colônia316, demonstrando a fragilidade do conceito para designar uma pessoa.

312 AMSAR – Livro I – casamento – 1790 – p. 5. 313 FARIA, op. cit., 2004. p. 68.

314 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino – (1712-1727). Coimbra: 1712. v. 7, p. 727. 315 AMSAR – Livro I – casamento – 1793 – p. 78.

No assento de casamento ou batismo, os africanos são classificados de acordo com o “gentio” ou “nação” de origem317, não existindo o termo africano, o que poderia ser um indício da palavra não existir na época. Porém, em seu dicionário, Bluteau, já rotula um significado para o vocábulo africano, que seria algo “natural ou concernente da África” 318. Em oposição a isso, Sheila de Castro Faria, afirma que

foi no decorrer do século XIX, no contexto dos esforços para se abolirem o tráfico negreiro e a própria escravidão, que começou a aparecer o termo africano, para indicar escravos procedentes da África. Antes, em nenhum documento assim haviam sido qualificados. A variedade étnica anterior e a cessação definitiva do tráfico, em 1850, transformaram congo, angola, cabinda, mina, nagô, ioruba, accra, monjolo, entre inúmeros outros, em africanos319. (grifo nosso)

A afirmação da autora é comprovada com relação à ausência nos documentos. Entretanto, pelo observado em Bluteau, o termo africano já fazia referência, ao menos no século XVIII, aos escravos procedentes da África e a coisas naturais daquele continente; de tal maneira, não é possível afirmar que o sentido dado à palavra surge somente no decorrer do século XIX.

Em relação aos africanos encontrados por nós nos registros de casamentos, seja contraindo matrimônio com outros do mesmo gentio ou com crioulos, as “nações”, como são indicadas, dizem respeito predominantemente a angolas e

minas, apesar de encontrarmos nos registros casos raros de africanos vindos por

portos em Luanda e na Guiné. Como exemplo das terminações usadas no documento, são Cecília e Manoel320, ambos de sobrenome Marques, tendo adotado este pós-nome do seu dono, o Padre Ignácio Marques. Os nubentes são tidos como “ambos da nação Angola” e por pertencerem a um eclesiástico, acreditamos que este deve ter cuidado em proceder com a união no momento da percepção do interesse dos seus escravos, podendo ter ocorrido por estímulos do próprio religioso. Assim, no dia 8 de janeiro, na Igreja de Nossa Senhora da Saúde, no Poço da Panela, têm sua união celebrada pelo próprio dono.

317 Os termos nação e gentio aparecem sempre se referindo aos africanos e não aos poucos indígenas encontrados, estes são tidos como índios. Contudo, na época colonial conforme Ronaldo Vainfas, o índio poderia ser conhecido como “gentios do Brasil”. Ver: VAINFAS. Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Companhia das Letras: 2005. p. 13.

318 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino – (1712-1727). Coimbra: 1712. v. 1, p. 161. 319 FARIA, op. cit., 2004. p. 38.

Uma outra união que serve de exemplo para o termo gentio, é o caso de “Afonso do gentio da Angola com Maria do gentio da Costa” 321. Ambos têm suas origens indicadas a partir do gentio e não da nação, o que caracteriza um uso comum das duas terminações, tendo o mesmo significado nos assentos, serviam para designar os locais de procedência dos escravos e em alguns casos estavam incorporados ao próprio nome.

No documento Download/Open (páginas 151-155)